Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil
[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]
Entre os patronos do haicai no
Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de
introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores
dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com
Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu
um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que
desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de
um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas,
Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento
da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num
nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o
abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do
que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino
fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma
poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de
podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar
o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as
características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando
a escrevia.
Para compreender o papel de
Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a
forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos
meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao
fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou
uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil
vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num
segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como
exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração
da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo
e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse
de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse
momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via
francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São
Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste
livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida".
Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição
física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha
arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a
questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de
tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na
virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original
japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o
haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente
(5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto
de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e
assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa
distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por
isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma
de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição,
do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia
completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a
exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes,
bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um
bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou
logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética,
mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao
terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo
mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas
vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito
cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia
parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco
sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso,
e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um
exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:
Por que estás assim, – – – – a
Por que estás assim, – – – – a
violeta? Que borboleta –
b – – – – b
morreu
no jardim? – – – –
a
Com esse recurso, Guilherme de
Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima,
temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas,
cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um
andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e
um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos
poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das
rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a
alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem
destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no
seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de
cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de
cinco e de duas sílabas:
Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates,
nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é
uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira
à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo
virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão
exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é
uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia
técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku
japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão,
de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de
prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está
pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada
com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica
ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a
questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção
guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o
título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como
haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku,
praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos
de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica
preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os
títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor
poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a
explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a
função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é
a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção,
e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo
elucidativo. Este poema:
Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku.
Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um
haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a
uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E
também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa
se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso
está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central,
aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do
poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há
sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do
poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade:
dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde,
para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há
um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém,
poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não
fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por
intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:
CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso
extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois
determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto
que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de
Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é
transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra
língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de
estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa,
perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que
não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com
esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o
sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição
interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre
tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de
pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples
inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por
completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema
apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite
caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo
poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor
ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme
de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente
neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo
com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste
volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e
sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela
para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera
de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais
significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um
conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos
textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos
e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de
Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de
uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical
à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou
outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a
função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos
seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais,
podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do
haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas
cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."
De novo, como no caso de
"Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da
amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no
presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra
outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para
haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância",
o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental
e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido
funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o
poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título,
reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto,
que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941,
Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o
título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o
título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o
texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o
leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da
ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo
de poesia no Brasil.