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sábado, 24 de dezembro de 2022

IA e o autor como diferencial

 Postei uma série de pequenos experimentos com Inteligência Artificial na minha página do Facebook. Este breve texto decorrente das conversas pode ter algum interesse além delas. 

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Quando postei as respostas da IA a questões literárias, Ricardo Vasconcelos comentou: "Teremos que trazer a vida do escritor para a sala de aula novamente?" É uma pergunta relevante. Principalmente porque a vida dos autores nunca saiu da sala de aula, nem dos estudos literários. O único ponto em aberto é em que medida permaneceu. Na verdade, são dois pontos, porque também se pode perguntar que vida, ou melhor, que biografia. Começando pelo segundo, há pelo menos dois tipos de biografia: a biografia privada e a biografia pública. Isso tudo de modo bem simplificado, claro. A biografia privada pode não ter grande presença na crítica, mesmo considerando o sucesso, em certo tempo, da abordagem de orientação psicológica ou psicanalítica. Já a biografia pública, tem muita. Lemos com muita atenção, por exemplo, a correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. E do primeiro com muitos outros. Construímos aí uma biografia intelectual, que é muito difícil deixar de lado ao tratar da obra de Mário, e talvez um pouco menos difícil ao tratar da obra dos seus interlocutores. E também lemos biografias de autores, literários ou não. É que a biografia, mesmo a mais enxuta, importa muito. Datas de nascimento e morte, bem como de elaboração e publicação de obras, bem como dados sobre a história editorial e política de um autor contam muito. A ideia de que seria possível compor uma história da literatura como pura história de formas em evolução só se sustentou como ilusão no período que vai do apogeu do New Criticism ao progressivo abandono do Estruturalismo como chave a permitir simultaneamente a abertura de todas as portas das ciências humanas. Mas nem isso excluiu a biografia ao menos num sentido: a data de publicação, bem como a língua e o lugar em que um poema ou romance foi publicado. Porque uma obra literária é, no limite, como um gesto. Seu sentido mais completo – e às vezes, o único mais consistente – só se revela quando se sabe em que contexto foi feito. Um livro de sonetos publicado no Brasil em 1890 e um livro de sonetos publicado em 2022 sinalizam coisas diferentes, independente do que os sonetos sejam, além de sonetos. A forma mais rica de trazer a biografia para a sala de aula é a história literária. Por ser narrativa, cada autor (e mesmo cada obra) é uma personagem, e como tal tem uma biografia, o que quer dizer: nascimento, vida finita, vida eterna (isto é, reencarnações) e eventualmente morte. Uma obra, por sua vez, é como um gesto: o pôr a mão junto à testa tem um sentido num desfile militar e numa arquibancada posicionada contra o sol. Se alguém não souber a data de publicação, nem o lugar, nem o que eram as tendências dominantes, a prática do tempo, dificilmente poderá compreender, ou melhor, avaliar a relevância de um texto adequadamente. A valoração literária lida constantemente com conceitos como inovação, repetição, epigonismo, influência, vanguarda, revolucionário etc. que não subsistem sem um mínimo arcabouço biográfico.

Um dos trechos que mais me chamaram a atenção, ao ler um dos livros da escola de Bashô, foi aquele no qual o mestre pergunta, antes de dizer se um haikai é bom ou ruim, quem foi o autor. E, ao saber, diz que era bom. Mas que se fosse de qualquer outra pessoa, não seria. Na época, isso me pareceu muito estranho. Bizarro, talvez. Mas logo percebi que entre nós também é assim, mas não de forma tão direta. E o “quem fez? quem foi o autor?” não é uma pergunta facilmente descartável, porque não é meramente busca de um apoio de autoridade. No geral é uma pergunta pelo sentido do texto no contexto em que foi produzido.

Por exemplo, todos conhecemos os poemas de Oswald de Andrade. Aquele, por exemplo, que diz que o netinho jogou os óculos do vovô na privada. Se não soubermos em que contexto foi escrito e publicado, nem quem foi o seu autor, faríamos a interpretação que fazemos? Consideraríamos sequer que se trata de poesia? E o amor/humor? E mesmo a “Meditação sobre o Tietê”, teria sido lida como foi, e nós a leríamos como a lemos se não trouxesse o nome do autor que traz?

Outro ponto que o haikai tornou mais claro para mim: o valor de um texto, num ambiente fechado de referências e convenções como era o do haikai clássico, também era aquilatado em função do que as pessoas tenderiam a dizer em similar contexto. A novidade do haikai, em grande parte, era essa: dizer algo diferente do automático, ou negar-se a dizer qualquer coisa numa situação em que todos tenderiam a dizer o mesmo, o previsível automático. Isso é, pensei na época, um dos vetores da nossa história literária. Que, no sentido amplo, traz no seu interior uma sucessão de biografias (públicas, objetivas, mas ainda assim biografias).

Essas divagações me ocorreram quando li a pergunta que referi no começo deste texto. E a resposta, além do abstrato destas ponderações, num sentido prático e concreto é: talvez sim. Talvez trazer o autor para a sala de aula, de um modo mais decidido, seja a forma de evitar a sua morte, agora num sentido específico: o de ser confundido com a IA. Ou confundido com ela. Nesse caso, mesmo que a IA evolua (como deve evoluir sem parar) e consiga detectar o contexto e produzir inovação ou conformação, conforme a necessidade ou o gosto do freguês, sempre será possível identificar o autor humano. O que não sei se seria realmente uma vantagem, pois o problema é que, já agora, muitos autores humanos fazem exatamente o que faz a IA hoje: produzem mais do mesmo ou forçam muito o lado subjetivo para tentar inovar a qualquer custo. Ora, quem já corrigiu redações de vestibular sabe como é: quando todo mundo quer ser original na mesma direção, ninguém fica original, todo mundo fica igual, apenas num nível diferente.

Mas sim, trazer o autor para a sala de aula pode ser uma defesa, por enquanto, para o professor. E para o autor.

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