Uma queda para a felicidade
[texto de apresentação de A Queda dum Anjo, publicado em 1997]
Muitas são as facetas da personalidade literária de Camilo Castelo
Branco, que publicou mais de uma centena de volumes e foi uma figura central do
Romantismo português. Poeta, polemista, pesquisador de documentos antigos, foi
porém como novelista que se celebrizou.
Na obra novelística de Camilo, o veio mais conhecido é o da novela de
amor e paixão. Nesse gênero, seu Amor de Perdição (1862) ocupa o lugar
de obra-prima. Nessa novela, que fez enorme sucesso, encontramos o traço principal
da novelística passional de Camilo: a concepção do amor como uma espécie de
destino, de fatalidade, que domina e orienta e define a vida (e a morte) das
personagens principais. Marcado pela transcendência, esse amor trará consigo
sempre um equivalente de sofrimento e de infelicidade: ou porque a paixão se
choca frontalmente com as necessidades do mundo social, ou porque significa, em
última análise um desejo luciferino de recuperar o paraíso na terra. Para as
suas personagens, basta essa percepção do caráter transcendente da paixão
amorosa para que ela acarrete logo um cortejo de sofrimentos: o remorso, a
vertigem do abismo, a percepção de que o amor mais sublime é aquele que se
apresenta e se revela, em última análise, como impossibilidade. Por isso, nas
suas novelas sentimentais desfilam tantos “mártires do amor”, tantos sofredores
que, no sofrimento, encontram a razão de ser e o sentido mais profundo da sua
vida.
Mas há um outro veio, quase tão rico como o primeiro, na obra de Camilo:
a novela satírica, humorística, de crítica de costumes. Nesse gênero, a
obra-prima é justamente A Queda dum Anjo.
Entretanto, antes de passar ao comentário dessa novela, talvez valha a
pena lembrar que, em 1862, no mesmo ano em que publicou Amor de Perdição,
Camilo também lançou sua primeira grande obra de prosa satírica: Coração,
cabeça e estômago. Em ambos os gêneros, apesar das óbvias diferenças de
enfoque e execução, encontramos as principais características de seu estilo e
visão de mundo: a agilidade do diálogo, a notação muito realista e simpática
dos costumes e falas populares, a convincente fixação dos traços
característicos das personagens e, sobretudo, a crença de que o ideal amoroso
não pode ser conciliado com a prática social cotidiana. Só que, enquanto na novela
passional a realidade se apresenta principalmente como entrave à realização dos
desejos e o mundo se recobre de um sentido trágico em que cada acontecimento ou
circunstância se reveste de valor simbólico, na novela satírica não há por
sobre os acontecimentos nenhum véu, nem sob eles nenhum sentido transcendente:
tudo se passa no nível dos interesses mais imediatos. Isto é: quem fornece as
diretrizes da vida das personagens já não é o desejo amoroso, mas a injunção
social; não é a paixão, mas o apetite.
Assim sucede em A queda dum anjo, como se verá. Mas há, nessa
novela, vários níveis em que se processa a crítica social. Vejamos apenas dois.
Num primeiro plano, o que temos aqui é a crítica da vida portuguesa da
época da Regeneração. Calisto Elói, fidalgo, representante do velho Portugal,
vai para Lisboa como deputado e passa a contrapor-se ao que julga serem os maus
costumes do tempo. É pelos seus olhos que o narrador vai mostrando ao leitor a
miséria moral e intelectual do novo mundo político lisboeta, em que o
liberalismo produz mau português e muito oportunismo. Entretanto, ambientado na
vida citadina e bafejado pelo amor, Calisto transforma-se radicalmente. É
durante o processo de transformação que passa a ganhar vulto, na novela, o segundo plano em que se exerce a ironia do
narrador – por meio da manipulação muito hábil do ponto de vista e das
expectativas de leitura – e a sua crítica a uma dada concepção da literatura e
da sua função na sociedade moderna. Quanto ao primeiro ponto, vale a pena observar
como o narrador, depois de conduzir o leitor a uma identificação com o
protagonista e de mostrá-lo finalmente cometendo as mesmas faltas que antes
censurara nos outros, preocupa-se em manter a nossa simpatia pelo anjo que
desceu ao chão, tornando-nos assim, de alguma forma, cúmplices de Calisto.
Quanto ao segundo, é só atentar para as provocações que o narrador faz ao
leitor, ao prever as suas reações e desmontar alguns dos seus protocolos de
leitura. Ainda a esse respeito, o final da novela é exemplar. Depois de
intitular um dos últimos capítulos “A felicidade infernal do crime” escreve o
narrador/autor: “Eu, como romancista, lamento que ele [Calisto] não viva
muitíssimo apoquentado, para poder tirar a limpo a sã moralidade deste conto.
Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao Céu número
de almas mais vantajoso do que a novela do ano passado”.
Para entender bem a frase, temos de observar que, escrevendo apenas
alguns anos depois de Garrett e Herculano, Camilo já vive um outro momento
histórico, no que diz respeito à formação dos públicos e às formas da produção
literária. Se Garrett trabalhou muito para criar um público literário para a
novela e o teatro, e se Herculano dedicou-se longamente à educação do novo
homem liberal, através dos seus romances e do trabalho na revista Panorama,
Camilo já tem à sua disposição um público bastante diferente do deles: mais
amplo e multiforme, e muito alimentado nos romances e folhetins franceses. Por
isso é que ele não tem nenhuma ilusão sobre o papel da literatura correção dos
vícios sociais e sabe que o máximo a que a literatura pode almejar, no que diz
respeito à ação sobre o meio social, é a manutenção de um bom padrão linguístico. Já em 1865, no prefácio a O Esqueleto, escrevia: “Enquanto à
influência do romance nos costumes, estou mais que muito desconfiado de que o
romance não morigera, nem desmoraliza”. No Amor de Perdição, ainda
antes, registrara no prefácio que a única contribuição importante do romance
para a vida social era o trabalho lingüístico. Agora, muito coerentemente,
aponta para o caráter transitório da obra que escreve (trata-se da “novela do
ano” de 1866), ao mesmo tempo que a designa displicentemente como “esta coisa”.
A crítica social se faz assim, neste momento da obra camiliana, não
apenas pelo retrato de um dado meio social, mas também e talvez principalmente
por meio da auto-ironia de um discurso que já não cabe na moldura romântica que
ainda vigorava, já rebaixada, no horizonte dos seus leitores. Assim, se é
verdade que, pela novela passional, Camilo se torna um dos maiores expoentes do
Romantismo em Portugal, não é menos certo que é na sua novela irônica de
crítica social que vamos encontrar o lado ainda hoje vivo e moderno da sua
obra.
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