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sábado, 1 de julho de 2023

Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna


Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso,  a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.

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