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quarta-feira, 12 de junho de 2013

Camilo Castelo Branco: A queda dum anjo



Uma queda para a felicidade

 [texto de apresentação de A Queda dum Anjo, publicado em 1997]


Muitas são as facetas da personalidade literária de Camilo Castelo Branco, que publicou mais de uma centena de volumes e foi uma figura central do Romantismo português. Poeta, polemista, pesquisador de documentos antigos, foi porém como novelista que se celebrizou.
Na obra novelística de Camilo, o veio mais conhecido é o da novela de amor e paixão. Nesse gênero, seu Amor de Perdição (1862) ocupa o lugar de obra-prima. Nessa novela, que fez enorme sucesso, encontramos o traço principal da novelística passional de Camilo: a concepção do amor como uma espécie de destino, de fatalidade, que domina e orienta e define a vida (e a morte) das personagens principais. Marcado pela transcendência, esse amor trará consigo sempre um equivalente de sofrimento e de infelicidade: ou porque a paixão se choca frontalmente com as necessidades do mundo social, ou porque significa, em última análise um desejo luciferino de recuperar o paraíso na terra. Para as suas personagens, basta essa percepção do caráter transcendente da paixão amorosa para que ela acarrete logo um cortejo de sofrimentos: o remorso, a vertigem do abismo, a percepção de que o amor mais sublime é aquele que se apresenta e se revela, em última análise, como impossibilidade. Por isso, nas suas novelas sentimentais desfilam tantos “mártires do amor”, tantos sofredores que, no sofrimento, encontram a razão de ser e o sentido mais profundo da sua vida.
Mas há um outro veio, quase tão rico como o primeiro, na obra de Camilo: a novela satírica, humorística, de crítica de costumes. Nesse gênero, a obra-prima é justamente A Queda dum Anjo.
Entretanto, antes de passar ao comentário dessa novela, talvez valha a pena lembrar que, em 1862, no mesmo ano em que publicou Amor de Perdição, Camilo também lançou sua primeira grande obra de prosa satírica: Coração, cabeça e estômago. Em ambos os gêneros, apesar das óbvias diferenças de enfoque e execução, encontramos as principais características de seu estilo e visão de mundo: a agilidade do diálogo, a notação muito realista e simpática dos costumes e falas populares, a convincente fixação dos traços característicos das personagens e, sobretudo, a crença de que o ideal amoroso não pode ser conciliado com a prática social cotidiana. Só que, enquanto na novela passional a realidade se apresenta principalmente como entrave à realização dos desejos e o mundo se recobre de um sentido trágico em que cada acontecimento ou circunstância se reveste de valor simbólico, na novela satírica não há por sobre os acontecimentos nenhum véu, nem sob eles nenhum sentido transcendente: tudo se passa no nível dos interesses mais imediatos. Isto é: quem fornece as diretrizes da vida das personagens já não é o desejo amoroso, mas a injunção social; não é a paixão, mas o apetite.
Assim sucede em A queda dum anjo, como se verá. Mas há, nessa novela, vários níveis em que se processa a crítica social. Vejamos apenas dois.
Num primeiro plano, o que temos aqui é a crítica da vida portuguesa da época da Regeneração. Calisto Elói, fidalgo, representante do velho Portugal, vai para Lisboa como deputado e passa a contrapor-se ao que julga serem os maus costumes do tempo. É pelos seus olhos que o narrador vai mostrando ao leitor a miséria moral e intelectual do novo mundo político lisboeta, em que o liberalismo produz mau português e muito oportunismo. Entretanto, ambientado na vida citadina e bafejado pelo amor, Calisto transforma-se radicalmente. É durante o processo de transformação que passa a ganhar vulto, na novela,  o segundo plano em que se exerce a ironia do narrador – por meio da manipulação muito hábil do ponto de vista e das expectativas de leitura – e a sua crítica a uma dada concepção da literatura e da sua função na sociedade moderna. Quanto ao primeiro ponto, vale a pena observar como o narrador, depois de conduzir o leitor a uma identificação com o protagonista e de mostrá-lo finalmente cometendo as mesmas faltas que antes censurara nos outros, preocupa-se em manter a nossa simpatia pelo anjo que desceu ao chão, tornando-nos assim, de alguma forma, cúmplices de Calisto. Quanto ao segundo, é só atentar para as provocações que o narrador faz ao leitor, ao prever as suas reações e desmontar alguns dos seus protocolos de leitura. Ainda a esse respeito, o final da novela é exemplar. Depois de intitular um dos últimos capítulos “A felicidade infernal do crime” escreve o narrador/autor: “Eu, como romancista, lamento que ele [Calisto] não viva muitíssimo apoquentado, para poder tirar a limpo a sã moralidade deste conto. Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao Céu número de almas mais vantajoso do que a novela do ano passado”.
Para entender bem a frase, temos de observar que, escrevendo apenas alguns anos depois de Garrett e Herculano, Camilo já vive um outro momento histórico, no que diz respeito à formação dos públicos e às formas da produção literária. Se Garrett trabalhou muito para criar um público literário para a novela e o teatro, e se Herculano dedicou-se longamente à educação do novo homem liberal, através dos seus romances e do trabalho na revista Panorama, Camilo já tem à sua disposição um público bastante diferente do deles: mais amplo e multiforme, e muito alimentado nos romances e folhetins franceses. Por isso é que ele não tem nenhuma ilusão sobre o papel da literatura correção dos vícios sociais e sabe que o máximo a que a literatura pode almejar, no que diz respeito à ação sobre o meio social, é a manutenção de um bom padrão linguístico. Já em 1865, no prefácio a O Esqueleto, escrevia: “Enquanto à influência do romance nos costumes, estou mais que muito desconfiado de que o romance não morigera, nem desmoraliza”. No Amor de Perdição, ainda antes, registrara no prefácio que a única contribuição importante do romance para a vida social era o trabalho lingüístico. Agora, muito coerentemente, aponta para o caráter transitório da obra que escreve (trata-se da “novela do ano” de 1866), ao mesmo tempo que a designa displicentemente como “esta coisa”.
A crítica social se faz assim, neste momento da obra camiliana, não apenas pelo retrato de um dado meio social, mas também e talvez principalmente por meio da auto-ironia de um discurso que já não cabe na moldura romântica que ainda vigorava, já rebaixada, no horizonte dos seus leitores. Assim, se é verdade que, pela novela passional, Camilo se torna um dos maiores expoentes do Romantismo em Portugal, não é menos certo que é na sua novela irônica de crítica social que vamos encontrar o lado ainda hoje vivo e moderno da sua obra.

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