TEXTOS DISPONÍVEIS

domingo, 17 de dezembro de 2023

Sobre a lista feminina da Fuvest

 Acabo de ler, entre divertido e perplexo, um artigo assinado por Maria Arminda do Nascimento Arruda, Aluísio Cotrim Segurado e Gustavo Ferraz de Campos Monaco. São três autoridades da USP. A primeira é vice-reitora, o segundo é pró-reitor de Graduação e o terceiro é diretor-executivo da Fuvest. O tópico é a lista de autoras de leitura obrigatória para o vestibular. Leio ali, por exemplo, que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. É difícil imaginar o que os autores quiseram dizer. Tradição, cânone e consagração comparecem ali numa lapalissada ridícula. Podemos fazer variações com esses termos. A tradição valoriza autores consagrados, a tradição é a consagração de autores, autores consagrados são a tradição; o cânone valoriza a tradição, o cânone é a tradição, o cânone é a consagração. Podíamos pensar pelo lado contrário: o cânone tem valorizado autores não consagrados, o cânone tem valorizado obras não tradicionais, a tradição é constituída de autores não consagrados ou não canônicos. Fico imaginando que conceitos de tradição, de cânone e de consagração foram mobilizados nessa afirmação. Mas confesso que não consigo... A leitura, porém, de outras passagens do artigo permitem entender. É que ali se encontra a empáfia em corpo inteiro. É verdade que parece ter havido um tempo em que a Universidade de São Paulo tinha, a partir das suas cátedras, o poder ou a ilusão de criar ou orientar o cânone. Mas creio que já vai longe o tempo em que se poderia dizer com propriedade que a marginalidade de autores/as no ensino médio decorre de eles/as “não fazerem parte do rol de exigências da Fuvest”. Também se lê ali que o compromisso da Fuvest é “acompanhar o avanço do conhecimento e induzir a que o ensino médio possa absorver as pesquisas mais avançadas”.  Ora, além do que já destaquei, basta contrapor essa afirmação aos nomes que integram o abaixo-assinado a que esse texto responde. De fato, ali encontramos um rol de críticos e professores (a maior parte da própria USP) que sem dúvida desenvolve o que quer que se entenda por “pesquisas mais avançadas” na área dos estudos literários. Por fim, é tão pueril dizer que a lista feminina surgiu como remédio ao fato de que os estudantes leem resumos e não as obras (pois se for assim é claro que vão ler agora resumos dos livros das autoras indicadas), quanto que a escolha não tem um caráter ostensivamente militante – o que só é verdadeiro se admitirmos que demagogia e populismo são opostos a militância ostensiva. O que, pensando bem, combina com essa descoberta genial de que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. O nível da argumentação das três autoridades uspianas não só corrobora o que já estava óbvio nas entrevistas do diretor-executivo da Fuvest, isto é, o despreparo e a falta de domínio do campo literário, mas também a autonomização da burocracia (as bancas são um dos segredos mais bem guardados!), em prejuízo do debate aberto e da valorização da competência científica nessa que foi, em tempos, um modelo da universidade brasileira. 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Ainda a lei carioca

 Postei aqui ontem ou anteontem uma nota sobre uma lei promulgada, no último dia 28/11, pelo município do Rio de Janeiro.


Uma lei de autoria de pessoas de esquerda: nasceu do Chico Alencar e frutificou com ele e Monica Benicio. Integrantes do PSOL.

A justificativa do projeto, assinada apenas por Chico Alencar, trazia uma bandeira justa:

“A definição das personalidades presentes em monumentos, estátuas e bustos é de primeira importância para a cultura de uma cidade. Ao dar visibilidade para determinada pessoa, o poder público avaliza os seus feitos e enaltece o seu legado. A história brasileira traz inúmeros momentos condenáveis, entre os quais pode-se destacar o genocídio dos povos nativos e a escravidão de africanos sequestrados. Considerando os ideais de liberdade, justiça e democracia é inconcebível vangloriar figuras que tenham se locupletado em tais episódios. Por isso é imperativo que essa Casa de Leis aprove a presente proposição.”

Ou seja: quem quer que se tenha “locupletado em tais episódios” (acho que por “episódios” o preclaro autor entende o genocídio e a escravidão, que no meu ver nunca foram episódicos no Brasil) não pode ser celebrado pelo poder público. Justo. E se fosse em São Paulo, quem sabe obrigaria a demolição ou retirada daquele horrendo monumento das Bandeiras, confinando-o num espaço museológico, fora da vista. Ou daquele outro horror, a estátua do Borba Gato.

Mas na redação da lei o que vem? Um item, de número III, que dispõe sobre a proibição de erguer monumento ou *fazer menções elogiosas* (isso é uma novidade) a “pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”
Aí, sim, cabe tudo, a começar pelo pobre Padre Vieira, sempre lembrado, aqui e em Portugal quando o tópico vem à baila – e terminando Deus sabe onde, porque se se esmiuçar, quanto mais recuado no tempo, mais se pode encontrar motivos para acusar alguém de ter perpetrado algum ato lesivo a tais bandeiras.
No meu post, tentei destacar, pela redução ao absurdo, a cegueira cultural de tal dispositivo legal e seus efeitos de longo prazo sobre a memória histórica. Sobretudo, critiquei a base de tal iniciativa: o identitarismo feroz, que promove a redução das personalidades a uma única faceta. No caso, aquela condenável pelos pressupostos e nas condições históricas atuais.

Curiosamente, não houve divergência, não houve nenhum debate. Fiquei em dúvida sobre como entender isso. Seria a lei tão absurda e de bitola tão estreita que se torna desnecessária a discussão? Ou será que não deve ser criticada por ser uma iniciativa da esquerda e sermos, neste meu rol de amizades, quase todos membros naturais do campo progressista – já que “antidemocraticamente” fui bloqueando o direito de vista e de fala, neste espaço, a todos os bozistas e apoiadores do fascismo? Infelizmente, temo que esta última hipótese seja mais realista.

Detesto convocar ditados, mas aqui vale uma exceção: de boas intenções o Inferno está cheio. Porque não é difícil imaginar que, redigida e aprovada como está, se a direita for esperta, poderá banir de agora em diante qualquer menção elogiosa oficial, bem como de qualquer monumento carioca, a quem quer que em algum momento se tenha manifestado publicamente como apoiador de Stálin, Mao ou Fidel – ou mesmo ao Marechal Tito, que eu pessoalmente admiro, e que recebeu uma justa homenagem da cidade de Campinas! –, porque quem é que vai definir o que é um ato lesivo aos valores democráticos? Se por isso se entender “valores da democracia representativa burguesa”, podemos vir a assistir a uma festa da direita no uso da guilhotina pública!

Vejo agora que, ao elogiar o ditador Tito, posso perder a esperança de ter uma estátua ou receber alguma menção elogiosa da cidade do Rio de Janeiro. Por isso mesmo não digo que, como Drummond, vibro por Stalingrado ter resistido (com o devido crédito ao homem que dava o nome à cidade) e que entendi perfeita e solidariamente como ele pode ter se sentido frustrado por não ter podido, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan. Poema que, se devidamente lembrado por algum vereador fascista e pró-USA, poderá levar a câmara do Rio a identificá-lo como precursor do 11 de Setembro e assim forçar a retirada daquela sua melancólica estátua acomodada num banco na orla. Mas me preocupa mais, pensando na minha aldeia, que uma lei semelhante retire daquela praça triangular no caminho da Unicamp, o monumento ao Tito, que contemplei do carro todos os dias a caminho do trabalho, e que já visitei sozinho e vou de novo em breve visitar, em homenagem, com o meu genro croata.

De modo que só tenho a desejar que a progressista iniciativa do agora deputado Chico Alencar (ou ao menos o seu parágrafo terceiro) só continue a dar frutos no seu estado natal, sem ramificar-se pelo resto do país.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Abaixo o padre Vieira! Abaixo o Camões!

 A cidade do Rio de Janeiro aprovou uma lei que me parece complicada (eu tinha escrito que me parecia supinamente idiota, mas em seguida decidi ser mais polido e menos radical: complicada, é melhor). O princípio pode parecer bom, pois afinado com os tempos. Leio a notícia: a lei “veda, no município do Rio de Janeiro, manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”

Ora, o que me parece absurdo é a concepção monolítica da pessoa. O Padre Vieira, ao que parece, é a primeira vítima. Porque, segundo os fiscais da correção, ele não seria homenageado por ser um dos maiores prosadores da língua. Qualquer estátua sua homenagearia apenas ou principalmente o defensor da escravidão dos negros. Por isso precisa ser banida, e junto com a estátua do Vieira escravocrata, vai para fora da vista pública, além do orador, o defensor dos índios contra a sanha dos colonos. O mesmo se aplicará, sem dúvida, a Alencar, que não foi o criador de uma obra-prima como “Iracema”, mas apenas mais um reles defensor da escravatura. Monteiro Lobato nem pensar: está já riscado do mapa e vai continuar apenas racista, sem perdão, a despeito do que tenha feito pela difusão do livro no Brasil. Seguindo essa linha, será preciso retirar desde logo as estátuas e placas que homenageiam Camões, aquele detestável islamofóbico, que escrevia coisas como “cão sarraceno” para qualificar uma parte significativa da humanidade e ainda instigava o rei português a matar quantos infiéis se colocassem no caminho da propagação da fé cristã. Nesse sentido, poderia incorrer também na intolerância religiosa, que será outra vassoura poderosa. Nisso, poucos excederão o Dante, que deveria ser escondido dos incautos por não suportar qualquer diversidade religiosa. De quebra, era ainda islamofóbico, homofóbico, vizinhofóbico, antisemita, monarquista etc. Os “valores democráticos” varrerão uma grande parte da Antiguidade, e um monte de tiranos, por certo, mas não deverão poupar Platão, Aristóteles (esse preceptor de tirano) e tantos outros. E que dizer de Júlio Cesar, que não foi o autor do livro sobre a guerra da Gália, e sim apenas um homem que atentou contra a república– ou seja, mutatis mutandis, os valores democráticos – e por isso já foi devidamente assassinado. Se a moda pega na Europa, eu acho que logo deveriam ser retirados da vista do público, entre milhares de monumentos, a coluna de Trajano e o Arco do Triunfo. Já o Coliseu poderia salvar-se, decretando-se que era um museu, com as devidas placas protetoras da moral e do civismo. Aliás, esse é o lugar adequado a monumentos banidos, segundo a lei carioca: o espaço museológico, no qual estejam devidamente enquadrados, com um aviso reluzente que, no fundo, diria algo como: “cuidado, racista!” ou “cuidado, ditador!”, “cuidado, fanático!”, “cuidado, fascista!”. E, em nome dos valores democráticos, sobre qualquer defensor da “ditadura do proletariado”: “cuidado, comunista!”

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Aporias

 Uma questão curiosa me ocorreu durante a leitura do livro do Tom. Mas minha intuição foi não a incluir naquela nota do Facebook, porque as redes sociais são terreno para todo tipo de leitura transviada, sem pé na realidade dos argumentos. Conversando a propósito com o Alcir, disse-me ele outra das suas frases antológicas: "uma intuição é uma operação lógica em velocidade muito alta". Eu lhe respondi que aquela era uma bela maneira de recuperar para o XVII uma das peças-chaves do fim do XVIII, um dos carros-chefes do Romantismo. Com essa observação meu amigo, que nada sabe de redes sociais, embora reconhecesse a pertinência da questão, argumentava que provavelmente eu não a devesse postar. Talvez ele estivesse certo, mas creio que vale a pena a discussão, justamente por ser um assunto anguloso. E dos vários ângulos o que me pareceu merecer maior atenção é este: tenho a impressão de que, nestes tempos delicados, a expressão do desejo masculino, com aquilo que ele pode implicar de violência real ou imaginária, anseio de conspurcação da beleza ou de busca de domínio/entrega do/ao outro – temas tradicionais da literatura erótica ou pornográfica – vai ficando cada vez mais complicada em chave heterossexual. Na outra ponta, também a confissão ou revelação do amor em situações públicas tem um efeito normalmente kitsch ou excessivamente piegas, em regime discursivo hétero. Mas não em regime homo – por assim dizer –, porque aí é ação afirmativa, reivindicação de direito, cujo alcance ultrapassa o individual, recobrindo-se de sentido político. Mas voltando ao erotismo: a linguagem crua, o impulso de dominação ou de submissão e todas as formas do desejo naquilo que ele tem de “desrespeitoso” a uma das partes, é cada vez mais difícil de passar pela peneira do bom gosto e das reivindicações do lugar de fala ou do politicamente correto, quando o emissor é um homem e o assunto ou destinatário é uma mulher. Já quando emissor e assunto/destinatário são do mesmo sexo, por algum motivo a questão do exercício do poder parece afundar no horizonte. A discussão fica ainda mais ardida se pensamos em um tipo de expectativa cada vez mais difundida de conformidade e interdição, de fechamento do campo do possível. Por exemplo, alguém poderia arguir aquela postagem nos seguintes termos: das duas uma, ou você não pode sentir e falar com propriedade, sendo presumivelmente hétero, da voltagem estética da poesia homoerótica; ou pode, desde que ocupe, de alguma forma, ostensiva ou secretamente, o devido e apropriado lugar de fala. Vai sem dizer também que me seria interdito, nesse caso, com a devida exceção condicional, compor poemas homoeróticos. Carreguei um pouco nas tintas ao pintar o problema, talvez. Mas é um argumento cada vez mais presente, que não apenas busca delimitar a verdade da crítica, como também a da produção poética ou ficcional. Uma amiga com quem conversei sobre isso fez uma observação interessante: “Essas questões de lugar de fala, literatura homoerótica, literatura de autoria feminina e outras tais me dão uma preguiça infinita. Independentemente da chave erótica ou pornográfica. As causas são justas, mas o modo de lidar com essas questões em literatura me parece bem pouco produtivo do ponto de vista literário. Em tempos em que a leitura de textos literários deixou de ter importância para a formação humana parece que a academia busca justificar o estudo da literatura em um lugar fora dela.” Essa última frase do desabafo daria margem a outras conversas. Quanto ao essencial, a mim também parece que é notável, em alguns discursos identitários, uma desconfiança no poder da ficção e na capacidade de alguém capaz de escrever boa prosa ou bons versos colocar-se na pele de outro alguém, diferente, de outra origem ou condição; ou seja, uma desconfiança na capacidade de alguém retratar adequadamente o diverso, como se a qualidade ou legitimidade do retrato se escorasse na possibilidade de ele ser também autorretrato, ou testemunho partilhado; ou, por fim, voltando ao ponto: a desconfiança na capacidade de um leitor ou crítico compreender e, mais do que compreender, apreciar e avaliar o que provier de fonte diversa ou distante em termos de alguma identidade.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Isto não é uma crítica

 Recebi do autor este “piano B.”. Um livro paradoxal, ou melhor, que busca o paradoxo num nível leve, talvez pudesse dizer de modo mais preciso. A assinatura na capa é o nome do Tom. Logo abaixo, depois da ilustração, vem o título, seguido da classificação genérica “poemas”. Continuando, por ordem de chegada na leitura, já que a quarta-capa é branca, vem a orelha, que qualifica o gênero: são poemas homoeróticos. A precisão é extrema: alguns, alerta, são mais precisamente homopornográficos. A que se segue uma primeira estratégia que poderia denominar de barreira, ou mesmo defensiva: “na melhor tradição da poesia fescenina”. Logo adiante, o foco se fecha do tradicional para o pessoal, com a surpreendente afirmação de que “a acreditar nas várias notas que abrem o livro, é verídica a experiência relatada.” Por fim, declara-se que há, na profusão de notas prévias, alguma charada, que cumpre ao leitor decifrar. Prosseguindo, nos deparamos com a primeira, a do autor – que tudo indica seja mesmo o que assina o livro e que é descrito, na segunda orelha, como o Prof. Antonio Donizeti Pires, nascido em São Joaquim da Barra, e vinculado à cadeira de literatura brasileira na Unesp de Araraquara. A identidade se reforça porque o Autor data sua Nota justamente dessa cidade, em fevereiro de 2013. Mas o que nos diz o Autor? Garante que é um melancólico. E agora, sim: que o livro que tenho em mãos foi “milimetricamente concebido como catarse e exorcismo”, e que a sua origem é paixão doentia por um rapaz muito mais jovem. É o registro mais pessoal, mas ao mesmo tempo ecoa o tema muito tradicional da paixão do homem velho ou maduro pelo efebo. Portanto, qual seria a charada? Antes de tentar responder, o leitor verá que se estabelece a seguir um pequeno baile de máscaras: comparecem depois do Autor, um Editor e o Professor. Todos de Araraquara, pois assinam seus textos em fevereiro abril e maio do mesmo ano em que o Autor redigiu a primeira nota. Vêm a seguir uma série de epígrafes, e então começa o corpo livresco. Ah, mas não devo prosseguir sem dizer que o Professor censura no livro – com alguma razão, eu diria – o excesso de maiúsculas simbolizantes. Mas digo também que divergimos, o suposto professor e eu, na condenação do livro, porque ele poderia afrontar “a própria família [do autor] e seu status social”. Estamos no reino do desdobramento irônico, como se vê. Esse espelhamento de eus, com notas caricatas, logo reivindica a herança evidente, mas explicitada em rodapé, de Fernando Pessoa. Mas e depois? Quando lemos os poemas, o que vemos? Que o Autor de fato produz uma poesia erótica de alta voltagem, declaradamente pessoal, ou melhor, de tom confessional. Ou seja, que o jogo de espelhos, o calidoscópio das notas e epígrafes acaba por fazer parte daquele mecanismo de sentido que é convocar, como frágil barreira protetora, a tradição, as referências, as puxadas dos cordéis do mundo “alto”. E por fim em propor que essa barreira não resiste ao que vem de baixo, à explosão em palavras do desejo ou da amargura. Pelos vãos da frágil armadura que é também roupa de clown, expõe-se então a carne do tesão masculino em forma nua e crua. Uma estratégia de obter um efeito de sinceridade. Quando a mim, o que me agradou no livro foi exatamente esse negaceio todo para a expressão direta, dando nome aos bois – como se diz. O contraste entre o baixo, o mais baixo, e o mais alto, assim, funcionou melhor. A naturalidade sintática e vocabular desse desejo versejado espelha a pulsão erótica, esse ideal, esse desejado retorno ao estado de natureza. Isso foi o que mais me interessou e impressionou nesse livrinho que promete ser o primeiro de vários, a julgar pela orelha. O Editor afirmou que o livro é “lírico até à medula, até o talo” e nisso radicou a sua singularidade. Não sei se lírico é exatamente a palavra, nem saberia dizer se é até o talo. Mas a sua singularidade para mim, para a minha experiência de leitura, por certo, não repousa nem no talo nem no lirismo. Em que então? Qual a solução da charada? - poderia perguntar-me. Mas não me pergunto, pois não vejo charada alguma que valesse encontrar-lhe a chave. Mas vejo algo mais relevante e notável, nesta tarde chuvosa em que passei uma hora folheando: diferentemente do tédio que quase sempre me domina, quando leio poesia contemporânea – porque os salamaleques às modas e aos paredros cansam, e algumas perguntas fatais terminam por não ter resposta (“o que esta pessoa tem para me dizer?”, “por que pretendeu falar desta maneira?”, “era mesmo preciso me falar em verso?”) – este livro se foi desdobrando em duradouro interesse, satisfação e diversão. A dose de autoironia, aliás, não é pequena. “Suplico-te / [...] que de todo te entregues à voracidade / deste lobo de presépio”. E ela me agrada na medida em que também contribui para o efeito, resultado e conclusão da leitura, que para mim mesmo resumo nesta formulação singela: esse autor, esse ponto de convergência de todo o calidoscópio, sentia que tinha algo relevante a dizer, que havia algo que lhe era importante dizer, e usou de todos os artifícios ao seu alcance para o dizer de modo interessante. E assim, com esta nota arrevezada, que vem, desde fora, juntar-se às demais que integram o livro, e não almeja a ser mais do que um brinde, agradeço ao Tom o presente inesperado.


Nota: Antonio Donizeti Pires. piano B.. São Paulo: Terra Redonda, 2021.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Lista de livros para o vestibular II - ou: Abaixo a lista de livros!

 Numa resposta a um comentário de uma amiga, na postagem anterior, escrevi que não acho interessante ter uma lista de livros para o vestibular. Essa é a questão subjacente ao meu post. E não acho por vários motivos. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que possa parecer, é uma desvalorização da formação literária como elemento de cidadania. Em vez de um programa amplo, que de fato pudesse orientar os docentes do ensino médio e dos cursinhos preparatórios, receita-se uma simples lista de livros. Daí sucede o óbvio: cria-se uma forma de preparar os estudantes que, no limite, visa a dispensar a leitura das obras. Se se sabe quais serão elas, o treinamento tende a recair sobre como responder às questões, e não sobre como entender o texto literário nas suas determinações e relações mais amplas com a sociedade e a cultura. Eu também fiz a experiência de perguntar aos estudantes (do curso de Letras!) se tinham lido as obras indicadas para o vestibular. A resposta, em geral, ao longo dos anos, foi decepcionante... Um segundo problema da lista de livros é o seu arco temporal. Por conta de um paternalismo disfarçado de interesse pedagógico, os textos indicados tendem a ser cada vez mais contemporâneos, mais “interessantes”, mais “atuais” – mais “fáceis de entender”, para dizer de forma bruta. Mas o contemporâneo não é um campo de domínio público, por isso a escolha de autores vivos ou dentro da vigência do direito autoral tem evidentes e incontornáveis implicações econômicas, nem sempre claras ou nem sempre levadas em conta. Poderia listar outros motivos, mas o post ficaria muito longo.

Os argumentos a favor de uma lista acabam por recair sobre um ponto: ao eleger como matéria de aferição aquela dúzia ou dezena de livros, a universidade influiria sobre o ensino de nível médio. É a ideia que sustenta a lista feminina: criar um cânone alternativo, implodir (mesmo que apenas por três anos...) o cânone macho-branco – ou apenas macho, já que Lima Barreto e Machado, por exemplo, são mestiços, assim como Gonçalves Dias, entre outros. Ora, isso também poderia ser feito por meio de um programa de concurso – e lembremos: o vestibular é um concurso –, no qual se apresentariam os pontos e problemas literários que a universidade julga relevantes para a cidadania. A lista de livros, em vez do programa ou em substituição tácita a ele, atesta sobretudo a desconfiança na formação secundária. Em vez de delegar aos professores do ensino médio o recorte das obras e das questões implicadas num programa amplo, a universidade lhes dá mastigada essa versão econômica da apostila: a lista de livros. Mas faz sentido pensar que, se os professores do ensino médio não têm preparo ou tempo ou capacidade para fazer um bom trabalho formativo a partir de um programa amplo, eles vão ter no trabalho com os livros da lista? Creio que não. Daí que eu não veja nessa ideia de uma lista de livros um triunfo ou um gesto de resistência, mas sim uma resignada cedência, uma disfarçada capitulação.

Lista de livros para o vestibular - I

 Acabo de ler que a lista de livros para o vestibular da USP será composta apenas de obras escritas por mulheres. Machado de Assis, diz a chamada sensacionalista, foi expulso. Voltará só daqui a três anos. E mais dois homens com ele. Até lá, nem o de Assis, nem Drummond, nem Bandeira, nem Guimarães Rosa, nem Oswald ou qualquer outro macho.


O divertido da matéria é a expertise do diretor da Fuvest, um professor de direito. Talvez sem as suas justificativas, a decisão instigasse. Com elas, o ridículo puxa a franja da toga, exibindo ao público a roupa de baixo em mau estado.

Entretanto, não me surpreendeu. Tenho observado os exames, tomado o pulso do que se pede em matéria literária. E é quase nada. Ou tudo se resume à interpretação de texto, com algum verniz de terminologia, ou acaba por ser um retorno confesso ou envergonhado à velha história da literatura. Assim, a rigor tanto faz o que se eleja, pois o gesto da eleição o mais das vezes é puro movimento inercial. E fugir à inércia, em princípio, desperta simpatia.

Mas a inércia não é adversário desprezível. Tanto é assim que o professor de direito, falando pela USP, nos tenha vindo garantir que as obras escolhidas permitirão que sejam estudadas as características das escolas literárias.

Então é isso: a vetusta USP quer indicar aos professores e estudantes do ensino médio que o importante em literatura é conhecer as escolas? Se for, então está certo, pois tanto faz que sejam homens ou mulheres os autores. Como também é despicienda a questão da qualidade, bem como a da recepção da obra ao longo do tempo. É tudo razoável, desse ponto de vista. E se é razoável, por que não tocar a melodia do tempo?

Mas o jurista vai além, nos garante que as obras escolhidas têm qualidades literárias grandes e explica: se ficaram preteridas em relação a um Machado, por exemplo, foi apenas porque foram produzidas por mulheres.

Nesse tipo de declaração, reconheçamos, não há nada de novo. Por isso me pareceu, num primeiro momento, exagerada a reivindicação uspiana de que se trata de um gesto de vanguarda radical.

Se bem que, pensando não no curto prazo da notícia, mas no tempo dilatado do ensino, talvez haja alguma verdade aí também.

É que a USP tem peso. E se bem entendi o regozijo do núncio do vestibular com a novidade, ele realmente espera que, pelo estado de São Paulo afora (se não mesmo pelo Brasil), o ensino das escolas literárias, possa ser feito, de agora em diante, depois da decisão libertadora da USP, em clave variada. Afinal, a identidade é um deus de muitas faces e há várias maneiras de servi-lo.

Ao mesmo tempo, a notícia traz um testemunho torto. O de que o lugar do literário é ainda um podium de prestígio ou de autoridade. Por isso mesmo é zona de combate. Terra em disputa. Inserir ali, esta ou aquela obra, esta ou aquela identidade, é ainda um gesto pleno de sentido, de reivindicação. Mas não é algo como dar uma cotovelada e encontrar um lugar entre tantos. É no limite combater o próprio lugar.

Por isso, o testemunho não é favorável. No prazo mais longo, acho que tenderá a se esvaziar ou diminuir o lugar literário, fazendo com que seja um desperdício o esforço ou mesmo o simples gesto de ali inserir ou de lá retirar algum autor ou obra ou filtro de identidade.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Jorge Cury

 

Na pequena faculdade de Araraquara havia um só professor de Literatura Brasileira e somente um professor de Literatura Portuguesa. Creio que não estou em erro quanto à primeira; mas quanto à segunda, estou seguro.
O regente desta última cadeira, quando o vi pela primeira vez, pareceu-me vagamente familiar. Talvez fosse o bigode, talvez o formato das maxilas, ou o jeito desconfiado com que olhava meio de baixo para cima, talvez mesmo o jeito de caminhar. O certo é que de imediato o associei à infância ainda próxima, às matinés no Cine Theatro Polytheama, onde nos fazia rir o grande Amácio Mazzaropi.
Conhecendo-o depois, como aluno, apreciei e imitei o seu humor meio matuto, cortante e nem sempre contido. Nas tardes modorrentas, a classe enlanguescia. Jorge, sentado à mesa, apertava os olhos ao passá-los sobre nós. No novo campus, havia incômodas nuvens de minúsculos mosquitos. Voejavam junto dos olhos e da boca. Jorge então batia palmas na frente do nariz, para espantá-los. Aproveitava as palmas para dizer com o olhar irônico ou com a voz meio esganiçada que não era pra dormir. E muitas vezes emendava com aquela frase que hoje talvez lhe custasse o emprego.
Eu achava divertido. Eram outros tempos. Mesmo que houvesse ali verdade, confesso logo que ele estava errado em dizer e eu mais ainda em rir, cúmplice. Não, não era um curso de espera-marido, o de Letras. Estou certo de que não. Mesmo que não estivesse convencido disso na época, hoje sem dúvida devo estar. Por isso, não devia rir mais alto quando Jorge completava que, enquanto o marido não aparecia, todo mundo tinha de estudar.
Talvez devesse dizer que era acima de tudo um rabugento. Mas quanto a mim era um adorável rabugento. Porque não creio que houvesse, apesar da máscara protetora de azedume, professor mais dedicado a nós, mais atento, mais solícito.
Durante muitos anos, e talvez até hoje, a sua vida – ou o que eu imaginava que ela fosse – foi um ideal. Jorge vivia em frente a uma escola grande da cidade. Sua casa tinha uma garagem que dava para a rua. Mas não era usada como tal. Era uma biblioteca.
Habitava-a, além do Jorge em carne e osso, o Jorge em papel e tinta. Digo: um enorme fichário, onde ele guardava inúmeras fichas, minuciosamente preenchidas, arrumadas e catalogadas. Suas leituras todas, desde um tempo que me parecia imemorial, se prontificavam ali, ao alcance da mão!
Durante muitos anos, meu sonho foi voltar a Araraquara como professor, comprar uma casa com garagem, fazer uma biblioteca na garagem e ser um novo Jorge Cury. Só me faltaria o fichário, por isso ainda no segundo ano comecei a preencher uma ficha para cada leitura escolar ou relevante. E se parei com as fichas pautadas de papelão foi porque continuei a fazê-las em formato digital, nos primeiros e precários computadores de 8 bits.
Devo dizer, entretanto, que não foi pacífica nossa convivência. Jorge era muito cristão. Demasiadamente cristão para o meu gosto. Certa ocasião, em vez de me dizer coisas interessantes, começou a louvar o casamento. As virtudes cristãs do casamento. Estávamos na sua biblioteca. Eu tinha 18 anos e lhe garanti, como alguém que tem mentalmente muitos anos a menos do que 18, que não me casaria nunca. Foi uma conversa, um debate meio sem sentido, mas terminou com uma aposta bizarra. Como eu tinha acabado de ganhar um Karman-Ghia vermelho, que era meu xodó, e sabendo o Jorge que eu invejava a sua biblioteca, apostamos uma contra o outro: ou seja, se eu um dia me casasse, lhe daria o carro; se não, ele me daria a biblioteca. Jorge ria muito, quando selamos o trato. Mas quando finalmente me casei, apenas uns cinco anos depois, não voltei para vê-lo. Muito menos para lhe levar o carro, que eu já não tinha.
Outra nossa desavença foi pública. Ele ensinava o Camões. Tínhamos de ler o Jorge de Sena. E lá estava o nosso Jorge escrevendo na lousa o número das estrofes de cada canto, do menor para o maior. Em certo ponto, havia dois cantos com o mesmo número de estrofes. Então ele os escreveu na mesma linha. Por fim, quando terminou, virou-se para nós e disse que ali estava uma revelação. Não sei se usou essa palavra, mas o jeito como falou sugeria que se tratava de uma revelação. E a revelação era que aquele arranjo de números na lousa formava a Cruz.
Eu tinha visto que o encontro dos tempos narrativos, em “Os Lusíadas”, se dava na estrofe 551. Como o poema tinha 1102 estrofes, ok: Camões tinha feito cálculos, segundo o outro Jorge, o de Sena, para que isso acontecesse assim mesmo. Mas a história da cruz me parecia uma grande bobagem!
Quando ouviu essa palavra, ainda piorada pelo qualificativo, Jorge ficou transtornado. Foi um desacato pessoal. Sua voz se alterou. Quando se irritava, parecia taquara rachada. Disse-me, indignado, que eu era uma formiguinha perto do Sena. Passou-me uma lição de moral, uma descompostura em regra. Mas então, em certo momento, disse a frase que nunca me saiu da memória. Por algum motivo, para aumentar a glória do Sena, resolveu se meter na comparação. Disse que, perto da grande árvore que era o xará português, ele, o Cury, era “um humilde pilriteiro”! Aquilo me abalou. Um pilriteiro! Jorge era um pilriteiro e eu era uma formiga! Eu não fazia ideia do que fosse um pilriteiro, mas concluí que provavelmente havia ali um recado para mim, e que eu era a formiga no pilriteiro que ficava embaixo da árvore do Sena. Eu mais não disse. Nem ele retrucou, satisfeito com a constatação da minha derrota embaraçada e encolhida.
Houve ainda outros embates, mas a verdade é que eu o adorava e ele me tolerava bem.
Quando me decidi a fazer a livre-docência, Jorge foi um dos primeiros nomes que me ocorreu submeter ao departamento. No memorial, já registrara a dívida imensa, então era de justiça.
Naquele tempo, a gente começava a ser dispensado de apresentar tese. Podia ser uma reunião de ensaios. Eu já tinha feito a tese, sobre Pessanha. Mas na incerteza também tinha preparado o livro de ensaios. Então apresentei os dois. No dia da defesa, reencontrei o riso sardônico do Jorge, quando ele se queixou do meu exagero, que o obrigava ainda agora a trabalhar tanto. Ele ria ainda do mesmo jeito, meio entrecortadamente, alternando o sorriso com a careta e mastigando, sob o bigode já branco, as palavras que vinham embaladas em veneno leve. Depois, na titularidade, convoquei-o outra vez. Era parte de tudo aquilo, de um jeito ou de outro, desde que debutei em escrita acadêmica, na revista dos alunos e no jornal do diretório, com dois textos nascidos das suas aulas.
Vi-o por fim numa reunião da turma. Foi a última vez, eu creio, que conversamos de viva voz. Em silêncio, entretanto, durante leituras, planejamento de cursos e redação, o diálogo algo conflituoso de Araraquara nunca se apagou. Pelo contrário, quando o assunto era português, foi se mantendo e, aqui e ali, frutificando, em boa emulação e melhor cumplicidade, risonha e admirativa.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Um soneto de Pessanha - "o mais perfeito da sua Obra"

 Estou preparando uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, a sair pela Dilúvio Editora, em Portugal.

Revisitar os documentos que utilizei para fazer a edição crítica e as subsequentes é sempre uma aventura. Por exemplo, estive consultando as decisões que tomei quanto ao texto do soneto que começa “Foi um dia de inúteis agonias”. Não é um soneto qualquer. Pessanha o considerava “o mais perfeito” dos seus poemas, segundo anota seu melhor amigo em Portugal, Carlos Amaro.
Ora, quando esteve em Portugal, em 1916, na sua última visita à terra natal, Pessanha anotou “de memória” alguns poemas, que depois foram utilizados para sua amiga Ana de Castro Osório compor a “Clepsydra”, de 1920. Esse soneto não está na caligrafia de Pessanha, mas de João de Castro Osório. Pessanha apenas corrigiu a palavra “impressível”, que João entendeu e anotou como “imperecível” e alguns pormenores.
Esse autógrafo deve ter servido para Luís de Montalvor publicar esse soneto na revista “Centauro”, em 1916. Publicação essa que foi revista por Pessanha, pois Pessanha teve de novo de corrigir “imperecível” para “impressível”.
Até aqui, tudo bem. Sucede que no autógrafo de Carlos Amaro há algo que torna o poema melhor, do meu ponto de vista. Algo que não há nem no apógrafo corrigido do seu espólio, nem na revista “Centauro”.
Nunca pude reproduzir essa versão, porque os critérios que escolhi exigiam que eu reproduzisse apenas a última versão, a última vontade do poeta.
Mas aqui, que é o Facebook e o meu blog, posso reproduzir o soneto da forma que me parece melhor, mesmo que seja contra a vontade do poeta – por assim dizer.
A diferença mais significativa está nos versos 6 e 8. No autógrafo que reproduzo aqui, lê-se “teu mole sorriso”. Nas outras versões “seu mole sorriso”.
Não creio que o autógrafo que pertenceu a Carlos Amaro tenha sido algum dia reproduzido. Aqui está ele, juntamente com a página corrigida da revista “Centauro”. A anotação diz: "Disse-me o Camilo Pessanha que era *Isto* o mais perfeito da sua Obra".

Para maior facilidade de leitura, eis o texto do manuscrito, já me ortografia brasileira.


Foi um dia de inúteis agonias,
-- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias. 
-- Dia de sol, inundado de sol. 
Foi um dia de falsas alegrias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Passavam, das feiras e romarias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido! 
Difuso de teoremas, de teorias... 
O dia fútil, mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!






sábado, 30 de setembro de 2023

Fausto

Quando assumi a direção da Editora da Unicamp, percebi que a última reunião do conselho editorial da gestão anterior tinha, para empregar uma expressão triste recentemente usada por um vilão, colocado algumas granadas no bolso no inimigo. O inimigo, no caso, era eu – por algum motivo que ainda não sei precisar. As granadas não eram algumas, na verdade; eram muitas: desde uma profusão de livros aprovados sem o rito necessário – isto é, sem pareceres de mérito que permitissem fundamentar a decisão –, até carta-branca a dois docentes de certo instituto, para que publicassem o que quisessem de uma extensa lista que, se desdobrada, daria origem a duas centenas de títulos. Porque aquilo significava apenas uma coisa: que eu não teria nada que fazer, ao longo dos quatro anos de meu mandato, senão ir pagando a dívida impagável. Ainda mais que o saldo em caixa era próximo de zero, se é que não estava negativo. Por sorte, pude contar desde o primeiro dia com um conselho editorial do mais alto nível e, nele, com o meu parceiro de longa data, Alcir Pécora. Com este passei em revista, durante vários dias, os processos dos livros aprovados irregularmente, que foram logo todos descartados, com um convite aos autores para que, se houvesse real vontade, reapresentassem proposta. Com o Conselho rigoroso erguido como assombração no final do processo, quase nenhum foi reapresentado. Vários dos que ainda constavam na lista, talvez como meros espantalhos, já tinham inclusive sido publicados. Restava o caso dos professores plenipotenciários. A cada um enviei ofício, comunicando que tal promessa-aprovação não se sustentava, cada livro teria de ser examinado, cada caso seria um caso. Dos dois, só um me deu notícia: um velho professor, que marcou hora e veio cobrar o prometido. Eu já o conhecia de nome, de modo que fiquei feliz com a oportunidade. Para espanto dos que aguardavam e temiam o possível embate, o que ecoou pela Editora foi o riso sonoro, quase uma repetida exclamação de Papai Noel, característico daquela personagem. Ofereci-lhe, tendo sido revogada a tal carta-branca genérica, a possibilidade de dirigir uma coleção inteira, nova modalidade aprovada pelo Conselho Editorial. Ou melhor, duas. E talvez três. Desde que dirigidas por ele e por uma equipe de alto nível, que elaboraria pareceres e mostraria ao Conselho a necessidade, a propriedade e a qualidade de cada publicação pretendida.
Foi assim que fiquei amigo de Fausto Castilho.
Na sequência, uma frase deu a real medida do feito e, em dimensão oposta, da real medida de quem a disse: um professor da nova geração, colega de Fausto, vendo-nos à porta do restaurante, deu um jeito, na sequência, de rir-se e me dizer que não sabia como eu tinha paciência para aturar a figura pitoresca. Nada respondi. O tempo diria. Como disse: Fausto dirigiu coleções de obras filosóficas imprescindíveis à formação de profissionais e interessados na filosofia; fez traduções e supervisionou as feitas por colegas e ex-alunos, zelou pelas edições bilíngues e apresentou à editora intelectuais que até hoje são autores da casa. Além disso, publicou conosco um livro fundamental para pensar o ensino superior no Brasil, expondo seu conceito de universidade, até hoje uma bandeira e um ideal de resistência à miséria imposta à instituição pela máquina produtivista americana. Ao mesmo tempo, foi me contando histórias deliciosas de suas visitas (ainda menino) a Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, e dos tempos da Sorbonne, da França e da Alemanha, falando de Bachelard e Sartre e Heidegger e tantos outros com familiaridade, pois os conhecera a todos. É certo que era dado a exageros e se acreditava, ao que parece, imortal. Um dia entrou na minha sala agarrado a um livro pesado. Vestia seu traje usual, que era um safári de cor clara. Vendo-o assim, ocorreu-me um caçador esmagado sob o peso da caça maior que ele. De fato, estava calor e vinha esfalfado. Depois de um minuto de suspense, em que saboreou o meu espanto, com um risinho maroto desabou o livro sobre a minha pobre mesa, com estrondo. Então riu alto e disse, com seu vozeirão: “Dr. Paulo, temos de publicar este livro!” Era o Kant Lexikon. Olhei aquilo, olhei para ele, e para aquilo de novo. Seus olhos claros riam mais do que o seu rosto. Perguntei-lhe: quem vai traduzir isto, Professor? E ele, rindo de novo: “Eu, claro!” Andava ele, eu creio, pelos oitenta anos. Ou pouco menos... Disse-lhe que podia ser, mas que precisávamos de recursos, ao que me respondeu que traduziria de graça. Quanto aos custos, seriam também por conta dele. Não tinha filhos, acrescentou. O Kant Lexikon nunca foi publicado por nós. Mas talvez de algum lugar do seu espólio ainda nos possa surpreender o trabalho começado. Mas foi bem que não o traduzisse, que não gastasse muita energia nele, porque assim se dedicou às coleções e à idealização da profícua Fundação que leva o seu nome.
Veio tudo isto à memória hoje porque Ricardo Lima passou comigo a manhã, mostrando-me o conjunto e lendo para mim a apresentação e o primeiro capítulo do livro que acaba de terminar: uma biografia de Fausto Castilho. Do que vi, ouvi e li nesta manhã, posso dizer que se trata de um livro excepcional, muito bem escrito, bem fundamentado em pesquisas, entrevistas e documentos, e ricamente ilustrado. Sobretudo, trata-se de um livro animado por um propósito louvável, e necessário: mostrar ao público o vulto inteiro de um grande intelectual, que pensou a universidade com profundidade, coerência e paixão. Em mais alguns meses, estará impresso. Quando isso acontecer, pretendo voltar ao assunto, depois de o ter lido com calma e por inteiro.

Tradução?

 Gosto de ler as postagens de Thomaz Albornoz Neves e de debater com ele. É que ele é inteligente, culto e não-acadêmico, cousas que juntas (como diria Camões) se encontram raramente. Acabo de ler uma delas. Diz o seguinte: “Esta edição de Renée propõe um exercício conceitual. No lugar do autor traduzindo seus próprios poemas, os oferece em cinco idiomas sem determinar um original. / Discorrer pelo sentido dos versos com um vocabulário multilíngue, mas fiel a uma única voz, refrata a leitura, logo a amplia. Sugere que a poesia é a mesma em qualquer idioma. Em si o poeta não muda, o poema é que varia conforme a época e a cultura.” Bom, Renée é o nome de um livro do autor. Que foi publicado (e aposto que escrito) em português. Então, há um original. O autor é o original? Sem dúvida, mas há um original textual, ou melhor: uma forma primeira em que se cristalizou alguma experiência ou expectativa. Ou seja, é difícil concordar que não há aí um autor a traduzir os seus poemas. A não ser que se afirme que um poeta recriar em alguma língua os poemas que escreveu em outra não seja tradução. (Nem vamos aqui mergulhar nas águas confusas da emoção recolhida na tranquilidade, ou no vapor úmido da inspiração. Basta pensar que algo teve uma realização num dado sistema de sons e sentidos e depois teve outras realizações, para as quais era impossível obliterar a primeira, que ao menos estará lá como baliza, pauta, desenho interior.) Mas o que me chamou a atenção nesse caso foi menos esse espinho conceitual do que a carnadura prática do resultado. Por exemplo, o primeiro verso do poema VIII desse moderno guardador de rebanhos (sendo o rebanho, no caso, o dos seus versos em prisma poliglótico): Oscurece y volvemos de la ensenada /  Tramonta e torniamo dalla cala / The sun fades and we return from the cove / Le jour tombe et nous revenons de la baie / Entardece e voltamos da enseada. Se fosse uma tradução (e não é, mesmo?) eu logo me perguntaria o que foi traduzido. Seriam os conceitos? Apenas eles? Em português, ouve-se um eco tradicional forte: o ritmo heroico do decassílabo se impõe desde logo à leitura, dando à abertura um acento que falta (me parece) completamente à versão inglesa. Também esse harmônico, por assim dizer, falta ao francês, onde poderia haver se viesse forma ou ritmo alexandrino. A aliteração do italiano produz outro efeito, diverso, ainda que forcemos bastante (a meu ver) a escansão para emular o decassílabo de Dante. Já em espanhol não percebo equilíbrio, nem eco ou alusão formal. Então, mais uma vez: se fosse uma tradução, o que estaria sendo traduzido exatamente? O autor, porém, nos informa de que não é tradução. O poeta nos oferece os poemas em várias línguas. Que quer dizer isso? Reescreve? Recria-os? É difícil escapar do sentido amplo ou restrito da palavra tradução. Seja qual for o prisma – me pergunto –  esses versos se equivalem? Não. É certo que deveria talvez julgar o conjunto de cada poema e não o incipit apenas. Mas o começo é decisivo, porque dá a tônica. Seria o poema uma operação de perde-ganha? Isso ainda seria tradução. Seria livre-composição a partir da reconstrução e vivência nova do impulso, da configuração vida-linguagem do momento em que cada um foi escrito em português? Mas então por que não seriam novos poemas, com novo título, novas palavras, em um novo livro? E seria verdade que, em várias línguas, seria sempre a mesma voz? É o mesmo o que fala assim, ou refala, em vários idiomas, com vária tradição e diversos sentidos acomodados em cada cadência ou número? A poesia é a mesma, por graça dessa identidade suposta de origem? Seria a poesia algo transcendente ao idioma? Em que sentido? Seria capaz de o atravessar incólume? Ou mesmo de permanecer idêntica a si mesma além ou aquém dos sentidos implicados nas formas? Fiquei pensando nisso, sem concluir nada porque nada queria concluir. Apenas fui anotando, em traços rápidos, as impressões. Como numa conversa, aqui, olhando a noite e a lua cheia, com um copo e um palheiro, enquanto a noite segue.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Crônica - anotação

 Na minha última divagação, registrei que a crônica me parece a poesia realmente integrada aos meios de comunicação de massa. Porque a poesia, qualquer que seja ela, não me parece. Ao deparar com um poema num jornal, abre-se como uma janela, ou melhor uma porta ou portal, para outro universo: o da Literatura. Muda a atitude do leitor. Mesmo os folhetins são janelas para fora do universo da notícia, do presente. A crônica, não. Deixa-se ler como parte do presente, seu tempo de escrita e referência é ou dá a impressão de ser o mesmo tempo da leitura. Tem isso em comum com a reportagem e o registro do fait divers de uma coluna esportiva ou policial. Se se abre nela uma janela para o lirismo, é uma espécie de janela sorrateira. Que a gente quer e espera que se abra, desde que a sua abertura não exija grande alteração na postura no leitor, por assim dizer.

Rubem Braga

 Estávamos falando sobre Caetano Veloso. Começou com a homenagem em Salamanca. Lembramos que Alcir e eu fizemos um livrinho com as suas letras, tiradas de ouvido, em 1980 ou 1981. O assunto mudou aos poucos, mas eu continuei nele, derivando: passei a recordar que, antes do Caetano, escrevemos na mesma coleção sobre Rubem Braga. Naquele tempo, foi um deslumbramento. Para mim, foi uma descoberta muito mais importante do que o vislumbre da totalidade (até então) das letras e textos de Caetano. Lemos de enfiada todos os livros do Velho Braga. Aprendemos, nos emocionamos e nos divertimos a valer. Após a leitura individual, relíamos em voz alta as crônicas que mais impressionaram. Até um volume que pelo título parecia desinteressante se revelou delicioso: “Com a FEB na Itália”. Em todos os livros, impressionou-me o lirismo intenso. Pensei e ainda penso, sem ter retornado a elas, que muitas dessas crônicas são maravilhosos poemas em prosa. O notável era o tom, o jeito de quem nunca perdia de vista o leitor, a figura mais ampla e variada de leitor, o da imprensa cotidiana. Seus textos nunca eram poesia pura, nesse sentido. Eram poesia contaminada pela presença do leitor, pela dimensão da coluna e pela atualidade, ou melhor, pela afirmação do interesse no presente. A liberdade da crônica, sua versatilidade e descompromisso de registro fazia com que a leitura de um livro se assemelhasse muito à de um volume de poemas, melhor dizendo, daquele tipo de livro de poemas que chamávamos de álbum, em contraposição ao livro organizado como livro, com começo, desenvolvimento e fim. Essa versatilidade permitia extrair muitos poemas de notícias de jornal, e, na direção contrária, transformar muitos momentos líricos em um tipo de notícia: a crônica, o relato do tempo que passa ou já passou. O mais corriqueiro se elevava a símbolo, o mais alto símbolo podia ser trazido ao nível literal do chão e fazer rir ou enternecer. Ainda hoje me ocorre que a crônica, entendida dessa forma, é a poesia de fato integrada aos meios de comunicação de massa. E também me ocorre algo que ainda preciso pensar melhor: que há um momento na obra do genial cronista que foi Machado em que a enorme liberdade de que ele dispunha nesse gênero invade o domínio do romance, onde ele até então era um comportado senhor, bem diferente do afiado e imprevisível cronista de jornal. Mas isso foi uma divagação dentro de outra. A que importava e me desviava repetidamente a tenção, enquanto a conversa voltava ao rumo da crítica às homenagens e títulos acadêmicos honoríficos, era a que me trazia à lembrança o impacto que teve a leitura sequencial das crônicas que Braga julgou por bem ajuntar e publicar em livro.


Autoplágio



A manhã já vai a meio. Faço uma pausa para um café e divago. E me vem à cabeça o conceito de autoplágio, que só existe porque o produto do pensamento passa a ser tratado cruamente como mercadoria. Creio que o conceito e sua aplicação têm origem dupla: por um lado, a lógica perversa do sistema de revistas científicas internacionais, que vivem de vender assinaturas. O intelectual ali aliena o produto do seu pensamento, mas sem remuneração. Sua instituição ou uma agência de fomento paga a ele para estudar e pesquisar, e sem seguida os resultados de seu trabalho é cedido aos periódicos. Mas a cessão não é gratuita nem remunerada ao pesquisador ou instituição: trata-se de uma inaudita cessão na qual o cedente paga ao cessionário pelo direito que lhe transfere. Para maior estranhamento, uma vez cedido o direito, a instituição, num circuito perverso, paga para ter acesso a ele por intermédio do periódico. Também nessa categoria de negócio ficam as editoras, mas com dignidade na maior parte dos casos, pois o editor de fato investe capital e trabalho na produção do livro e paga os direitos autorais. Dessa forma, ocorre uma relação clara e limpa entre o produtor, o intermediário e o público. Entretanto, há também muitas editoras caça-níqueis, que no Brasil se apresentam como Qualis A ou B, e que só publicam mediante pagamento dos custos de produção. Nesse caso, como os periódicos, se apropriam gratuitamente do produto intelectual, mas ao menos em geral pagam os direitos autorais em exemplares ou, mais raramente, em pecúnia. De outro lado fica a cultura do produtivismo, que se dispensa de verificar o mérito ou o caráter de cada publicação. Como não se lê nada nem se verifica a situação e o lugar de publicação, e como se traduz tudo em números, o posterior uso do produto pelo produtor, isto é, do texto pelo seu autor, fica alienado assim que publicado, sendo a republicação, no todo ou em parte, considerada uma fraude.
Entretanto, ao menos na nossa área, alguns trabalhos fundamentais, que atravessam os anos, poderiam ser banidos da produção do professor ou pesquisador sob alegação de autoplágio. Refiro-me aos livros que reúnem artigos publicados em periódicos ou na imprensa de massa. Mas não é só o caso de clássicos como os livros de Antonio Candido, que são reuniões de artigos e conferências. Ocorre também na escala miúda. Eu mesmo sou um autoplagiador. Por exemplo, no livro que resultou da minha livre-docência, o primeiro capítulo tinha sido publicado um ano antes num livro de homenagem a Óscar Lopes. E em uma conferência sobre Pessanha utilizei esse mesmo capítulo para exposição oral. Creio que utilizei ao menos uma parte dele em algum lugar. Um trabalho sobre I-Juca Pirama saiu num livro da Edusp e depois foi incluído numa coletânea de trabalhos, junto com artigos de jornal e outros textos já publicados. Na verdade, quase nada há inédito em “Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa”. Ou seja, esse é um livro que deveria pontuar 0, se algum metrificador o lesse e visse nele a referência da publicação anterior de cada parte. Além disso, um programa que algumas editoras usam para verificar se alguma parte de um livro já foi publicada certamente encontraria nos capítulos de livros e artigos de periódicos rastros e trechos mais ou menos longos de publicações que fiz no meu blog. Tanto é que uma editora recente, para publicar um livro, condicionou a publicação à retirada do ar de textos em que o programa encontrou partes idênticas ou quase idênticas. O que, sendo uma relação comercial clara, não me pareceu absurdo. E cumpri.
Voltando ao ponto: a origem dessa polícia é fácil de entender. É a pressão para os professores e pesquisadores produzirem muito. Uma pressão irracional, que produz forte distorção em algumas áreas, como a dos estudos literários, que demandam tempo de amadurecimento e redação (porque o estilo é parte importante e porque dificilmente tem interesse a publicação apressada e precoce de resultados parciais de uma reflexão em curso). Mas não só. Nas áreas “duras”, essa pressão resulta em oportunismo: dados falsificados, conceitos errados e resultados fantasiosos. Se a origem é essa, a função dessa polícia é ratificar a alienação promovida pelos periódicos internacionais e pelo sistema de avaliação matemática da produção da pesquisa.
Uma consequência grave da visada produtivista é o desprestígio da docência. Um bom professor que não publica muito passa a ser condenado. Mas não um péssimo docente que publica um artigo após o outro. É que a docência não se mede numericamente. Na situação atual, dar 10 aulas ruins pode parecer melhor do que dar 4 aulas fundamentadas. Além disso, a docência é cheia de autoplágio: de outras aulas e de artigos e ensaios que o professor publicou. A docência, assim, não é mensurável, a não ser quantitativamente ou, pior, por questionários aos alunos. Daí que as pessoas sejam contratadas nas universidades como “professores”, mas que a sua valorização para auxílios, bolsas e promoção na carreira seja basicamente pela divulgação de sua produção de pesquisa. E na avaliação do pesquisador não se incluem os ganhos intelectuais obtidos na preparação e no desenvolvimento dos cursos. 
Um amigo a quem envio estes textos esparsos me diz sempre que é perda de tempo. Estamos depois do fim. O fim já aconteceu. É, portanto, irreversível. Escrever sobre isso é como desenhar na água ou num pote de geleia. Talvez ele esteja certo. Mas Anchieta não o fazia na areia? Então, com predecessor tão ilustre, não me sinto mal rabiscando no nosso pote de geleia, enquanto a brisa forte da manhã vai amenizando o calor neste final de um estranho inverno.

Periódicos - a máfia

Acabo de responder a um questionário de pesquisa do CNPq sobre publicações. As perguntas eram de dois tipos: por que eu escolheria um determinado periódico para publicar? – e: o que acho da cobrança para publicação? Da minha confortável posição de aposentado, posso dizer com ainda mais ênfase o que sempre disse quando militava na Unicamp. À primeira pergunta respondi que escolho por dois critérios: sem cobrança de taxa alguma tanto para o autor quanto para o leitor (um terceiro critério, que não vem ao caso por ser cada vez mais raro é: receber pela publicação); a relevância que uma dada revista tem na minha área, independente dessa bobagem matemática chamada índice de impacto. O segundo critério tem a ver com a área, mas não só. Em Literatura, a gente sabe quais são as boas revistas, e sabe também da farsa frequente que são os conselhos editoriais, inchados de pessoas ilustres, e o registro fictício das datas de recebimento e aprovação. Creio que isso seja apenas uma cedência à imposição de outras áreas, nas quais não posso dizer que tais dados tenham relevância (a não ser para registro de precedência), embora desconfie que não é tanto quanto a propaganda dos editores acabou por nos fazer crer. A primeira pergunta tem a ver diretamente com a máfia das revistas: cobram uma alta taxa das universidades ou dos órgãos financiadores para publicar artigos e depois vendem para essas mesmas universidades as assinaturas de suas revistas a peso de ouro. E é bem-feito: as universidades se tornaram presa fácil, na medida em que delegaram às revistas o filtro para contratar docentes e avaliar a produção dos já contratados. A CAPES, assistindo ao que se passa e por imposição das ciências duras, estabeleceu a escala do Qualis. Mas sinceramente nunca fui verificar o Qualis de uma revista para publicar nela. Se meu artigo for bom, será encontrado por quem se interesse pelo assunto, se não for ficará merecidamente no limbo, seja em que tipo de revista estiver. Além disso eu tenho um blog. E se comparar o acesso a artigos em revistas especializadas e no blog, tendo a pensar que deveria publicar mais ali do que em qualquer periódico. Essas coisas estão todas ligadas e é fácil compreender. Por exemplo, um dirigente de órgão de financiamento à pesquisa, fortemente convicto da importância da matemática na mensuração da qualidade, passa a integrar a diretoria da que é talvez a maior editora dos periódicos que toda universidade se vê obrigada a assinar, por conta da roda-viva produtivista. Dizer não a esse esquema é difícil para os jovens professores. Principalmente porque já vêm desde o início da carreira colonizados pelos ditames da produção desenfreada e do papel dos periódicos na avaliação da qualidade. Para os mais velhos, creio que é mais fácil, embora nem todos estejam dispostos a comprar a briga. Para encerrar, li que uma colega recentemente disse que as editoras e os financiadores são elementos importantes do ecossistema de pesquisa. No tal sistema, universidades e agências financiadoras pagariam o processo todo da pesquisa, e as editoras entrariam no final. É verdade. O que faltou dizer é que nesse tal ecossistema o segundo elemento é um predador voraz do primeiro.

sábado, 2 de setembro de 2023

Perfis - 10 – Carlos Vogt



Uma certeza me guia nesta tarefa, que desobedece a um preceito. O preceito era não redigir perfil de pessoas vivas. A certeza é que se há alguém que suportaria contemplar-se num desses perfis, ignorando ou fruindo a eventual carga de ironia, é ele. Aliás, creio que, sendo um perfil dele, já lhe bastaria, acostumado que está ao sim e ao não, desde que subordinados à presença. Conheci-o primeiro no restrito redil acadêmico. Fomos colegas de Instituto e quase de Departamento. Mas quando pleiteou a transferência já era muito político. Seu patrono argumentava que, nesse aspecto, o candidato mudara, estava desistindo da vida pública, queria um cantinho para trabalhar em paz com literatura, e ser, como nós, apenas mais um acadêmico relativamente anônimo e às vezes dedicado. Alexandre Eulálio, porém, brandiu o argumento de peso universal: ninguém muda! E fez bem, porque, se aceito, Vogt não seria só mais um, provavelmente apenas estaria ali nominalmente, sendo seus horários e tarefas divididos entre nós. Ou seja, não seria bom para ninguém. Já da forma como foi, ganharam todos: ele, a universidade e o Estado. E nós. Ninguém muda. E graças a isso a universidade foi regida pelos oito anos que muitos, eu incluído, consideram as quadras douradas da instituição. Estou afastado da Unicamp há vários anos, mas sou dos que se acostumaram a ver o vulto do homem em toda parte. Talvez, no meu caso, por ter sido quase atropelado por uma sua criatura, o Projeto Qualidade. In illo tempore a gente não tinha pressa em se titular. Bastava estudar e lecionar. O doutoramento não era uma necessidade nem um objetivo, e assim ia sempre ficando para as calendas. Enfin Vogt vint... foi o nosso Malherbe: regrou tudo, baniu o que achava banível, exigiu o que achava exigível. Doutoramento em três anos ou rua. Por isso fui parte do rebanho que pastou bibliografia, roeu canetas e rasgou a alma nas madrugadas ruminando páginas. Chegando mais perto, diria que o mais marcante nesse homem era a capa de blandícia. Por debaixo podia haver um tigre ou um como nós. Mas ela era suficientemente opaca para não deixar ver, e por isso incongruente com a fama gerada, o que a tornava quase ameaçadora. Em certo sentido era a essência de seu poder: uma meia frase, um sorriso de canto de boca, um olhar que é como uma pergunta aliciante, um risinho controlado, temperado com um endurecimento dos lábios, uma oscilação da narina e algum movimento súbito do olho. Dali podia vir um favor ou uma punição. Ou nenhum dos dois – o que me parece ter sido quase sempre a regra. Embora eu ainda acredite que, sendo essa a regra, as exceções pudessem ser doloridas. Sempre me admirei desse poder em pura potência, que não dependia de nada para se sustentar na altura da cara do interlocutor, como um balão de ar que poderia se tornar uma granada ou uma flor, mas que na ordem das coisas era e continuava sendo apenas um balão. Talvez venha dessa manipulação do balão de ar o magnífico poder de atração, que fazia com que sempre a roda à sua volta, seja num baile, numa tese ou num comício, fosse maior do que a roda dos demais. O quilate do homem, sua têmpera, se revelava no graúdo, mas também no miúdo. Certa vez sentou-se à mesa ao meu lado, deixando vaga a cabeceira. Observei que il Cappo di Tutti Cappi deveria se ter sentado à cabeceira, ao que me respondeu, com ironia na dose certa para ser afirmação segura, que tanto fazia onde se sentasse, porque o lugar passaria a ser a cabeceira. Eustáquio Gomes, num livro memorável, narrou com precisão um momento simbólico. Era o final da reitoria. Nosso herói passa os olhos lentamente pelos retratos, quadros e objetos da sala – pessoas, lugares e símbolos do poder, que ele soube exercer com as doses eficazes em tudo o que fosse preciso. Eustáquio percebeu a melancolia tensa do momento, que narrou como terminal. Mas deve ter visto, embora não registrasse, que era apenas um capítulo mais dramático, não o fim do romance. Porque a propósito poderia requentar aqui um dito popular: Vogt saiu da Unicamp, mas a Unicamp nunca saiu dele. O que é verdadeiro, mas não suficiente, porque a realidade exigiria um quiasmo: a Unicamp saiu do Vogt, mas o Vogt nunca saiu da Unicamp. Este, aliás, mais justo, porque se ela lhe saiu das garras diretas, ele não desgrudou dela, nem quando ocupou outros cargos relevantes. Nesse esforço de domínio, a unha até hoje enfiada na carne acadêmica é o Labjor. Mas outras unhas se juntam à primeira, a mais recente das quais atendia pelo nome de IdEA. A cordialidade costumeira, que é talvez a unha do mindinho, faz escala na sua poesia: a cada ano, pelo encerramento, um breve poema pelo correio ou pelo escaninho. Era um cumprimento e um lembrete. Não era, porém, poeta bissexto ou de data fixa. Alcir Pécora, num texto de perfeita descrição, mapeou a corrente dos anos de 1960. Uma nota ali permite juntar o poeta ao professor e este ao estudioso e ao político. Não sei se a traduzo bem, mas seria algo como a consciência vigilante. Alcir a surpreendeu nos títulos, assinalando o seu poder modalizador, controlador da leitura, basicamente pelo recurso à ironia. O obsceno, o mordente, o cínico, o confessional ou o pungente são, por meio deles, conduzidos a um registro mais pacífico. Talvez por isso de menos potência. Algo como um pé no freio, de busca de uma faixa neutra, fora da zona de guerra, do perigo. O crítico, ao final do prefácio, diz que iria reler o conjunto, torcendo secretamente por surpreender algo que desbordasse os limites do controle. Penso agora que o sentimento é do mesmo tipo, com sinal trocado, do que descrevi como presidindo à constatação da blandícia, que na crítica ou na atuação se resolvia, no confronto ou aliança pessoal, como mero temor e sobressalto, que o mecanismo, a estratégia e objetivo final eram, em essência, os de sempre. Tinha este texto pronto, quando Vogt veio, com Alcir, visitar-me. Trazia o homem um belo chapéu. Sentou-se na varanda, de frente para a praça. Conversamos longamente os três. Ainda a vivacidade, e o mesmo jeito de falar com o pé no freio e com o sorriso que indicava um subentendido. Que às vezes eu entendia, às vezes buscava em vão. Era sempre o mesmo homem. Ninguém muda. Estava certo o perspicaz e veemente Eulálio. E era bom.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A rã de Bashô – II (ainda as rápidas anotações insones)



Para muitos, tanto aqui quanto no Japão, esse haikai merece toda a fama que tem pelo seu sentido. Uma história tradicional diz que um mestre zen, com quem Bashô teria estudado, fez aos discípulos algumas perguntas de resposta impossível. O resultado é algo como um koan: o mestre pergunta algo sobre a lei de Buda e Bashô, ouvindo o barulho de uma rã pulando na água responde com a última parte do poema: o barulho das rãs pulando na água. O mestre fica muito admirado e toma isso como um índice da iluminação de Bashô. Depois disso, Bashô submete a questão aos seus discípulos: qual seria o primeiro verso para esse haikai? Depois de várias sugestões, ele diz que o verso será “O velho tanque –“. Nisso se teria aberto o Olho do Haikai! É uma história zen, como se vê. E como outras que dizem respeito a Bashô e o zen, provavelmente apenas tradicional, ou seja, não factual. Por conta disso, muito se investiu na interpretação zenista desse poema. E de outros de Bashô. A ligação do haikai de Bashô com o zen, é tributária da orientalização da contracultura norte-americana, na qual o irracionalismo encontrou na imagem daquela vertente do Budismo um terreno propício à projeção dos seus ideais e de suas angústias com o rumo da vida ocidental. Um escritor magnífico como Alan Watts, por exemplo, teve grande magistério. E também D. T. Suzuki, em cujo livro mais famoso há um capítulo intitulado “Haikai e Zen”. Para esses leitores, um poema plano como o furu-ike ya exigia uma interpretação esotérica. Tão mais esotérica quanto mais objetivo ele se apresenta. Mas a pergunta permanece: por que esse haikai especificamente? Por que nele recaiu a atenção e por que nele se investiu tanto na interpretação esotérica? A resposta a essa questão se pode encontrar num texto muito interessante escrito por Masaoka Shiki. Nele, Shiki finge um diálogo com um visitante justamente sobre esse poema. O artigo foi traduzido por Blyth, e creio que foi esse texto que fez com que ele, Blyth, corrigisse a sua própria percepção do poema, em certa época muito embebida de zen. Eis o começo do texto de Shiki, onde a questão se apresenta da forma que julgo mais razoável. Começa a sua visita por dizer que o poema é conhecido até pelas pessoas menos estudadas, que é uma obra-prima, “embora ninguém consiga explicar o seu significado”. Ao que Shiki responde: O sentido desse poema é apenas o que ele diz; ele não tem nenhum outro sentido, nenhum sentido especial. Na sequência, esclarece: o poema ficou assim famoso porque Bashô o apresentou como o primeiro da sua própria maneira, aquele que divide o novo estilo do velho. Por isso, completa, as pessoas depois ficaram falando dele. Com o tempo, essa fama terminou por se confundir, no sentido de que esse poema seria o melhor haikai de Bashô, e o sentido da sua fama e o próprio sentido do poema terminaram por ser esquecidos, dando lugar a todo tipo de interpretação esquisita. Em seguida, mostra como a rã era representada, de modo antropomórfico ou como objeto de ridicularização, até propor que a novidade do poema de Bashô é que ali a(s) rã(s) faz(em) apenas o que as rãs fazem, mais nada. Ou seja, o que Shiki diz é que a maneira de Bashô é a poesia objetiva e fiel à realidade observável, sobre objetos simples em linguagem despojada: com clareza e com simplicidade, nada escondendo e nada cobrindo, evitando o raciocínio e a exibição técnica. Essa é a nova poesia, de que esse haikai é a primeira realização. Pessoalmente, tendo a concordar com Shiki e não creio que ele tenha interpretado mal o sentido desse haikai na história do gênero. Nem por isso cai por terra a possibilidade de uma leitura zen, à ocidental, pois onde mais, a não ser numa cultura na qual o zen tem um papel importante, um poema com tais características negativas poderia ter tal destaque, ter anunciado uma nova maneira e se tornado um marco na história de uma arte centenária?

A rã de Bashô – I (rápidas anotações de uma noite de insônia)



Não deve haver muitos poemas (não creio mesmo que haja algum) tão conhecido no mundo todo quanto o que Bashô compôs sobre uma rã que mergulha num velho tanque. Em português, há dúzias de traduções. Em inglês e em francês, idem. E não deve ser diferente em outras línguas europeias. Além disso, é um clássico japonês e creio que em todo o Oriente quem gosta de poesia já deve ter ouvido falar ou lido uma tradução. É verdade que a diminuta extensão do texto favorece. Mas não é só isso. O haikai, desde a segunda metade do século XIX vem despertando o interesse ocidental, na esteira da “descoberta” do Japão, propiciada pela abertura do país a partir de 1867, depois de mais de 300 anos ciosamente protegido dos olhares e da experiência direta dos estrangeiros. A onde de exotismo extremo-oriental, bem conhecida no final do século, também favoreceu o pequeno poema de 17 sílabas.
Mas afinal por quê? Há tantos versos de Bashô e de outros grandes poetas japoneses que permanecem desconhecidos... Mesmo entre os que louvam o haikai de Bashô poucos haverá que possam dizer de memória qualquer outro poema dele. Apenas o furu-ike na flutua na memória e passa por ser o melhor poema de Bashô, ou mesmo o melhor poema da literatura japonesa. Mas seria isso verdade? 
Comecemos pela pergunta mais simples e direta: o que diz esse poema? Uma tradução simples seria: velho tanque - rã(s) mergulha(m), barulho de água. É difícil decidir se se trata de uma rã ou de rãs. E a expressão “tanque velho” vem seguida da partícula “ya”, que indica um corte e não tem bom equivalente. Pode ser dada como uma exclamação “Ah!”, mas eu acho que isso é forte. Poderia ser uma exclamação ou reticências, mas também me parece forte. No geral, a solução encontrada por muitos é marcar com um travessão a quebra indicada pelo “ya”. Mas há outra coisa que escapa sempre: não é possível em português deixar indefinido o número: ou marcamos pelo menos duas vezes o plural: rãS mergulhaM, ou marcamos de modo indubitável o singular: UMA rã mergulha. Temos de optar e com isso já temos eliminada a possibilidade de o barulho também ser, por assim dizer, plural. Mas vamos concordar que se trata de uma só rã. Ainda assim, em português o haikai aparece muito quebrado, pois em japonês “kawazu tobikomu” é uma expressão que adquire um aspecto adjetivo. Ou seja, uma possibilidade de tradução seria: o barulho da água do mergulho da rã. Isso é muito analítico, embora seja mais fiel ao original, no sentido que o barulho da água e o mergulho formam uma unidade, um qualifica o outro. Mas nessa ordem tudo se perde, pois o movimento deve começar com a rã e terminar com o barulho, logo depois de a rã entrar na água, enquanto na nossa paráfrase se dá justamente o contrário. Algumas traduções buscam ressaltar o aspecto sonoro. Leminski não disse “rã”, mas “sapo”. O sapo salta é uma aliteração. E há outros que escolheram o sapo. Apesar de algum ganho sonoro, não me parece uma boa solução, porque a rã é que vive em lagoas; os sapos vão para a água para procriar apenas. O mais importante, porém, é o enquadramento sazonal: rã é indicativo de primavera, renovação da natureza, retomada do ciclo da vida. Quando contraposta ao tanque velho, que sugere algo imutável, provoca-se o contraste. Se há união de opostos aqui é a da renovação com a permanência, do renascer com a velhice. A materialização dessa união é o som. Por fim, nesse contraste se encontra uma glosa ou alusão à ideia tão cara à escola de Bashô de que na arte há um elemento fixo e outro variável. De mais a mais, o japonês é uma língua com poucas combinações de sons para formar sílabas ( normalmente uma consoante e uma vogal) e não me parece que nesse haikai em particular haja algum esforço de onomatopeia. Então fiquemos com a rã. Mas tudo isso que dissemos até este ponto poderia ser encontrado em outros poemas de Bashô ou outro poeta de primeira linha no haikai. Portanto, fica ainda sem resposta o porquê de esse haikai em especial ter ganho essa fama e ter merecido tanta análise e comentário. (Continua…)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Direito ao uso


Postagens como a que fiz tendem a dar motivo para comentários agressivos. Autores que denominam os seus textos “haicai” ou “haikai” se sentem agredidos e revidam. O argumento se apoia na liberdade criativa: cada um faz o haicai do jeito que quiser. Eu nada tenho contra tercetos criativos. Ou dísticos criativos. Quadras, piadas, paródias. Pelo contrário! Meu ponto é o uso do nome. Por que alguém denomina “haicai” um poema breve qualquer? Eis a questão. Por que alguém denomina “poesia” um arranjo visual de formas geométricas? No melhor dos casos, porque busca expandir o sentido do nome, desautomatizar. Mas o que percebo no geral é uma reivindicação de um modo de leitura: leia-me como poesia, leia-me como haicai. O mais comum, porém, não é nem isso, é apenas manifestação da preguiça. Reivindica-se o direito ao uso do nome e ponto. Não se vê um esforço de compreensão, seja do poema japonês, seja da história do uso do nome no Ocidente. Há, por certo, um ponto a considerar: quem advoga o uso do nome para qualquer poema brevíssimo se contrapõe ao haicai reduzido a mero terceto de 5-7-5, animado por um propósito descritivo. Há, de fato, um mar de haicais nesse esquema – e, como em todo tipo de poesia, de literatura, na maior parte coisas sem grande interesse. Além disso, o haicai entendido como terceto promove de fato, como o soneto e a quadra, um exercício meramente formal, automatizado. Com a vantagem de parecer mais fácil, pois muito breve e sem rimas... Mas entre os que buscam ao menos a forma adaptada do 5-7-5 e os que usam o nome para designar algum fruto da preguiça prefiro os primeiros. Porque não haveria mal algum em denominar a própria produção apenas “poesia”. Por que chamar “haicai” a poemas brevíssimos, o mais das vezes escorados apenas num trocadilho, numa piada ou gracinha neoconcreta? Por que não, se a forma lembrar a do haicai, entender o produto como “tercetos criativos” ou o que seja. A reivindicação do nome é outra coisa. Principalmente quando se faz de forma agressiva, a pretexto de combater uma prática que se julga desinteressante, formalista ou castradora, e, na verdade, atropelando, desqualificando aquilo que a palavra denomina (seja como resultado, seja como atitude, seja como busca) na mais alta tradição, seja no país de origem, seja entre nós, no Ocidente.

Treinamento do espírito


Embora afastado da prática e do convívio, continuo recebendo livros físicos e digitais de haicai. Já ao haicai japonês retorno com frequência, como quem abre uma janela e deixa entrar o ar fresco num quarto abafado. Não gosto da ideia, repetida muitas vezes até por quem ignora a língua, de que só é possível fazer haicai em japonês. Como se só houvesse um haicai, um tipo de haicai, no Japão. E como se essa afirmativa se referisse a todos os aspectos do haicai. Só é possível, talvez, fazer haicai naquela forma, tal como se fazia em japonês: a forma clássica. Isto é, com os segmentos regulares definidos por número de -moras- e por palavras de corte. Mas isso é essencial? – poderíamos perguntar. É isso que nos inspira no haicai e nos desperta o desejo de recriá-lo em língua ocidental? Está claro que não. Porque – voltamos ao ponto – a maioria dos praticantes ocidentais não consegue escandir corretamente um haicai japonês, nem mesmo identificar nele as palavras de corte, que definem os segmentos; e porque seria sem sentido tentar compor por -moras- numa língua como o português. Não obstante, a esmagadora maioria dos praticantes se apega a uma tradução grosseira da forma. Traduzem a duração das -moras- por sílabas poéticas contadas à nossa maneira e o delicado equilíbrio dos segmentos por três versos. Junte-se a isso algum pendor descritivo e chegamos ao mínimo múltiplo comum do haicai no Brasil. Até aqui, porém, não temos nada exceto uma fôrma (faz falta o abolido acento diferencial). Do meu ponto de vista, nada de interessante, a não ser pela facilidade – o que responde pela grande cópia de livros de haicai que têm sido publicados. Mas é isso que queremos importar, quando falamos em escrever haicai em português? Se for isso, não vale a pena. Melhor desenvolver a quadrinha. Os mais versados na arte favorecem a divisão das frases em dois blocos: um ocupando dois versos e outro ocupando um verso. E aqui já se roça um elemento importante da forma: a composição por justaposição. Os que conhecem a tradição do haicai japonês acrescentam à justaposição a recusa das figuras de linguagem, evitando especialmente a metáfora e a atribuição de vida aos seres inanimados e de qualidades humanas aos elementos da natureza e aos animais. E ainda a fuga à palavra “eu” e à expressão direta dos sentimentos e emoções. Isso já vale a pena importar ou imitar, eu creio, porque é um bom exercício de negação das práticas usuais da poesia entre nós. Fazer poesia que funcione, dentro desses parâmetros, implica uma forma de olhar para as coisas e uma forma de escrever. É uma arte difícil, na qual a banalidade ronda todo o tempo e não raro triunfa.E chegamos ao que creio que interessa: tal como definido na escola de Bashô, um haicai “brota”. Ou ao menos o broto do haicai surge, podendo depois ser podado, ajustado ao desígnio original. Quando o espírito está livre da visão própria – é a lição – ele se funde com as coisas exteriores e esse movimento determina a forma dos versos, do poema. Aqui está o mais impressionante e o mais difícil, aquilo que, na minha opinião, vale a pena tentar incorporar, importar, imitar: o haicai como produto de um estado de espírito, um jeito de ser, uma forma de estar no mundo e de conceber a palavra e o momento da composição. O mais, ainda aquilo que não seja propriamente supérfluo, não me parece essencial.