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terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O dilema do tradutor


Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:


Se eu a tomasse nas mãos

derreteria em lágrimas

Geada outonal


A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.


***


Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:


“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.


Nas mãos derreteria

Sob as lágrimas quentes –

Geada de outono.”


***


No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:


Se a tomasse nas mãos

Derreteria sob as lágrimas quentes:

Geada de outono.


 Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.

 

 E então, que dilema é esse? 

 É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.

 Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.

 O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.

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