TEXTOS DISPONÍVEIS

sábado, 10 de junho de 2023

Perfis 8 - Jesus Antônio Durigan

    Jesus baixou à Unicamp sem anúncio nem pompa, por via incerta. Veio com uma mala de viagem estruturalista, e fortes tatuagens da passagem de Greimas pelo Brasil. Se bem me lembro, era bom professor, sistemático, cumpridor. Depois, foi diretor do Instituto, na sequência do episódio da intervenção malufista que depôs Carlos Franchi. E foi, como nos cursos que ministrou, fiel cumpridor do que lhe cumpria pensar e fazer. As lembranças mais claras que dele tenho, porém, não são da sala de aula. Fui seu aluno e de tudo o que ali falamos ficou-me apenas a lembrança de uma ardida discussão sobre um texto de Edgar Morin. Recordo-me bem, isso sim, de seu livrinho sobre o erotismo, que teve destaque na época. Mas não só, para minha surpresa: quando comecei a pensar em fazer este perfil, percebi que havia mais, nalgum canto empoeirado da memória. Era algo sobre pecado e sobre narrativa. Abanando a mente com o Google, varrendo a internet por “pecado” + “Jesus” + “Greimas” surgiu-me logo na tela do notebook o artigo de 1984. Não vou dizer que o reli agora há pouco com grande interesse, embora a releitura não fosse desinteressante. Assim como o vestuário sofre com a passagem do tempo (pela época da redação, creio que ainda se teimasse nas calças boca-de-sino e nos sapatos de plataforma), as modas teóricas resistem mal ao progresso do calendário. Será que o guardei por conta do título algo pomposo, que à época não viria despido, para mim, de alguma comicidade? A “ciência do discurso”? Creio que não. Talvez então tenha sido por conta da nota, em que a personalidade do autor se revela junto com as tensões do tempo? Pode ser, porque embora os organizadores se esforçassem por registrar, com a honestidade devida da modalização, que “aparecem aqui lado a lado tanto trabalhos teóricos quanto estudos particularizados (...), num exemplo razoável de coexistência pacífica”, a verdade é que Jesus era um estranho no ninho candidiano e devia sentir-se todo o tempo como tal: “Escrito em 1975, este trabalho se propunha a participar das discussões que se realizavam na época. Muita coisa mudou de lá para cá. Curiosamente, o trabalho foi policopiado e lido por amigos e inimigos. Talvez ainda se preste a fofocas. Por isso, foi mantido na sua versão original.” Enquanto tentava retraçar o perfil moral do homem, o que se me impôs foi o seu perfil físico. Ou melhor, a sua silhueta, inconfundível para quem a tivesse divisado alguma vez no corredor das salas de docentes do IEL. Para quem não conheceu o velho pavilhão, devo dizer que era um pouco soturno. Escuro, atravessado por um corredor comprido, ladeado de salas quase sempre fechadas, com uma grande porta de vidro em cada extremidade, tinha a propriedade de nos acostumar às sombras, e de treinar a vista para reconhecer o desenho projetado do corpo de quem vinha por uma das pontas quando estávamos no meio. Jesus tinha longas pernas arqueadas, como de vaqueiro. Pernas de alicate, como se dizia na minha terra. Ver a sua sombra caminhar num tipo de gingado na nossa direção, na semiobscuridade daquela miúda caverna, gerava alguma tensão, e era fácil imaginar, emergindo do fundo da tela, uma das muitas memoráveis trilhas de Ennio Morricone. Creio que poderíamos ter sido amigos, apesar da diferença de estatuto e de idade. Afinal, éramos ambos caipiras do interior, tínhamos a mesma origem veneziana. O que nos garantia um sotaque comum e, mais do que o sotaque, aquela entonação de quem foi criado com macarronada e frango assado aos domingos, sob a dupla sombra do crucifixo e da Comédia. Mas a verdade é que nunca fomos próximos. Jesus parecia ter, por assim dizer, o physique du rôle para cavalgar a burocracia: logo, de diretor do Instituto passou à presidência (ou direção executiva, não estou seguro) da fundação da Unicamp. Creio que foi a saída que encontrou. Mas não continuou muito tempo nessa estrada e se recolheu. No final da sua temporada no IEL, ainda gostava de o encontrar, quando percorria semanalmente outra longa estrada, de Franca (eu acho que era Franca), para dar as últimas aulas necessárias à aposentadoria. De alguma forma me identificava muito vagamente com ele. Principalmente nos primeiros tempos, em que eu tinha a impressão de que não pertencia àquele ambiente, não conseguiria me mover ou crescer dentro das fronteiras demarcadas. Ambos ansiávamos, eu acho, pela largueza dos campos gerais, em vez do canteiro bem cercado. Com o tempo, devo ter me acostumado (ou talvez a horta tenha crescido e se multiplicado), embora até hoje suspeite que aquele não foi para mim o melhor terreno. Para ele, olhando desde este ponto do tempo, tenho cada vez maior convicção de que não foi. 

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