Macau
[texto publicado no jornal Hoje Macau, Macau, v. 1099, 01 mar. 2006 –
Depoimento sobre os dias em que lá estive em busca de
papéis de Camilo Pessanha]
Era uma pequena cidade em algum lugar do mundo imaginado. Não sei de onde ganhou as casas amarelas, mas as telhas brilhantes lhe foram emprestadas por poemas lidos numa tradução francesa. Uma baía saíra de algum mapa apenas entrevisto, para enfiar mais do que era viável pela terra adentro. Esta era, a princípio, a única concreta geografia desse lugar que se localizava (devo confessar) um pouco mais a leste e muito mais ignorantemente ao norte.
Que fantasmático recorte de terra e mar tinha eu
construído, afinal, para abrigar por momentos o espírito de um andarilho que
findou por se internar no Japão e para sempre o de um seu amigo, poeta, dono de
um cãozinho malhado e um tanto feiote!
De nada tinham adiantado as fotografias mais recentes.
Nada podiam contra a imaginação dos primeiros tempos, disposta a projetar sobre
todas as imagens o calor abafado das cartas antigas. Mas eis que numa tarde de
dezembro andava eu mesmo por aquelas ruas, ao acaso da desorientação e da falta
de método turístico. E no ritmo dos tropeços e dos sustos, começou aos poucos a
surgir uma cidade ligeiramente mais real. Eram pedras, pessoas, cheiros —
cascatas de cheiros e de cores e ruídos de uma língua misteriosa. Sob a aluvião
do novo, por momentos não houve quase lugar para os dois mortos, embora um
deles lá estivesse, a dois passos da minha rota quotidiana, quietinho, embaixo
da terra recalcada, sorrindo por não mais lhe doer nada.
A três dias da data da partida, e a outro tanto da
chegada, pouco restava de espaço onde pudesse florescer um sonho: ou o antigo,
agora incapaz de projetar-se nas faces da cidade real — ou
um outro e novo, embalado no ritmo dos passos que não teria tempo de acumular
ao longo dos bazares, do jardim ou da linha convulsa dos cassinos.
Muitos dias depois, já de volta ao meu quarto em
Portugal, em meio aos manuscritos e às anotações, como o assunto fosse difícil
e o sono fugisse, conheci melhor Macau. Era a sua Revista de Cultura,
eram os livros do Boxer, eram as traduções do Pe. Guerra. Tudo eram amigos, ou
pelo menos conhecidos de outras viagens noturnas e insones. E vários novos,
trazidos na bagagem, ou extraídos de uma estante de alfarrabista. Um,
inclusive, que comecei a ler ainda quando hóspede da casa que tem o nome de
jardim, durante as longas noites brancas de jetlag, enquanto esperava os
chineses trazerem os pássaros ao Pa Kap Chow, às seis horas da manhã: o livro
de crônicas de João
Manuel Amorim, O Vento e as Estátuas.
Pude então reviver, em várias épocas e vários planos,
a distante e sufocante Macau, já agora filtrada pelas palavras dos que melhor a
conheceram e alimentada pela memória, que é sempre generosa e pródiga: uma
cidade mais intensa e mais colorida do que a que percorri, me perdendo pelas
ruas até deparar, de repente, com uma igreja sem nave, tragicamente erguida no
centro de uma praça; ou descobrir, por uma fresta numa janela, um quarto que
podia ter sido avistado também por Pessanha, nos bricabraques, em busca de mais
uma obra de arte para ficar depois encaixotada no porão de um museu de Coimbra.
Faz agora quinze anos que visitei Macau pela primeira
e única vez. Com os papéis que pude ou não pude ler — interrogando contra a luz
quantas palavras indecifráveis! —, com o meu próprio desespero da leitura de
uns poucos papéis espalhados nas duas pontas do velho mundo, tentei depois
reconstruir os gestos todos deixados pela mão do morto; tentei ressuscitar o
que fora uma vez escrito e rasurado e depois outra vez anotado, numa seqüência
cujo fim não parece possível decidir.
Cumpria, nesse trabalho, um voto obscuro, feito no
cemitério de São Miguel, junto com uma oferenda: o ter tentado, com base em
testemunhos vários, recompor o que fora aquela vida, os horizontes que mirava e
os que lhe fugiam a cada ano de desgosto com a pátria distante, que insistiria
sempre no último insulto de não expor nem valorizar o resultado de uma vida de
buscas: a coleção chinesa, só com custo aceita pelo Estado português, para
dormir sepulta, em Coimbra, como o poeta dormiria, até hoje, em Macau.
Uma dupla oferenda, na verdade, pois era também ao
outro, ali enterrado com o pai: o gesto necessário de lhe tirar das costas a
acusação infame de ter sido o responsável pela dispersão do que tinha guardado ao
longo de anos de pobreza e isolamento. Ainda hoje corre a lenda. Tanto é mais
fácil jogar a culpa para os ombros do filho, ainda mais que mestiço e
ilegítimo, do que reconhecê-la nos amigos portugueses, executores omissos de um
testamento que se conservou, mas não se cumpriu.
Como pude, cumpri o voto, com a edição, em 1995, de
todos os versos e versões assinados por Pessanha ou por outros atribuídos a
ele.
Muitos anos depois, o único documento que em vão
busquei em Macau veio finalmente à luz. E há poucos meses pude ver que a parte
do trabalho que eu não pude fazer agora está feita, numa edição de Macau: A poesia de Camilo Pessanha, de Carlos Morais José e
Rui Cascais — volume que permite que agora contemplemos os que talvez sejam os
últimos gestos textuais de Camilo Pessanha que poderemos recobrar: as correções
que ele fez aos seus versos publicados na revista Centauro.
Com base nesse trabalho, o meu próprio terá de ser,
com a alegria imaginável de poder levar a cabo uma empreitada de tantos anos,
refeito, emendado, acrescido. É a tarefa a que, em breve, me dedicarei.
Quando me debruçar sobre as páginas da Centauro, generosamente reproduzida
pelos pesquisadores, por certo visitarei outra vez na memória, agora com a
nostalgia que o longo intervalo permite, a sala bem iluminada do Arquivo
Histórico; as ruelas do bazar que talvez já não exista na sua confusão de
comidas, roupas e bicicletas; a água barrenta do grande rio que contemplei nos
longos passeios entre as leituras; a silhueta inesquecível da ponte; o ruído,
ao meio-dia, das pedras do mahjong; a balbúrdia dos pássaros e dos cantores, no
raiar do dia, junto à gruta de Camões.
março, 2006
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