PREFÁCIO
a Respirar: 101 haiku, de David Rodrigues
Já se disse que
o haiku é a arte de dizer o máximo com o mínimo. Entretanto, a verdade é mais
sutil: haiku é a arte de, com o mínimo, obter apenas o suficiente.
O poeta de haiku
não busca obter um poema que se pareça com uma fórmula algébrica, um enigma ou
uma síntese fulgurante de idéias. Pelo contrário, sua arte consiste em colocar
na frente dos olhos ou entre as mãos do leitor, vivo e palpitante, um momento
único, concreto, de plenitude sensória e emotiva. Para fazê-lo, sabe que o
caminho mais seguro é renunciar ao brilho das palavras e à exibição de perícia
técnica.
Na sua brevidade,
o haiku apenas diz o que precisa ser dito, traz para o leitor uma pequena
constelação de palavras comuns, centrada numa sensação. Abre para a sua
imaginação um registro objetivo e freqüentemente lacunar, que se esgota em si
mesmo: uma folha que cai aos seus pés faz o poeta erguer os olhos para o
outono, as nuvens de primavera imprimem manchas de sombra sobre os campos
verdes, a sombra do avião atravessa o campo. Não é preciso explicar nada. Basta
imaginar, recompor a cena, a circunstância em que se produziu o registro. Por
isso já se disse do haiku (e do seu irmão mais velho, o tanka): são três linhas
em busca de um contexto.
A leitura e a
compreensão do haiku, assim, mantêm-se fácil e voluntariamente no nível mais
simples e raso. Na verdade, se a leitura não puder manter-se no nível da
denotatividade, do registro pontual e verdadeiro, não se pode falar com
propriedade em haiku. No entanto, isso não impede que algo se mova ali. Algo
mais amplo, pungente ou risível, doce ou
amargo. Não impede que a fragilidade humana, a piedade, a epifania sensória, o
desamparo, o êxtase perante a beleza do mundo, a esperança, a resignação e
tantos outros estados de espírito ou potências morais apareçam, em relance,
acima, abaixo, ou dançando entre as palavras simples. É essa oscilação entre o
solo banal de um registro direto e lacunar e a pressão que sobre esse registro
exerce a energia da vida do corpo e do espírito que dá o sabor especial do haiku.
Bashô definiu a
arte do haiku como um modo de estar no mundo. Quando esse modo é obtido, o
sentimento interior se funde com as coisas exteriores e o poema brota como um
registro direto da realidade pontual. Aí está o nervo e a especificidade do
haiku: se a fusão for perfeita, isto é, se o exercício espiritual resultou, o
sentimento interior e o objeto apreendido pela percepção formam uma unidade.
Tomar consciência de um é trazer junto o outro, ainda que não haja necessidade
de interpretar um pelo outro, de traduzir um no outro. Quando se consegue esse
estado de graça, em que o ‘eu’ desaparece, ou pelo menos sai do primeiro plano,
e a emoção se cristaliza à volta das palavras e ali fica vibrando, à espera do
leitor que possa abrir-se em disponibilidade para recebê-la, brilha, sem
alarde, a luz própria e a verdade do haiku.
Por isso mesmo,
Bashô advertia: “se o espírito, pelo
contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a
buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a
vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.” Entre
aquele objetivo e este perigo situa-se a dificuldade e a alegria do haiku.
Evitar o segundo para atingir o primeiro, não só na poesia, mas também no
exercício da vida diária, é o que se denomina “o caminho do haiku”.
David
Rodrigues o
tem buscado. Este é o segundo marco, o segundo padrão que ele planta nesta nova
terra da poesia breve à maneira japonesa. É certo que, para continuar no
registro metafórico, este poeta ensaia o equilíbrio entre o outro e o próprio, entre
o estranhamento e o compromisso, entre a praia conhecida e a ilha desejada. Neste
livro, a oscilação se insinua inclusive na divisão das partes. Uma busca a alteridade
maior propiciada pelo exercício do espírito do haiku, que exige a observação
objetiva e despida de atavios; outra intenta o aproveitamento solto da
forma da composição, deixando maior campo à reflexividade, apostando na
comparação e na metáfora. A primeira é o momento do haiku; a segunda é a hora do
epigrama lírico em forma de haiku, que ostenta uma beleza própria e só conserva
do haiku, quando muito, a maneira elegante e concisa do corte. Uma terceira
esboça o equilíbrio possível entre os pólos – e constitui a nota diferencial e
o sentido deste livro.
Não vou referir
aqui os momentos altos do volume. São vários e o leitor os descobrirá com
facilidade, de acordo com a sua inclinação. E ademais seria faltar ao desígnio
que presidiu à sua elaboração separar de um lado os haiku que me parecem
especialmente bem realizados como haiku, daqueles poemas que me soam fortes em
seu registro específico, ainda que outro. O que o poeta buscou aqui foi um
tempero delicado e eclético, em que a poesia é a base e a emotividade amorosa a
variação. Que seja, pois, assim a leitura. E que o prefácio apenas saúde o novo
livro, o poeta e o leitor que, por certo, fará no livro o seu próprio caminho e
dele sairá, como o poeta da luz do sol da primavera, uma pessoa diferente da
que nele entrou.
Campinas,
outubro de 2008
Ref: David Rodrigues. Respirar: 101 haiku. Vila Nova de Gaia: Corpos
Editora, 2008.
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