Machado e Camilo
Resumo:
É intrigante a quase
nenhuma referência de Machado de Assis a Camilo Castelo Branco, escritor que
era dos mais lidos no Brasil e pessoa das relações da família de Carolina, sua
mulher. Ao mesmo tempo, são muitas, na obra de Machado, as referências a outros
autores portugueses, entre as quais se destaca a feita a Garrett no prólogo da terceira
edição das Memórias
póstumas de Brás Cubas. Nesta
comunicação, esse silêncio eloquente é pensado contra o pano de fundo do quadro
mais amplo da situação de Machado no campo da prosa moderna em língua
portuguesa.
Palavras-chave: Machado de Assis, Camilo Castelo Branco,
realismo no Brasil
Uma questão que parece pacífica é a divisão da obra de
Machado em duas fases. A primeira compreendendo os 4 primeiros romances (Ressurreição, 1872; A mão e a Luva, 1874; Helena, 1876, e Iaiá Garcia, 1878); a
segunda os outros 5 (Memórias póstumas,
1881; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1899; Esaú e Jacó, 1904; Memorial
de Aires, 1908).
A motivação para o corte e a mudança (se corte e mudança
houve), tem sido motivo para alguma discussão. As hipóteses biográficas
predominam, com a responsabilização da famosa crise de saúde que o teria levado
a Friburgo, de onde retornaria com as Memórias.
Logo mais retornarei a esse ponto. De momento, queria considerar a descrição
geral das duas fases.
À primeira se tem usualmente denominado “romântica” e à
segunda “realista”.
Mesmo os que, como BOSI (1994, p. 174), julgam inadequada a atribuição
da denominação “romântica” à “primeira fase” (ele diz que a melhor maneira de a
descrever seria como “de compromisso” ou “convencional”), não a descartam de
todo, mas antes a transformam em etapas bem marcadas de uma evolução. Para só
referir o mesmo autor, Bosi vê a segunda fase como uma intensificação e
radicalização da primeira, do ponto de vista da narrativa, que aprofundaria o “desprezo
às idealizações românticas”.
Na descrição preferencial, a mudança se materializaria no
abandono da perspectiva onisciente e na assunção da primeira pessoa narrativa.
Bosi, a respeito, afirma que Machado teria ferido “no cerne o mito do narrador
onisciente”. Isso conduziria Machado a um tipo superior de realismo, mas não ao
realismo tal como era conhecido em seu tempo, que propunha justamente o ponto
de vista neutro do “experimentador” como o meio técnico para a melhor
realização do romance.
Já Roberto Schwarz escreve, sob a questão do narrador em
Brás Cubas:
Ao colocar na posição de
sujeito narrativo o tipo social de Brás Cubas – o verdadeiro alvo da sátira –
Machado tomava um rumo perverso e desnorteante. Camuflada pela primeira pessoa
do singular, que a ninguém ocorreria usar em prejuízo próprio e com propósito
infamante, a imitação ferina dos comportamentos da elite criava um quadro de
alta mistificação: cabe ao leitor descobrir que não está diante de um exemplo
de auto-exame e requintada franqueza, mas de uma denúncia devastadora.
(SCHWARZ, 1990, 177-8)
Entretanto, vale a pena olhar com mais atenção o desenho –
não apenas do narrador, mas também do leitor ao longo das duas fases da obra
machadiana, bem como ter em mente o momento preciso no qual se teria dado a
virada.
A leitura dos quatro primeiros romances de Machado mostra um
desenho interessante, no que diz respeito à assunção da voz autoral e da
representação do leitor.
Em Ressurreição, 1872, há 3 momentos importantes nos quais o autor
assume a voz autoral e dialoga diretamente com o leitor. O mais interessante
deles é este:
Entendamo-nos,
leitor; eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta
era efetivamente de Luís Batista. A convicção, porém, do médico, — sincera,
decerto, — era menos sólida e pausada do que convinha. A alma dele deixava-se
ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias favoreciam e
justificavam. (Cap. XXII)
Já no
livro seguinte, A mão e a luva,
1874, são inúmeras as vezes nas quais o
autor assume a voz autoral e interpela ou dialoga com o leitor. Das quais as
mais notáveis são estas:
Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era
o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no diálogo que precede, se
é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa,
— aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio. (Cap.
VII)
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa
vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para
vir até aqui, e seguir até o fim, numa história, como esta, em que o autor mais
se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns sentimentos
humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa não se animaria a
fazer; — não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela
jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso
Estevão. (Cap. IX)
Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o
leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu,
diversos e contraditórios, como é de razão em análogas situações. Apenas direi
por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir à cidade, quatro em
ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em
que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. (Cap. XI)
A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não
retirou logo os olhos. Havia neles uma interrogação imperiosa, que a alma não
se atrevia a transmitir aos lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação,
esperemos o capítulo seguinte. (Cap. XII)
Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo
nem tão pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baronesa não são os
da leitora; ela só lhe via o lado bom, — que era realmente bom, — ainda que de
uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via nem podia ver-lhe a
frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto que se lhe gerava no
coração. (Cap. XIII)
Não falo eu, leitor; transcrevo apenas fielmente as
imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que ele abria por
esse espaço fora, única ventura que lhe era permitida. (Cap. XVI)
Em Helena, 1876, as referências ao leitor são mínimas, sem
especificidade nem digressão. E a voz autoral não se apresenta.
Por fim, em Iaiá Garcia, 1878, a narração transcorre totalmente neutra, sem
assunção da voz e sem tematização do leitor ou do processo de escrita.
Como se vê, o narrador machadiano evolui numa direção entre
1872 e 1874, mas muda de rumo entre 1876 e 1878. Apaga-se a figura autoral, a
tematização do livro e do ato da escrita desaparecem, o narrador não se
apresenta nem interage com o leitor. O ápice desse processo é Iaiá Garcia.
Dir-se-ia que Machado caminhava numa direção precisa:
abandonava o modelo da narração romântica, de narrador intrusivo, e adotava o
narrador onisciente neutro. Ou seja, caminhava na direção do tempo, no que diz
respeito à constituição do narrador realista.
No entanto, após 1878, o rumo se alterou, como sabemos. E as
Memórias póstumas exibirão, como
lemos na apresentação do defunto autor, “a forma livre de um Sterne, ou de um
Xavier de Maistre” (ASSIS, 2004A, 513).
Não seria absurdo pensar, quando se observam todos os ecos
da famosa polêmica que no Brasil se gerou em torno do livro O primo Basílio, que a mudança de rumos
se deu também como uma recusa ao “realismo”.
De fato, Machado reagiu duramente ao livro de Eça, lançado
no mesmo ano do seu Iaiá Garcia,
firmando posição como opositor do realismo e, por extensão, à forma moderna do
romance, contra a qual aconselhava beber “aquelas águas sadias do Monge de Cister, do Arco de Sant'Ana e
do Guarani.” (ASSIS, 2004B, 908)
Os três livros referidos como exemplares formam um conjunto
curioso. O que eles têm em comum, além do fato de serem romances históricos – e
é difícil crer que Machado imaginasse que a oposição ao realismo passaria pela
ressurreição da novela histórica –, é que são livros de linguagem e assunto
elevados.
Como escreveu Roberto Schwarz a propósito da posição de
Machado nessa polêmica,
a norma é antimoderna em toda a linha. A recusa da matéria
baixa leva à procura do assunto elevado, quer dizer expurgado das finalidades
práticas da vida contemporânea. (SCHWARZ, 1977, 65)
Mas ao menos no que diz respeito ao Arco e ao Monge há um
ponto comum que terá mais peso no desenvolvimento futuro da obra de Machado: a
narrativa em que o diálogo com o leitor, tematizando as suas expectativas ou
apenas utilizando-o como muleta para a passagem de uma a outra cena.
De modo que é possível compreender o movimento de Machado,
na oposição ao realismo, como um recuo para o tipo de narrador romântico que
ele tão bem ensaiara em A mão e a luva.
Como se o vetor rumo à modernidade do romance sofresse um abalo, e, face à
impossível competição com o furor causado pela construção realista, o escritor
se visse forçado a buscar novos rumos, a desenvolver nova estratégia.
A pergunta que me fiz, quando pensei a questão nesses
termos, foi: por que não houve, nos textos de debate, nem depois, menção à
literatura de Camilo Castelo Branco?
Afinal, não é Camilo o escritor em língua portuguesa que
melhor trabalha (pelo menos até Machado começar a publicar os romances da
“segunda fase”) o diálogo com o leitor? E não é Camilo quem mais duramente
satiriza as expectativas do leitor romântico, chegando frequentemente às raias
do insulto?
A quase nenhuma referência de Machado a Camilo é de causar
espécie. O levantamento completo está na tese de Marcelo SANDMANN (2004). Ali
podemos constatar a exigüidade da referência: com exceção de uma alusão em 1889,
a propósito da tentativa de substituição de palavras francesas por portuguesas,
de um comentário de juventude e de um anúncio de publicação de romance em
jornal, Camilo é uma ausência gritante na crítica ou na criação de Machado.
Que o autor brasileiro conhecia bem a obra do português é certo.
Não havia na intelectualidade brasileira do tempo que pudesse desconhecê-la.
Tão boa era aqui a recepção de seus livros, que ele cogitou
em vir ao país. E uma anedota permite ver que era mesmo idolatrado: no mesmo
ano em que morreu Machado de Assis, o Real Gabinete Português de Leitura incluiu
em seu acervo, como uma espécie de relíquia, um dente incisivo de Camilo, por
ele dado a uma pessoa de sua amizade.
Não bastasse a nomeada do escritor, Xavier de Novais,
correspondente e amigo dileto de Camilo, era cunhado de Machado de Assis. E
outro grande amigo de Camilo era António Feliciano de Castilho, que Machado
tinha em altíssima conta, chamando-lhe, em elogio fúnebre, “poeta egrégio”, “mestre
da língua” e “príncipe da forma” (ASSIS, 2004b, 979). Ora, ambos esses autores
comparecem, por exemplo, num dos mais notáveis romances do escritor português, Coração, cabeça e estômago. Novais como
destinatário da narração, no primeiro capítulo.
Por todos esses motivos, era impossível que Machado não
conhecesse bem a obra de Camilo, incluindo esse romance, que fora publicado no
mesmo ano de Amor de perdição, isto
é, 1862. E quando consideramos que Eça de Queirós, seu antagonista em 1878,
fora um dos paladinos da Ideia Nova em Portugal, aliado portanto de Antero
contra Castilho, e que Camilo tomara o partido do amigo – ou seja, considerando
que Eça e Camilo estavam em campos opostos no que diz respeito à questão do
realismo na arte, mais estranha ainda fica a ausência deste último na crítica
de Machado.
Minhas hipóteses para esse silêncio são duas, uma de foco
externo, outra de foco interno.
No que diz respeito ao foco externo, é preciso lembrar que
Camilo sempre foi muito ácido em relação ao Brasil e aos brasileiros. E
exatamente no ano em que se dava a “virada” machadiana, na qual Camilo poderia
ter sido uma bandeira contra a Ideia Nova, desfecha-se a famosa polêmica sobre
o Cancioneiro alegre – organizado por
Camilo, no qual o tratamento dado a poetas brasileiros pareceu a muitos injusto
e ofensivo.
Desencadeada a polêmica, Camilo a conduziu como sempre: para
ele importava certamente menos o embate de ideias do que a destruição do
adversário, por meio de argumentos ad hoc
e ad hominem. No caso da polêmica
com os brasileiros, os argumentos de fundo racista e o preconceito colonial
surgem a cada passo.
No momento, pois, em que Machado, no desenvolvimento da sua
obra na sequência ao embate com o realismo, busca o novo rumo romanesco por
meio de uma retomada de um tipo de narrativa que, do ponto de vista dos
procedimentos, poderia denominar-se romântica, Camilo não é autoridade a ser referida
no Brasil.
Já quanto ao foco interno, seria possível ver no apagamento
do nome de Camilo por Machado uma manifestação daquilo que hoje se denomina, na
esteira de Bloom, “angústia da influência”.
De fato, dentro dos romances do autor português, bem como
nos prefácios, encontraremos múltiplas ocorrências de reflexão sobre a
ficcionalidade, o ato e os limites da escrita, e sobre as expectativas de
leitura do leitor romântico, que depois vieram a ser postuladas como índice da
modernidade inovadora de Machado. E em muitas das suas obras – mas
especialmente nas Novelas do Minho, 1875-7
– deparamos com uma pletora de construções e torneios sintáticos semelhantes aos
que depois seriam vistos como característicos do estilo machadiano.
Vejamos alguns exemplos, que falarão mais claro do que
qualquer descrição.
De Novelas do Minho, "O filho natural", recolhem-se estas frases:
como
lhe faltasse a respiração e a gramática, o procurador tomou fôlego; eram as
cinco jóias do Porto em delicadeza de espírito e de cintura; um terceiro andar - altura onde os suspiros
exalados desde a rua chegam em temperatura honesta; saiu eleito... por novecentos mil-réis,
trinta e nove cabritos, e 2 ½ pipas de vinho verde; tão insuficientemente vestido, como o poderia
estar o nosso primeiro avô, se fugisse do Paraíso depois de inventar o lençol. (BRANCO,
1988, 230, 185, 188, 193, 187)
De Coração, cabeça e
estômago:
não
tinha caligrafia, nem idéias; com uma pequena mesada e a esperança de ficarem
pobres; dote quadrúpede; (BRANCO, 2003,
15,17, 22)
Já em O que fazem mulheres - romance filosófico (1863),
abundam os jogos metaficcionais e o jogo com as expectativas de leitura. Assim
é que lemos, logo na abertura, um prólogo intitulado "A todos os que
lerem":
É uma história que faz
arrepiar os cabelos.
Há aqui bacamartes e
pistolas, lágrimas e sangue, gemidos e berros, anjos e demônios.
É um arsenal, uma
sarrabulhada, e um dia de juízo!
Isto sim que é romance!
[...]
Há aí almas de pedra,
corações de zinco, olhos de vidro, peitos de asfalto?
Que venham para cá.
Aqui há cebola para todos os
olhos;
Broca para todas as almas;
Cadinhos de fundição
metalúrgica para todos os peitos.
Não se resiste a isto.
Há-de chorar toda a gente,
ou eu vou contar aos peixes, como o padre Vieira, este miserando conto.
(BRANCO, 1983, 1231-2)
A este segue-se um segundo prólogo, intitulado "A algum
dos que lerem", no qual o autor discorre seriamente sobre as virtudes da
heroína, e se defende antecipadamente da acusação de inverossimilhança.
Por fim, vem uma espécie de terceiro prólogo, porque
destacado do corpo principal do romance, intitulado "Capítulo Avulso /
para ser colocado onde o leitor quiser". No interior do romance há outros jogos com a
forma física do livro, como, por exemplo, um trecho digressivo entre os
capítulos XIV e XV, sem numeração, identificado apenas como "Cinco páginas
que é melhor não se lerem".
No romance A filha do Arcediago, de 1856, encontramos esta
declaração:
Sou
o primeiro a confessar que o meu romance está caindo muito! [...] Ainda um
casamento... passe! Mas dois casamentos!... É abusar dos dons da igreja, ou
romantizar o fato mais prosaico desta vida! Isto em mim creio que é falta de
imaginação, ou demasiado servilismo à verdade! (BRANCO, 1982, 1079)
E, no final do capítulo XXVII, esta curiosa
tabela:
Relação das
pessoas que já morreram neste romance
O mestre de
Latim ................................................. 1
A Senhora
Escolástica........................................... 1
O arcediago
.......................................................... 1
Uma velha da
Viela do Cirne, cujo nome me não lembro.. 1
O Senhor
António José da Silva...................................... 1
Antónia
Brites, amante de Augusto Leite......................... 1
Dous soldados
de cavalaria.............................................. 2
–
Soma
total....................................................................... 8
Continuarão a morrer
convenientemente. (BRANCO, 1982, 1136)
Em Coração, cabeça e
estômago temos ainda os jogos com as instâncias autorais – que caracterizam
o romance machadiano, especialmente os dois últimos – e que conferem modernidade surpreendente ao
texto camiliano, poucas vezes reconhecida pela crítica.
E temos, por fim, em pleno vigor, aquele procedimento que Schwarz
via como definidor da virada machadiana e que afirmava não ter ocorrido a
ninguém, isto é, o uso da primeira pessoa do singular, “em prejuízo próprio e
com propósito infamante”.
Por fim, mesmo no nível temático há um elemento de proximidade
– já registrado pela crítica – que chama a atenção: da mesma forma que Brás
Cubas, Silvestre da Silva se dedica à quimera de criar um remédio universal. No
caso, um que permitisse curar a melancolia. É o antepassado do emplastro de
Brás Cubas, também aqui buscado por amor à nomeada.
Não é evidentemente objetivo desta comunicação elevar Camilo
ou rebaixar Machado. Apenas creio que esse é um problema curioso de história
literária, que envolve, por um lado, a tradição camiliana consolidada, que
pouca atenção deu à modernidade radical do seu autor – uma vez que, na visão
hegemônica, Camilo é sempre o escritor do passado e cultor da língua castiça,
enquanto Eça e a geração de 70 subsumem em si toda a modernidade da segunda metade
do século XIX; e por outro, a tradição machadiana, que se construiu à volta da
afirmação do realismo de Machado, ainda que os seus procedimentos mais
ostensivos não se enquadrem no que, no resto do mundo, se compreende como a
linhagem realista que vai de Flaubert a Zola.
Conjugadas ambas as tradições com a grande tensão que, nos
anos finais do Império brasileiro se vai criar, em termos literários, entre a
antiga metrópole a o novo país, resultou a pouca atenção aos evidentes laços de
família que unem Machado a Camilo. Em vez disso, a crítica reafirmou a
descrição preferencial de Machado – ou melhor, de Brás Cubas, pois é ele o
autor da nota Ao leitor, onde se
afirma que a novidade do livro é a “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier
de Maistre”.
A vinculação da nova maneira machadiana à obra pregressa do
autor, bem como à tradição portuguesa – só lembrada, reativamente, no prólogo
da terceira edição, em resposta a uma afirmação de Macedo Soares – ficou assim de
alguma forma obscurecida. Não sei se a atenção às linhas de continuidade na
chamada segunda fase permitiria alterar algo na configuração crítica da obra de
Machado. Mas minha impressão é que a história literária, bem como a leitura do
lugar de Machado na constituição da prosa de língua portuguesa ganham se as Memórias póstumas deixarem de ser vistas
como um raio em céu azul e passarem a ser compreendidas como o momento de
eclosão de um veio profundo da prosa de língua portuguesa, que talvez se possa
mesmo explicar – e quem sabe em termos sociológicos não fosse uma explicação
interessante? – pela constituição do público em países periféricos e fortemente
estratificados, do ponto de vista social.
Referências
Bibliográficas
ASSIS, Machado de. Obra completa –
Volume I. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004A, 1216 p.
ASSIS, Machado de. Obra completa –
Volume III. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004B, 1200 p.
BOSI, Alfredo. História concisa da
literatura brasileira. 32ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, 528 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Coração, cabeça
e estômago. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 244 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras
Completas – vol. I. Porto: Lello & Irmão, 1982, 1486 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras
Completas – vol. II. Porto: Lello & Irmão, 1983, 1374 p.
BRANCO, Camilo Castelo. Obras
Completas – vol. VIII. Porto: Lello & Irmão, 1988, 1152 p.
SANDMANN, Marcelo. Aquém-além-mar :
presenças portuguesas em Machado de Assis. Tese de doutoramento, cópia digital:
www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000321444&fd=y
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as
batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, 172 p.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na
periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990,
228 p.
[Texto apresentado no congresso da Abralic, em 2011]