O
pesadelo da razão – Histórias prováveis,
de Marco Cremasco*
Marco
Cremasco era já bem conhecido como poeta, tradutor e diretor
de uma revista de poesia quando surpreendeu os seus amigos e leitores com um
belo romance histórico, premiado pelo SESC em 2003 e finalista do Jabuti de
2005: Santo Reis da Luz Divina.
Quatro anos depois, publica este volume, com 11 histórias intituladas
“prováveis”.
O que seriam histórias prováveis? perguntará o leitor – como
eu mesmo me perguntei, quando tive notícia do livro.
Como o autor é um cientista respeitado, autor de livros
também na área da engenharia química, a primeira tentação é imaginar que se
trata de um livro experimental. Não no sentido que se dá a essa palavra em
arte, porque a arte experimental nada tem a ver com a ciência experimental, uma
vez que os eventuais resultados que obtém só servem àquele livro no qual eles
são experimentados ou à identificação do estilo do autor que os experimentou
pela primeira vez. Mas experimental no sentido científico: histórias que podem
ser provadas, histórias comprováveis.
Basta, entretanto, que o leitor percorra as primeiras
páginas para verificar que não deve ser esse o sentido da palavra que nomeia o
volume e qualifica as narrativas, uma vez que o título do livro é também o
título da primeira história, e nesta se juntam fragmentos escritos por um
louco, redigidos talvez sob o impulso de notícias de jornal e tendo como método
de escrita uma espécie de associação de palavras.
Não sendo desde logo demonstráveis – pensa o leitor – talvez
estas histórias se denominem “prováveis” no sentido de apresentarem situações
ou enredos com possibilidade de acontecer. Mas essa suposição é também
desmentida pelos fatos, ou melhor, pelos contos, pois “A paixão segundo qualquer
pecado” é nada menos do que uma alegoria moral, no velho estilo.
Se o leitor ainda não desistiu de procurar um sentido para o
titulo, resta-lhe ainda uma possibilidade, antes de abandonar o dicionário e o
desejo de interpretar.
Nesse último sentido, as histórias seriam prováveis porque a
sua inaceitabilidade ainda não foi cabalmente demonstrada. É uma das definições
dicionarizadas. E daria conta de partes do livro, pois ainda não foi
completamente demonstrado, por exemplo, que uma onça não possa viver despercebida
na cidade grande, que um sujeito que se chama Cravo não possa relacionar-se
exclusivamente com pessoas que tenham nomes também extraídos do reino vegetal,
ou que os animais não possam organizar-se em assembléia e produzir longos
discursos que se assemelhem a bem conhecidos discursos humanos.
Mas já aqui estamos falando de outra coisa: seriam prováveis
essas histórias porque especulariam sobre o funcionamento da sociedade e da
psique humana? E seria ainda provável uma história na qual a lógica apanha da
narrativa, porque ela traz, sobre os mesmos pontos do enredo, asserções que
podem ser lidas como contrárias? Nesse caso, o que quereria dizer, então,
“prováveis”? Seria somente uma provocação, forçando a leitura realista de
textos ostensivamente não realistas? Ou seria um jogo irônico do autor com uma expectativa
de leitura em alta nestes tempos nos quais o documento, o testemunho e o relato
jornalístico ganham grande espaço no campo literário?
E como o nome do livro é também o nome da primeira história,
na qual o narrador afirma transcrever os fragmentos do caderno de um
desvairado, talvez as histórias prováveis sejam apenas as histórias possíveis
de escrever numa sociedade louca, por um louco.
Sob a efígie ambígua da loucura, por conta do título do
livro ser o da primeira história, movem-se as demais e se contaminam com a sua
atmosfera, de modo que o leitor experimenta ali uma espécie de pesadelo da
razão. Pensei primeiro em “sono da razão”, por conta da gravura de Goya, “O
sono da razão cria monstros”, mas depois vi que o nome melhor seria o que
Ernest Pawel usou para a biografia de Kakfa: o pesadelo da razão.
Porque não se trata do adormecer da razão, e sim do seu
funcionamento errático e exacerbado, que se manifesta como sensível desígnio de
representação do mundo atual.
O mundo das “histórias prováveis”, entre outras coisas, é
como uma imagem refletida num espelho irregular: a distorção torna ridículos os
traços, irreconhecíveis os detalhes, mas mantém identificado o objeto que está
no reflexo.
A “ratoria” invadida em “A invasão dos ratos” não só parece
repercutir a penúltima invasão da reitoria da Unicamp (quando os estudantes
estavam mascarados), mas prenuncia com a última, produzida depois do livro
estar na praça (p. 68). A ficção burlesco-científica de “As leveduras” tem este
trecho:
Toda área agriculturável destinada a feijão, arroz e
outros gêneros alimentícios foi direcionada à plantação da cana-de-açúcar. No
começo, houve aceitação; hoje vive-se em sua função. (...) A terra está explorada
nos três cortes anuais de cana. Planta-se cana a todo custo. Vive-se por ela.
Hoje é o dia de hoje; o amanhã será consumido na perspectiva do desemprego ou
do trabalho forçado. Não há saída, pois o país está pobre e dominado por
biomassa e destilarias de álcool. (p. 56)
Essas palavras poderiam ter sido retiradas de um discurso de
Fidel Castro contra o projeto do etanol. Ou poderiam ser ouvidas em uma viagem
pelo interior do país. Ou ainda, ter sido colhidas diretamente num jornal
qualquer.
Mas ao mesmo tempo, e em contraposição a períodos graves
como esse (no qual apenas um pequeno trecho rimado destoa da platitude
discursiva), domina essas histórias o gosto (e talvez a obsessão) do livre jogo
lingüístico, que em alguns casos faz com que o texto se aproxime da poesia, devido
ao gosto da rima e da paronomásia, da enumeração exaustiva e algo caótica, do
choque dos registros do discurso e da construção por palavra-puxa-palavra. Como
neste trecho de “A onça-parda”:
Os homens reclamavam da má sorte, da morte do dia que
não deu em bom para a pescaria. Nada havia nas caixas de surpresa naquela
represa de insolação superficial. Na face descorada das putas, os garis varriam
bitucas e sugavam salivas dos bordéis.
Não se trata, porém, de livre-associação. Não há sombra de
surrealismo, ou melhor, do método surrealista, que busca fazer aflorar aquilo
que não tem controle ou razão.
Pelo contrário, o controle da razão em pesadelo se afirma
todo o tempo, principalmente por meio do caráter ostensivamente alegórico dos
textos.
A alegoria é uma forma da totalização do obscuro, do
fragmentário. Ou é uma forma de fragmentar e obscurecer momentaneamente uma
totalidade, para melhor revelar o conceito, quando a decifração se apresenta.
A alegoria consiste em remeter um conjunto de elementos a
outro, que funciona como a sua chave, que o totaliza num sentido pleno.
As partes de um discurso alegórico que não remetem à chave
são desprezadas na decifração. Assim, usualmente não importa a forma dos
artelhos da estátua da justiça, nem as suas feições, nem o modelo da túnica.
Ora, neste livro, os procedimentos mais perturbadores são os
que, por dentro, corroem a alegoria. O primeiro consiste em tornar tudo plano,
sem hierarquia, produzindo uma alegoria obscura, que, pela impossibilidade de
totalização, namora o caos. O segundo consiste em chamar a atenção para aquilo
que, na alegoria, não faz parte do sentido principal, produzindo rastros de
sentido, que atravessam o texto e brilham em frases soltas, cenas esboçadas,
para logo se perderem em non sense,
ostentação de perícia, comprazimento na facilidade da composição e,
principalmente, na ostensiva regressão às formas populares do apólogo e da
fábula infantil que dominam o fluxo narrativo.
A máquina de produção de sentido nessas histórias funciona
do modo vário, mas o princípio da construção lingüística, que é o que dá o tom
especial dessas onze histórias reunidas em volume, está sempre em evidência.
O autor parece empenhado em construir fábulas, alegorias e
apólogos que possam ser lidos como críticas de uma situação-limite a que chegou
a humanidade, que explicitam mesmo o seu caráter de parábola. Mas essas
parábolas terminam por se colorir, por força de um tom geral curiosamente
infantil – que produz o humor pelo tratamento lúdico da linguagem e das
situações narrativas –, de uma cor cambiante, entre a melancolia, a ironia
resignada e o sarcasmo.
De modo que, ao final do percurso da leitura, sobressai não
o gesto alegórico ou efabulador, mas o quase agressivo trabalho de linguagem,
que às vezes parece, de tão ostensivo, inconveniente.
E é então que, ao fechar o livro e voltar a olhar para capa
o leitor pode aventar outra explicação
para o título. Já não se trataria de uma afirmação, isto é, de dizer que as
histórias são prováveis. Agora, um sentido dubitativo pode recobrir o título
enigmático: são prováveis histórias. No sentido de que não é certo que sejam
mesmo histórias.
São, por um lado, histórias, os textos que o autor reuniu nesse
livro. Mas também são, em medida vária, algo entre a poesia, a piada, a fábula
infantil e o conto. Uma forma mutante, larvar, intermediária, que não é bem uma
coisa, nem é bem a outra.
É essa corrosão da forma que o livro afirma. E é nela que
reside o seu caráter singular: ele nos traz quase-alegorias de quase-vidas; apresenta-nos,
dissolvidas num riso amargo e regressivo, as efabulações possíveis num tempo e
numa sociedade cada vez mais improváveis.
* Texto lido no lançamento do livro,
no dia 24 de maio de 2007, na FNAC Campinas.
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