BALIZA E FAROL
[Depoimento publicado no jornal
Rascunho, de 15 jan. de 2006]
Li Lavoura arcaica assim que foi publicado, em 1975. Pareceu-me, de
imediato, uma obra grandiosa e diferenciada do que então eu podia ler do que se
publicava.
Impressionaram-me, em primeiro
lugar, a potência e a riqueza das imagens, e o tônus daquele discurso
torrencial, que se derramava intenso página, após página, mesclando a
simbologia dos elementos básicos da vida rural e o acervo das parábolas
bíblicas com um vocabulário organicista, quase naturalista, de gosto meio
mórbido. Uma mistura que me lembrava, também por representar a irrupção do
desejo carnal e profanatório no meio de um universo construído com as tintas
violentas do sagrado, a leitura a que me dedicava com mais entusiasmo naquele
último ano de faculdade: a poesia e a prosa confessional de Baudelaire.
Também me causou forte impacto a
cerrada fatura da novela, com os vários planos nos quais se modulam a voz do
narrador e a voz das personagens, principalmente a voz do pai, que é glosada,
imitada, incorporada e, ainda assim, a cada passo, combatida pelas explosões de
ira e de incontinência da voz da personagem narradora.
Quando li o livro, o país vivia
ainda sob a ditadura. A leitura dos textos contemporâneos tendia, por costume e
por desejo, ao registro alegórico. Nalguns, a denúncia alegórica era lida de
modo mais explícito. Em outros, do que então se chamava “realismo mágico”, a
operação era mais difícil e nem sempre bem sucedida. Ao mesmo tempo, era
sensível certa desconfiança em relação a textos nos quais os dramas da
consciência e das paixões aparecessem ostensivamente desvinculados da situação
política pela qual o país passava. Talvez fosse possível ver na figura
opressiva do pai e no isolamento da família, uma alegoria da situação do país,
na qual mesmo o espaço privado era submetido a uma autoridade feroz, e a saída
era a loucura ou o crime. Mas isso nada valia frente ao sentido “arcaico” do
livro, isto é, face à sua força específica, que vinha de se apresentar como um
texto fora do tempo, no qual o que contava eram as paixões humanas, uma espécie
de revivescência de mitos, medos e anseios terríveis, isto é, uma espécie de
tragédia.
Lavoura
arcaica, naquele momento, assim, teve
então para mim um sentido e um ar de família que não sei se hoje eu me
atreveria a reconhecer. Mas na época em que li o livro recém-lançado, a minha
impressão era a de que se tratava de um escritor que eu só podia aproximar, no
momento, da forma de escrever de Clarice Lispetor.
Desde 1975, quando o li duas vezes
em seguida, não tinha mais lido o livro. Agora, para este depoimento, li-o pela
terceira vez.
A impressão do poder verbal se
renovou inteiramente. Mas já agora a impressão geral de potência e de beleza
feroz se deixou em parte empanar pela evidenciação dos procedimentos
narrativos. O desenvolvimento ternário das notações, em forma de amplificação,
por exemplo, o paralelismo ostensivo entre as frases ao longo de um mesmo
parágrafo, que me haviam passado despercebidos nas leituras juvenis, agora
vieram para primeiro plano e tiveram um efeito de cansaço, de alguma monotonia,
que estava ausente. Especialmente o processo de repetição ternária, para
amplificar uma imagem ou registro, que se torna mais recorrente ainda no último
terço do livro.
São, porém, passados 30 anos entre
uma leitura e outra. E se esse foi todo o desgaste causado ao livro, tendo em
vista os muitos textos que ele gerou, não creio que haverá outros mais, e que Lavoura arcaica terá ainda um longo
tempo como baliza e farol para a escrita em prosa contemporânea no Brasil.
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