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domingo, 17 de junho de 2012

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, Marco Cremasco

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, de Marco Cremasco*
                     

   Marco Cremasco era já bem conhecido como poeta, tradutor e diretor de uma revista de poesia quando surpreendeu os seus amigos e leitores com um belo romance histórico, premiado pelo SESC em 2003 e finalista do Jabuti de 2005: Santo Reis da Luz Divina.
   Quatro anos depois, publica este volume, com 11 histórias intituladas “prováveis”.
   O que seriam histórias prováveis? perguntará o leitor – como eu mesmo me perguntei, quando tive notícia do livro.
   Como o autor é um cientista respeitado, autor de livros também na área da engenharia química, a primeira tentação é imaginar que se trata de um livro experimental. Não no sentido que se dá a essa palavra em arte, porque a arte experimental nada tem a ver com a ciência experimental, uma vez que os eventuais resultados que obtém só servem àquele livro no qual eles são experimentados ou à identificação do estilo do autor que os experimentou pela primeira vez. Mas experimental no sentido científico: histórias que podem ser provadas, histórias comprováveis.
   Basta, entretanto, que o leitor percorra as primeiras páginas para verificar que não deve ser esse o sentido da palavra que nomeia o volume e qualifica as narrativas, uma vez que o título do livro é também o título da primeira história, e nesta se juntam fragmentos escritos por um louco, redigidos talvez sob o impulso de notícias de jornal e tendo como método de escrita uma espécie de associação de palavras.
   Não sendo desde logo demonstráveis – pensa o leitor – talvez estas histórias se denominem “prováveis” no sentido de apresentarem situações ou enredos com possibilidade de acontecer. Mas essa suposição é também desmentida pelos fatos, ou melhor, pelos contos, pois “A paixão segundo qualquer pecado” é nada menos do que uma alegoria moral, no velho estilo.
   Se o leitor ainda não desistiu de procurar um sentido para o titulo, resta-lhe ainda uma possibilidade, antes de abandonar o dicionário e o desejo de interpretar.
   Nesse último sentido, as histórias seriam prováveis porque a sua inaceitabilidade ainda não foi cabalmente demonstrada. É uma das definições dicionarizadas. E daria conta de partes do livro, pois ainda não foi completamente demonstrado, por exemplo, que uma onça não possa viver despercebida na cidade grande, que um sujeito que se chama Cravo não possa relacionar-se exclusivamente com pessoas que tenham nomes também extraídos do reino vegetal, ou que os animais não possam organizar-se em assembléia e produzir longos discursos que se assemelhem a bem conhecidos discursos humanos.
   Mas já aqui estamos falando de outra coisa: seriam prováveis essas histórias porque especulariam sobre o funcionamento da sociedade e da psique humana? E seria ainda provável uma história na qual a lógica apanha da narrativa, porque ela traz, sobre os mesmos pontos do enredo, asserções que podem ser lidas como contrárias? Nesse caso, o que quereria dizer, então, “prováveis”? Seria somente uma provocação, forçando a leitura realista de textos ostensivamente não realistas? Ou seria um jogo irônico do autor com uma expectativa de leitura em alta nestes tempos nos quais o documento, o testemunho e o relato jornalístico ganham grande espaço no campo literário?
   E como o nome do livro é também o nome da primeira história, na qual o narrador afirma transcrever os fragmentos do caderno de um desvairado, talvez as histórias prováveis sejam apenas as histórias possíveis de escrever numa sociedade louca, por um louco.

   Sob a efígie ambígua da loucura, por conta do título do livro ser o da primeira história, movem-se as demais e se contaminam com a sua atmosfera, de modo que o leitor experimenta ali uma espécie de pesadelo da razão. Pensei primeiro em “sono da razão”, por conta da gravura de Goya, “O sono da razão cria monstros”, mas depois vi que o nome melhor seria o que Ernest Pawel usou para a biografia de Kakfa: o pesadelo da razão.
   Porque não se trata do adormecer da razão, e sim do seu funcionamento errático e exacerbado, que se manifesta como sensível desígnio de representação do mundo atual.
   O mundo das “histórias prováveis”, entre outras coisas, é como uma imagem refletida num espelho irregular: a distorção torna ridículos os traços, irreconhecíveis os detalhes, mas mantém identificado o objeto que está no reflexo.
   A “ratoria” invadida em “A invasão dos ratos” não só parece repercutir a penúltima invasão da reitoria da Unicamp (quando os estudantes estavam mascarados), mas prenuncia com a última, produzida depois do livro estar na praça (p. 68). A ficção burlesco-científica de “As leveduras” tem este trecho:

Toda área agriculturável destinada a feijão, arroz e outros gêneros alimentícios foi direcionada à plantação da cana-de-açúcar. No começo, houve aceitação; hoje vive-se em sua função. (...) A terra está explorada nos três cortes anuais de cana. Planta-se cana a todo custo. Vive-se por ela. Hoje é o dia de hoje; o amanhã será consumido na perspectiva do desemprego ou do trabalho forçado. Não há saída, pois o país está pobre e dominado por biomassa e destilarias de álcool. (p. 56)

   Essas palavras poderiam ter sido retiradas de um discurso de Fidel Castro contra o projeto do etanol. Ou poderiam ser ouvidas em uma viagem pelo interior do país. Ou ainda, ter sido colhidas diretamente num jornal qualquer.
   Mas ao mesmo tempo, e em contraposição a períodos graves como esse (no qual apenas um pequeno trecho rimado destoa da platitude discursiva), domina essas histórias o gosto (e talvez a obsessão) do livre jogo lingüístico, que em alguns casos faz com que o texto se aproxime da poesia, devido ao gosto da rima e da paronomásia, da enumeração exaustiva e algo caótica, do choque dos registros do discurso e da construção por palavra-puxa-palavra. Como neste trecho de “A onça-parda”:

Os homens reclamavam da má sorte, da morte do dia que não deu em bom para a pescaria. Nada havia nas caixas de surpresa naquela represa de insolação superficial. Na face descorada das putas, os garis varriam bitucas e sugavam salivas dos bordéis.

   Não se trata, porém, de livre-associação. Não há sombra de surrealismo, ou melhor, do método surrealista, que busca fazer aflorar aquilo que não tem controle ou razão.
   Pelo contrário, o controle da razão em pesadelo se afirma todo o tempo, principalmente por meio do caráter ostensivamente alegórico dos textos.
   A alegoria é uma forma da totalização do obscuro, do fragmentário. Ou é uma forma de fragmentar e obscurecer momentaneamente uma totalidade, para melhor revelar o conceito, quando a decifração se apresenta.
   A alegoria consiste em remeter um conjunto de elementos a outro, que funciona como a sua chave, que o totaliza num sentido pleno.
   As partes de um discurso alegórico que não remetem à chave são desprezadas na decifração. Assim, usualmente não importa a forma dos artelhos da estátua da justiça, nem as suas feições, nem o modelo da túnica.
   Ora, neste livro, os procedimentos mais perturbadores são os que, por dentro, corroem a alegoria. O primeiro consiste em tornar tudo plano, sem hierarquia, produzindo uma alegoria obscura, que, pela impossibilidade de totalização, namora o caos. O segundo consiste em chamar a atenção para aquilo que, na alegoria, não faz parte do sentido principal, produzindo rastros de sentido, que atravessam o texto e brilham em frases soltas, cenas esboçadas, para logo se perderem em non sense, ostentação de perícia, comprazimento na facilidade da composição e, principalmente, na ostensiva regressão às formas populares do apólogo e da fábula infantil que dominam o fluxo narrativo.
   A máquina de produção de sentido nessas histórias funciona do modo vário, mas o princípio da construção lingüística, que é o que dá o tom especial dessas onze histórias reunidas em volume, está sempre em evidência.
   O autor parece empenhado em construir fábulas, alegorias e apólogos que possam ser lidos como críticas de uma situação-limite a que chegou a humanidade, que explicitam mesmo o seu caráter de parábola. Mas essas parábolas terminam por se colorir, por força de um tom geral curiosamente infantil – que produz o humor pelo tratamento lúdico da linguagem e das situações narrativas –, de uma cor cambiante, entre a melancolia, a ironia resignada e o sarcasmo.
   De modo que, ao final do percurso da leitura, sobressai não o gesto alegórico ou efabulador, mas o quase agressivo trabalho de linguagem, que às vezes parece, de tão ostensivo, inconveniente.
   E é então que, ao fechar o livro e voltar a olhar para capa o leitor pode aventar  outra explicação para o título. Já não se trataria de uma afirmação, isto é, de dizer que as histórias são prováveis. Agora, um sentido dubitativo pode recobrir o título enigmático: são prováveis histórias. No sentido de que não é certo que sejam mesmo histórias.
   São, por um lado, histórias, os textos que o autor reuniu nesse livro. Mas também são, em medida vária, algo entre a poesia, a piada, a fábula infantil e o conto. Uma forma mutante, larvar, intermediária, que não é bem uma coisa, nem é bem a outra.
   É essa corrosão da forma que o livro afirma. E é nela que reside o seu caráter singular: ele nos traz quase-alegorias de quase-vidas; apresenta-nos, dissolvidas num riso amargo e regressivo, as efabulações possíveis num tempo e numa sociedade cada vez mais improváveis.


* Texto lido no lançamento do livro, no dia 24 de maio de 2007, na FNAC Campinas.

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