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sábado, 30 de junho de 2012

O haicai de David Rodrigues


PREFÁCIO
a Respirar: 101 haiku, de David Rodrigues


Já se disse que o haiku é a arte de dizer o máximo com o mínimo. Entretanto, a verdade é mais sutil: haiku é a arte de, com o mínimo, obter apenas o suficiente.
O poeta de haiku não busca obter um poema que se pareça com uma fórmula algébrica, um enigma ou uma síntese fulgurante de idéias. Pelo contrário, sua arte consiste em colocar na frente dos olhos ou entre as mãos do leitor, vivo e palpitante, um momento único, concreto, de plenitude sensória e emotiva. Para fazê-lo, sabe que o caminho mais seguro é renunciar ao brilho das palavras e à exibição de perícia técnica.
Na sua brevidade, o haiku apenas diz o que precisa ser dito, traz para o leitor uma pequena constelação de palavras comuns, centrada numa sensação. Abre para a sua imaginação um registro objetivo e freqüentemente lacunar, que se esgota em si mesmo: uma folha que cai aos seus pés faz o poeta erguer os olhos para o outono, as nuvens de primavera imprimem manchas de sombra sobre os campos verdes, a sombra do avião atravessa o campo. Não é preciso explicar nada. Basta imaginar, recompor a cena, a circunstância em que se produziu o registro. Por isso já se disse do haiku (e do seu irmão mais velho, o tanka): são três linhas em busca de um contexto.
A leitura e a compreensão do haiku, assim, mantêm-se fácil e voluntariamente no nível mais simples e raso. Na verdade, se a leitura não puder manter-se no nível da denotatividade, do registro pontual e verdadeiro, não se pode falar com propriedade em haiku. No entanto, isso não impede que algo se mova ali. Algo mais amplo, pungente ou  risível, doce ou amargo. Não impede que a fragilidade humana, a piedade, a epifania sensória, o desamparo, o êxtase perante a beleza do mundo, a esperança, a resignação e tantos outros estados de espírito ou potências morais apareçam, em relance, acima, abaixo, ou dançando entre as palavras simples. É essa oscilação entre o solo banal de um registro direto e lacunar e a pressão que sobre esse registro exerce a energia da vida do corpo e do espírito que dá o sabor especial do haiku.
Bashô definiu a arte do haiku como um modo de estar no mundo. Quando esse modo é obtido, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores e o poema brota como um registro direto da realidade pontual. Aí está o nervo e a especificidade do haiku: se a fusão for perfeita, isto é, se o exercício espiritual resultou, o sentimento interior e o objeto apreendido pela percepção formam uma unidade. Tomar consciência de um é trazer junto o outro, ainda que não haja necessidade de interpretar um pelo outro, de traduzir um no outro. Quando se consegue esse estado de graça, em que o ‘eu’ desaparece, ou pelo menos sai do primeiro plano, e a emoção se cristaliza à volta das palavras e ali fica vibrando, à espera do leitor que possa abrir-se em disponibilidade para recebê-la, brilha, sem alarde, a luz própria e a verdade do haiku.
Por isso mesmo, Bashô advertia: “se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.” Entre aquele objetivo e este perigo situa-se a dificuldade e a alegria do haiku. Evitar o segundo para atingir o primeiro, não só na poesia, mas também no exercício da vida diária, é o que se denomina “o caminho do haiku”.

David Rodrigues o tem buscado. Este é o segundo marco, o segundo padrão que ele planta nesta nova terra da poesia breve à maneira japonesa. É certo que, para continuar no registro metafórico, este poeta ensaia o equilíbrio entre o outro e o próprio, entre o estranhamento e o compromisso, entre a praia conhecida e a ilha desejada. Neste livro, a oscilação se insinua inclusive na divisão das partes. Uma busca a alteridade maior propiciada pelo exercício do espírito do haiku, que exige a observação objetiva e despida de atavios; outra intenta o aproveitamento solto da forma da composição, deixando maior campo à reflexividade, apostando na comparação e na metáfora. A primeira é o momento do haiku; a segunda é a hora do epigrama lírico em forma de haiku, que ostenta uma beleza própria e só conserva do haiku, quando muito, a maneira elegante e concisa do corte. Uma terceira esboça o equilíbrio possível entre os pólos – e constitui a nota diferencial e o sentido deste livro.
Não vou referir aqui os momentos altos do volume. São vários e o leitor os descobrirá com facilidade, de acordo com a sua inclinação. E ademais seria faltar ao desígnio que presidiu à sua elaboração separar de um lado os haiku que me parecem especialmente bem realizados como haiku, daqueles poemas que me soam fortes em seu registro específico, ainda que outro. O que o poeta buscou aqui foi um tempero delicado e eclético, em que a poesia é a base e a emotividade amorosa a variação. Que seja, pois, assim a leitura. E que o prefácio apenas saúde o novo livro, o poeta e o leitor que, por certo, fará no livro o seu próprio caminho e dele sairá, como o poeta da luz do sol da primavera, uma pessoa diferente da que nele entrou.

                                                                                  Campinas, outubro de 2008


Ref: David Rodrigues. Respirar: 101 haiku. Vila Nova de Gaia: Corpos Editora, 2008.

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