TEXTOS DISPONÍVEIS

sábado, 15 de junho de 2013

Eça: A Ilustre Casa de Ramires



Um patife encantador?


 [texto publicado no volume  A ilustre casa de Ramires - 100 anos. org. por Beatriz Berrini.São Paulo: PUC-SP, 2000]



Gonçalo Mendes Ramires, o “protagonista absorvente, em redor de quem giram as demais personagens e tramas” do romance A Ilustre Casa de Ramires é, segundo Beatriz Berrini, “uma das mais felizes criações de Eça de Queirós, uma de suas personagens mais bem delineadas” e “uma das figuras mais bem trabalhadas do ponto de vista psicológico”.[1] Esse é também o pensamento de Álvaro Lins, que julga Gonçalo “a mais analisada e a mais conhecida” de todas as personagens queirosianas, a que melhor se oferece à contemplação do leitor.[2] E Carlos Reis por sua vez anota que é “n’A Ilustre Casa de Ramires e no processo de análise psicológica de Gonçalo Mendes Ramires que a focalização interna atinge o ponto mais elevado de uma curva evolutiva que tem como forçosa contrapartida a desvalorização da onisciência do narrador”.[3]
Mas quem é Gonçalo Mendes Ramires? Como poderíamos definir essa personagem cuja perspectiva “comanda a representação narrativa ao longo da quase totalidade do discurso”?[4]
Para António Sérgio, era uma criatura ficcional caracterizada pela “inércia psíquica”. Uma criatura cujo perfil psicológico e moral traçou nestas palavras: “ante as inclinações fisiológicas do seu ser orgânico e as forças exteriores que sobre ele atuam, o desgraçado é uma coisa que se deixa ir.”[5]
Já para João Gaspar Simões, Gonçalo parecia psicologicamente inconvincen­te: “em toda a obra do romancista não há maior títere que este Gonçalo Ramires”.[6]  E o mesmo pensava, em 1945, António José Saraiva, para quem o protagonista de A Ilustre Casa era uma personagem sem “personalidade própria”, que apenas obedecia a um “esquema preconcebido”.[7]
Em termos morais, o resultado da análise a que a personagem é submetida produz, segundo Simões, um ser algo desprezível, senão mesmo incongruente:

quando é bom, generoso e humano, Ramires não dá por isso; age naturalmente. (...) Pelo contrário, quando é cobarde, acomodatício ou torpe, é-o de forma tão refletida, tão ponderada, tão consciente que, a não ser um novo Maquiavel, só poderá ser um cretino.[8]

E Beatriz Berrini, que o descreve como “um ambicioso de poder, que tudo sacrifica para conseguir subir politicamente ou para obter a sonhada fortuna, inclusive a honra, sua e da irmã”, também o considera “um covarde, que pelo romance afora, quase até o final, é alguém dominado pelos outros, temeroso de tomar esta ou aquela atitude”.
O retrato moral de Gonçalo não é melhor em outros textos importantes da bibliografia sobre o romance: trata-se sempre, em medida variável, de um patife. A divergência única diz respeito à extensão temporal da sua canalhice. Para alguns, a história de Gonçalo é a de uma metamorfose e a personagem finalmente se redime e reforma; para outros, não há qualquer transformação profunda. Entre os primeiros está a maior parte da fortuna crítica, que seria, por isso mesmo, ocioso referir; entre os segundos, o caso mais ilustrativo é o de Marie-Hélène Piwnik, que não precisa senão de um texto muito breve para demonstrar de forma muito convincente que, sob todos os aspectos, Gonçalo é um “degenerado”, sem nenhum momento de grandeza, nem perspectiva de regeneração.[9]
Esse conjunto de defeitos torna Gonçalo, como reconhece Beatriz Berrrini, “alguém que deveria merecer a nossa reprovação moral e não o nosso apreço”.[10] Sem dúvida. Mas o modo verbal da frase já deixa ver que essa personagem, apesar de toda a sua configuração moral negativa, pode ainda receber o apreço do leitor. E é de fato o que ela afirma, logo em seguida:

Todavia, Gonçalo é uma personagem encantadora, dotado de extrema sedução, que nos conquista justamente pela sua fraqueza, que ele não deixa de reconhecer e que o leitor acompanha graças ao monólogo interior. Como não perdoar e amar este jovem fidalgo, consciente e arrependido, enredado nas preocupações de uma carreira político-social e, simultaneamente, apegado ainda aos códigos de sua classe? Fidalgo de uma nobreza genuína, mais antiga que o reino, aparece ao mesmo tempo muito próximo dos pequeninos, dos humildes, dos subalternos. Como escapar ao seu peculiar encanto?[11]

É claro, portanto, que há aqui um problema. Depois de traçado o retrato psicolológico e moral de Gonçalo, o que exatamente significa o movimento de adesão emocional que a autora descreve neste trecho? Que ele existe, fica evidenciado porque esse trecho foi escrito. Que não é idiossincrático revela-o sem lugar para dúvida a leitura da fortuna crítica do livro. De fato, não só a ‘metamorfose’ de Gonçalo, a sua ‘regeneração’ é descrita em vários textos de forma muito positiva, quando não entusiasmada, mas ainda se viu muito reiteradamente em Gonçalo uma personificação do próprio Eça de Queirós – o que seria inimaginável se a personagem fosse univocamente canalha ou irresponsável.[12] Esses testemunhos atestam a aura sedutora de Gonçalo. A pergunta a responder é, portanto: o que é que, no livro, produz ou estimula a adesão do leitor à personagem Gonçalo?


1. Primeira tentativa de resposta: o meio.


Uma das maneiras de o romance produzir a adesão do leitor à personagem Gonçalo poderia ser o acentuado contraste que nele se estabelece entre o protagonista e o seu ambiente. Gonçalo é moralmente fraco; é mesmo bastante cínico e calculista; e também não resta dúvida de que ele não se destaca nem pela cultura, nem pelas realizações pessoais. Tem, entretanto, pelo menos um momento de bondade desinteressada e suas crises de arrependimento denotam alguma consciência do seu caráter miserável. Para gostar dele parece ser preciso, como anota Beatriz Berrini na frase citada no início deste texto, “perdoá-lo”. Uma das formas de perdoá-lo é justificá-lo. E um dos caminhos para isso é a constatação de que as demais personagens do romance não são melhores do que ele. E não o são porque, ou são inferiores a Gonçalo em caráter, ou nem chegam a ter qualquer densidade psicológica. André Cavaleiro, por exemplo, é uma figura vulgar, quase repelente na sua prepotência. Barrolo é um rústico pouco elegante e ainda menos inteligente do que elegante. As irmãs Lousadas são desprezíveis moralmente, além de muito feias de corpo e de caráter. Graça não tem muita substância anímica: nem sequer parece ter dúvidas íntimas ou remorsos. As demais personagens, mesmo as mais simpáticas como o Padre Soeiro, não aparecem retratadas de corpo inteiro, mas são apenas perfis fixos, com valor imutável.
Essa percepção é, evidentemente, produzida pela específica conformação do foco narrativo do romance. Durante quase todo o livro, o mundo é, direta ou indiretamente, avaliado pelo olhar de Gonçalo, e até o final do penúltimo capítulo, o leitor sabe o que Gonçalo sabe, e pouco mais. Por estar tão colado o foco narrativo à perspectiva da personagem, é muito freqüente o trânsito do discurso indireto livre para o monólogo interior. De modo que as informações que o leitor tem sobre o ambiente de Gonçalo são mediadas pela sua consciência, apresentadas em função dos seus interesses e expectativas.
Cabe assim à ‘focalização interna’ o papel principal na captação da simpatia do leitor. E ela o faz não apenas porque lhe dá uma visão muito rebaixada do meio em que se move a personagem, mas também porque lhe representa os vários movimentos mentais da personagem. Vendo pelos olhos de Gonçalo, o leitor participa da sua repulsa pelo ambiente provinciano, desprovido de dignidade, inteligência e densidade moral. Junto com ele, anseia pela tal fenda no muro que empareda no “buraco rural” um homem que, apesar de tudo, reúne algumas poucas qualidades e tem um par de gestos dignos. E por isso mesmo é levado a entender todos os gestos mais ou menos ignóbeis de Gonçalo como uma tentativa de jogar segundo as regras do jogo do ambiente do qual procura se evadir. Contrariamente ao que parece ter sentido João Gaspar Simões, essa personagem que é boa quando segue o instinto e má quando segue os cálculos racionais – mais que isso: que se dá bem quando segue o instinto e se dá mal quando age calculadamen­te – nada tem de maquiavélica, e só é cretina enquanto tenta se adaptar a um meio que é apresentado ao leitor como inferior a ela. Ou seja: é uma personagem de extração romântica, e, sem ter grandes qualidades pessoais, ainda assim se constitui, por causa do meio em que se situa, como mais um agrilhoado que anseia – e o leitor com ele – por libertação.
Mas não é apenas a “focalização interna” que sublinha o contraste entre o protagonista e o seu ambiente. Em vários momentos da narrativa, o ponto de vista se inverte, e o que é oferecido ao leitor é a representação que, de Gonçalo, têm algumas personagens representativas do meio em que ele vive. A cena em que se dá essa inversão de perspectiva de modo mais forte e evidente é a que encerra o romance. Mas há várias outras, mais ou menos filtradas pela consciência de Gonçalo, como, por exemplo, o encontro de Gonçalo com Cavaleiro na sede da Administração ou os vários relatos indiretos das manifestações populares por ocasião das eleições.
O resultado desse contraste é um argumento deste tipo: ainda com toda a sua canalhice, Gonçalo parece mais digno (ou pelo menos mais completo, e, por isso, mais humano) do que as personagens com as quais convive.
Mas há ainda um aspecto a considerar nas relações do protagonista com o seu meio: o espelhamento dos olhares. Em várias ocasiões, principalmente no final do romance, esse olhar de fora é contemplado pelo próprio Gonçalo, que se surpreende por ser alvo de tanta admiração e amor. Desses momentos de gratificação, o mais forte é a apoteose da eleição, em que Gonçalo é celebrado com foguetes e seu retrato é levado como uma bandeira por uma procissão. No que diz respeito à imagem que têm do protagonista as demais personagens, não há como o leitor não reparar em como são pequenos os atos de Gonçalo que lhe granjeiam afeto e respeito tão grandes. Abrigar da chuva uma criança cujo pai traíra e mandara para a cadeia torna-o quase um anjo. Uma cesta de flores que envia a uma menina, torna-o um primor de gentileza e boa educação. E ceder a sua montaria a um homem ferido é um ato de tal maneira inaudito que produz uma espécie de santificação popular. Os atos são irrisórios, mas não os efeitos que produzem. Daí que possa parecer necessário buscar uma explicação para a desproporção entre eles. É certo que entre Gonçalo e Cavaleiro se estabelece um contraste muito claro: de um lado, o fidalgo de velha cepa, decadente, porém elegante e paternal para com os humildes; de outro, o fidalgo recente, arrogante e brutal no trato com os inferiores. Dessa oposição, o leitor poderia retirar uma explicação para a repercussão dos gestos gentis de Gonçalo: eles seriam apenas catalisadores que poriam em ação o amor incondicional do povo pelos fidalgos velhos de Portugal. Embora já se tenha lido assim, não parece que seja a leitura mais verossímil. Outra forma de entender o sucesso popular de Gonçalo seria esta: a reação muito positiva aos seus gestos gentis indicaria apenas que era muito pouco, ou quase nada, o que se poderia esperar de um fidalgo português no final do século XIX, fosse ele de família velha ou de família nova. Seja como for, num ambiente que é sempre mesquinho, o fidalgo Gonçalo pelo menos tem a qualidade de ser sentimental e, vez por outra, generoso.
O olhar externo, assim – seja o olhar mais ou menos anônimo do povo que promove a apoteose de Gonçalo, seja o olhar do Padre Soeiro no final do livro –, só parece reafirmar, no romance, a qualidade fundamental e talvez única do caráter de Gonçalo: a bondade, que o torna amorável apesar dos graves defeitos que possui.
Ao lado desse olhar externo, ou melhor – precedendo esse olhar externo – há o olhar introspectivo do próprio protagonista, que se desnuda e se acusa perante o leitor. Do ponto de vista dos ângulos pelos quais é visto Gonçalo, a história desse romance é a história da incorporação do ponto de vista externo pelo ponto de vista interno. O destino da personagem está completo quando ela compreende como era olhada pelos outros. Ou melhor, quando consegue olhar para si mesma da forma como era e é olhada pelos outros; quando vê que é espontaneamente amada e não necessitava dos subterfúgios torpes para conseguir o que queria conseguir. Nesse momento, interrompe-se a focalização interna, e Gonçalo passa a ser apenas matéria de relatos de terceiros.
Acompanhando, de um lado, o olhar introspectivo auto-referenciado e, do outro, o olhar externo mais ou menos anônimo (que desde o começo se carrega de expectativas que aparentemente se vão realizando até terminar em apoteose), está o olhar do leitor. O que ele vê é o sentido da incorporação de um no outro, o sentido da realização das expectativas. E esse sentido é um só: promover a coincidência das espontaneidades. É essa coincidência que se desenha ao longo do texto como desejo difuso de restauração da ordem. E é a bondade espontânea de Gonçalo, assim promovida a princípio de ordenação ou reordenação do mundo, que permite que um acontecimento boçal como uma eleição provinciana possa ser credivelmente apresentada como um momento de apoteose que produz a única reflexão elevada da personagem Gonçalo, que é a meditação a que se dedica no alto da Torre.


2. Segunda tentativa de resposta: raça e paisagem.


Logo no início do romance, o narrador traça a história dos Ramires, que é homóloga à de Portugal. Entretanto, os Ramires não são, como os heróis de Oliveira Martins, hegelianas encarnações de forças coletivas. Não são símbolos ou singularizações de forças existentes no corpo político da nação. Por isso se afirma tantas vezes que a sua Casa é anterior Portugal, e por isso também na sua história está escrito: “Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça”. Não por causa da nação. Nem mesmo junto com a nação. A relação é de homologia, e não de causa/efeito ou de identidade. Os Ramires são alguma coisa de mais antigo do que a constituição política do reino: são a encarnação do fundo primitivo, da raça portuguesa.
Gonçalo é o último representante dessa família. A sua história pessoal pode ser compreendida como uma história de recuperação das origens, de recuperação da vitalidade da raça. Nesse enredo, o momento da virada é a recusa do título de Marquês de Treixedo que lhe é oferecido pelo rei, por intermediação de André Cavaleiro. Na sua resposta, diz Gonçalo: “ainda não havia Reis de Portugal, nem sequer Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo”. E baseado no privilégio da antigüidade, propõe-se, ao invés de aceitar o título, a conceder um semelhante ao rei de Portugal. Na seqüência, vem a eleição triunfante e a meditação noturna, em que Gonçalo sente “como se a energia da longa raça, que pela Torre passara, refluísse ao seu coração”. E por fim, no fecho do livro, depois de Titó afirmar que Gonçalo tem vários defeitos , mas também “tem a raça que o salva”, Gouveia ainda reitera, como traço que identifica Gonçalo a Portugal, “aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos...”
Tudo isso quer dizer apenas que, se Gonçalo é uma alegoria de Portugal, é uma alegoria fundada numa identificação que não se faz no nível da nação, das forças políticas e sociais, mas no nível da raça, do substrato étnico ou emocional que Eça reconhecia sob esse nome. Assim sendo, o sentido apoteótico da eleição pode ser entendido como uma renovação do clã primitivo, uma celebração da atualização da energia da velha e longa raça portuguesa.
Vendo por esse ângulo, não seria possível que, para um certo tipo de leitor, um convite à adesão emocional estivesse justamente na encenação de uma recusa ao mundo político e moderno, e de uma concomitante revivescência do laço profundo, do afeto que solda, na imaginação romântica, as pessoas de um mesmo sangue? Na trajetória de Gonçalo não se passa do mundo da humilhação frente aos poderes constituídos ao mundo do afeto desinteressado, ao mundo menos racional, em que ainda está latente a antiga vassalagem ao representante mais legítimo da raça? No momento do ‘triunfo’ político de Gonçalo, a história também não se deixaria ler como alegoria do afeto irracional que une o líder do clã e os seus seguidores? Nesse caso, a eleição de Gonçalo pode ser vista como a afirmação do mesmo tipo de valores que ele tentara recuperar na sua novela sobre os antepassados. Talvez não seja esse um grande apelo à simpatia do leitor em geral, mas sem dúvida é um convite à adesão emocional de leitores sensíveis ao anseio regressivo e romântico à ordem feudal, pré-moderna: à ordem “natural”.
Seguindo essa linha de leitura, seria preciso destacar a maneira como é construída a frase final do romance. Nela, Padre Soeiro, voltando à Torre, a esse lugar-símbolo da ordem feudal e da raça antiga, ergue uma prece (nesta ordem) para Gonçalo, todos os homens, os campos e casais e “para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável”. A prece de Padre Soeiro, que pouco antes destacara entre as qualidades de Gonçalo a de ser “amorável”, reitera assim a identidade dos Ramires e Portugal, estabelecida no início do romance e reforçada na fala de Gouveia. Mas reitera a reversibilidade afetiva entre um e outro. Como se gostar de Gonçalo e gostar de Portugal fosse mais ou menos a mesma coisa.
A cena final tem grande impacto sensório. Gonçalo, com a sua elegância mundana, seu casamento por interesse, seu destino incerto como fazendeiro na África é apenas uma imagem ao fundo. Desde a meditação na torre, no final do capítulo XI, ele deixa de ser comandar a perspectiva narrativa. Na verdade, desaparece praticamente do romance, e dá lugar à narração dos quatro anos da vida de Gracinha, desde a partida do irmão. São anos vazios, e a focalização na irmã do protagonista acentua o caráter melancólico de uma vida que se reduz, como o divã queimado, a lembranças e a cinzas. Ou seja: sem Gonçalo, a mediocridade da vida provinciana de Gracinha vem subitamente para primeiro plano. A primeira parte do capítulo final é, por tudo isso, uma quebra brutal de ritmo. Um momento deceptivo, após a apoteose da meditação na Torre, mas que por isso mesmo deixa na sombra que Gonçalo esteve, como deputado, e está, como possível ganhador de um grande dote, muito longe de se tornar tudo o que naquela noite sonhou ser. Na seqüência, narram-se os preparativos para receber Gonçalo, as melhorias na quinta. É o ressurgir da vida na velha Torre. Daí a poesia intensa daquele entardecer em que o leitor reencontra três personagens bem conhecidas e sente que, de alguma forma, o ambiente do romance se está de novo recompondo. Que seja Gonçalo o ponto de fuga dessa composição bucólica que termina em piedade e oração pode ser visto como o arremate de uma longa estratégia de sedução, montada ao longo dos onze capítulos precedentes.


3. Terceira tentativa de resposta: o conjunto incongruente.

A Ilustre Casa é um romance de personagem. Em certo sentido, é mesmo um ‘romance de formação’.[13] Assim sendo, a forma como se compreende o sentido da história da figura central, e o que com ela se formou, tem grandes implicações na apreciação do romance como um todo.
Num texto já referido aqui, António José Saraiva, depois de afirmar que Gonçalo é uma personagem que “obedece a um esquema preconcebido”, completa a crítica com esta frase que, dita por ele, equivale a uma reprovação: “é um personagem simbólico, quase alegórico”.[14] Do seu ponto de vista, o desenho “simbólico” não distingue A Ilustre Casa do conjunto da obra de Eça, pois esse modo de construir personagens, situações e enredos é, na sua opinião, que tem a preferência do escritor. O que diferencia este romance e lhe parece francamente intolerável é o que aqui designa como “quase alegórico”, isto é, o “esquema” que torna esse romance ainda mais distante da perspectiva realista:

A Ilustre Casa de Ramires vai até o ponto de conter uma explicação final do simbolismo do protagonista posta na boca de um dos personagens – exatamente como se este fosse uma figura alegórica acompanhada de uma tabuleta com o respectivo nome e explicação.

Não foi apenas A. J. Saraiva que condenou veemente essa ‘tabuleta’, que é a fala de Gouveia. Álvaro Lins julgava-a “um corpo estranho que pede processo operatório”, pois “em romance nada se defende nem se explica”. Mas se para Álvaro Lins talvez bastasse a extirpação que sugere, para A. J. Saraiva essa subtração não eliminaria o defeito central do romance. É que seu reparo se estende à estrutura mesma da trama e à própria forma de composição: nesse livro, escreve ele, tudo “é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício”.[15] A crítica repousa, assim, numa acusação de maquinismo, de construção racional, a que se opõe um ideal de construção “orgânica” da trama e das personagens. Gonçalo, portanto, lhe pareceria necessariamente uma personagem falhada (como parece a Sérgio e a Simões), ainda que não houvesse a explicitação final da leitura alegorizante. E lhe pareceria falhada pela mesma razão que lhe parece falhada a estrutura do romance: porque o seu ponto de vista (como o de Sérgio e o de Simões) privilegia a ‘naturalidade’ da personagem, isto é, privilegia a verossimilhança realista, fundada na coerência da personalidade. Daí que anote: “o desfecho, embora não tenha qualquer verossimilhança psicológica, é profundamente lógico e coerente com todo o pensamento do livro”.[16] E é lógico e coerente porque é artificial e, no limite, falso: “porque seria errôneo pensar que Eça aconselhava a África como programa aos Portugueses do seu tempo. A África aparece nesse romance como um alçapão providenci­al”. Ou seja, além de condenar o alegorismo do livro e da personagem, ainda argúi a mensagem alegórica de falsa, vendo na saída para a África apenas um “deux ex machina”. Ao invés de manter a análise dentro do limite das instâncias narrativas, portanto, Saraiva faz a discussão regredir para a contraposição entre o que está expresso no livro e o que seria a convicção real do cidadão Eça de Queirós. É a última forma de recusa à validade da perspectiva alegorizantes. A última de uma série de contraposições entre a perspectiva ficcional alegórica e a perspectiva da verdade realista que lhe permitem concluir pela falência do romance.
Alguns anos depois, uma aproximação crítica como a de Saraiva praticamente deixou de existir. O interesse não está mais no que Gonçalo é como ser moral. O olhar se desloca para o que ele personifica, para o que ele representa no tecido ficcional. Isto é o mesmo que dizer que, numa clave política, psicanalítica ou mitológica (ou mesmo no velho registro biografizante), o modo atual de ler é alegórico; é o mesmo que dizer que o paradigma da aferição realista parece ter entrado em desuso. As incongruências na personalidade de Gonçalo, apontadas pela geração de António José Saraiva, parecem ter sido deslocadas para o segundo plano de interesse e substituídas por uma leitura, digamos, “integradora”. Assim, se Ramires é uma personificação de Portugal, ou uma personificação de um processo de individuação ou de um percurso iniciático, ou ainda um lugar de atualização de “estruturas míticas arquetípicas”,[17] e se, na análise dos movimentos mentais e das ações de Gonçalo, ele ainda nos aparece como um calhorda ou um parasita social, essas características só terão interesse se colocadas em função de um quadro alegórico amplo. Sendo seus defeitos de caráter lidos como índices que apontam para elementos identificados no quadro histórico-social de depois do Ultimatum, sendo sua incongruência facilmente assimilada ao que de fato parece interessar, que é um processo transcendente, do qual Gonçalo é apenas um elemento ou um palco, o leitor de hoje tem menos resistências que o do tempo de Saraiva ou António Sérgio. Tem, portanto, muitas possibilidades mais de aderir, mesmo que episodicamente, à personagem sobre a qual se concentra o foco narrativo.


4. Quarta e última tentativa de resposta: heroísmo e intimidade

Para encerrar, voltemos à idéia que abre a parte anterior: A Ilustre Casa de Ramires pode ser lida como um romance de formação. A questão que se apresenta agora é: nesse romance de formação, o que ou quem se forma?
Essa pergunta equivale a indagar qual é o sentido da transformação de Gonçalo, depois da visita dos antepassados, da briga de estrada e do sucesso nas eleições. Uma resposta que o próprio romance dá é esta: Gonçalo perde “a desconfiança, essa encolhida desconfiança de si mesmo”, que experimentara durante tantos anos e que, no momento da peripécia, julga ter sido a causa de todas as suas fraquezas e atos torpes anteriores. E o que muda nele com isso? Aparentemente, o que muda é que ele pode, sem deixar de ser um jovem muito elegante, sem deixar de ser um nobre de antiga nobreza respeitado por todos seus pares, atirar-se a uma empresa muito mais própria de um burguês e, finalmente, namorar uma senhora rica, mas de classe inferior. Mas já antes da reviravolta no seu destino não era exatamente isso o que ele se dispunha a fazer? Não planejara o casamento com a neta do açougueiro? Não buscara os votos dos povos para se eleger deputado constitucional? Não negociara desonestamente a renda das suas terras? E não continuara sendo o jovem amorável, o fidalgo de velha casta, admirado por quase todos?
A mudança que se opera em Gonçalo é, pois, uma transformação basicamente psíquica, uma mudança de ânimo, uma “infusão” de coragem, de auto-confiança. As causas da mudança permanecem inexplicadas. Talvez a escrita de uma novela, metade plágio e metade pastiche de obras alheias, em que vivencia seguidamente os choques entre a fantasia compensatória e a realidade deceptiva seja uma causa. Talvez uma miragem que teve em certa noite de extrema depressão, quando se sentia mais esmagado pela consciência do seu caráter fraco e da sua vida falhada. De qualquer forma, a mudança parece provir de sua própria atividade imaginativa, pois alguns dos fantasmas do desfile noturno só eram reconhecíveis e identificados individualmente porque Gonçalo, na sua história ou nas suas divagações, assim os havia imaginado: “reconhecia as feições dos velhos Ramires (...) por ele assim concebidas, como concebera as de Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor dos seus feitos”.
Gonçalo é, portanto, um herói que se faz por si mesmo, após uma grande purgação. Que se sente herói por uma súbita transformação em que tem um grande papel a imaginação. É verdade que é pouco o que obtém depois. Mas já é mais do que possuía antes e, de qualquer forma, o que parece central é a percepção que tem de si mesmo após a transformação. Mais do que um herói por si mesmo, Gonçalo é, assim, um herói para si mesmo. Quando se torna auto-satisfeito, cessa o monólogo interior auto-acusatório. A focalização na personagem, que dava o tom do discurso irônico, deixa de ser necessária e a ironia do narrador desliza para outros elementos compositivos ou, como pensam Óscar Lopes e A. J. Saraiva, desaparece completamente.
Nesse momento de pacificação das tensões discursivas, o leitor pode sentir-se mais propenso a aderir afetuosamente ao sujeito humilde que, após um longo período de provações, finalmente triunfa sobre si mesmo e varre do seu caráter o defeito mais grave, que era a covardia. E assim, quando os três provincianos se despedem, depois de fechar o romance com a louvação da bondade e do sucesso real ou imaginário de Gonçalo, e depois de explicitado que o último Ramires é uma personificação de Portugal e, portanto, seus defeitos ou são alegorias ou são os defeitos de todos os demais, apenas sintetizados no derradeiro exemplar da família mais antiga do Reino, tem o leitor de reunir todas as suas forças para não aquiescer com a cabeça e não se juntar ao Padre Soeiro na sua prece pela paz de Deus a Gonçalo e à boa terra de Portugal.
                       Se o fizer, desempenhará o papel que lhe parece reservado desde o começo pelo narrador: se não o de cúmplice, pelo menos o de testemunha, condescendente ou enternecida, das desventuras, das trapaças e do ambíguo triunfo de Gonçalo, por seu intermédio alçado da categoria de patife provinciano à de herói modesto, porém adorável.




[1] Beatriz Berrini. Nota. In J. M. Eça de Queirós. Obra Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1997, p. 220. Todas as citações de A Ilustre Casa... serão feitas segundo essa edição.
[2] Álvaro Lins. História literária de Eça de Queirós. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1945.
[3] Carlos Reis. Estatuto de perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós. Coimbra: Almedina, 1975, p. 378.
[4] Carlos Reis. Op. cit., p. 363.
[5] António Sérgio. “Sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Eça de Queirós”. In Ensaios. Vol. VI. Lisboa: Sá da Costa, 1980.
[6] João Gaspar Simões. Vida e obra de Eça de Queirós. Lisboa: Bertrand, 1980, 3ª ed. p. 656.
[7] António José Saraiva. As ideias de Eça de Queirós. Lisboa: Livraria Bertrand, 1992, 2ª ed., p. 51. 
[8] João Gaspar Simões. Cit.
[9] No que diz respeito ao primeiro grupo, mencione-se apenas que Óscar Lopes e A. J. Saraiva estão entre os que entendem que Gonçalo passa por uma “metamorfose moral”: História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 17ª ed., p. 882-3.O texto de Piwnik é o seguinte: “Gonçalo Mendes Ramires: História de uma degeneração.” In Eça e Os Maias cem anos depois. Porto: Universidade do Porto, 1990, pp. 221-6.
[10] Beatriz Berrini. “Introdução geral”. In Obra Completa, vol. I. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 1997, p. 61.
[11] Nota, cit., p. 220-1.
[12] Textos em que a idéia de metamorfose do protagonista vem para o primeiro plano são, por exemplo, os assinados por Lélia Parreira Duarte, Maria Teresa Pinto Coelho e por Paulo Franchetti, no volume 150 Anos com Eça de Queirós. São Paulo: CEP/USP, 1997. Alguns textos em que se aceita ou propõe a identificação Eça/Gonçalo são: o livro de Álvaro Lins há pouco referido, o de Viana Moog (Eça de Queirós e o século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977) e o de Laura Cavalcante Padilha (O espaço do desejo. Brasília: Editora da UnB, 1989).
[13] Uma análise de A ilustre casa como romance de formação se encontra no livro de Laura Cavalcante Padilha.
[14] António José Saraiva. As ideias de Eça de Queirós. Cit., p. 51.
[15] As idéias..., p. 50.
[16] Op. cit., p. 150.
[17] Cf. Maria Teresa Pinto Coelho. “A ilustre casa de Ramires e a questão africana. Entre a história e o mito”. In Apocalipse e regeneração – o Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura finissecular. Lisboa: Cosmos, 1996.

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