Flaubert - Devaneio e turismo sexual
[Jornal 14]
Novembro (Ed. Iluminuras, R$ 28) acaba
de chegar às livrarias. São dois textos de Gustave Flaubert pouco conhecidos no
Brasil: a novela que dá nome ao volume (Novembro -- fragmentos num estilo
qualquer) e treze cartas, em que o romancista francês escreve a um amigo
sobre as paisagens, os costumes e as aventuras eróticas experimentadas numa
longa viagem que fez ao Oriente próximo e à Itália.
A novela, que foi escrita em
1842, quando Flaubert tinha 21 anos,
ocupa um total de 73 páginas do volume. As cartas, datadas de fins de
1849 a meados de 51, somam 93 páginas. A novela é interessante. As cartas são deliciosas.
O melhor das cartas não é o
que elas possam conter de confissão ou dados documentais sobre o autor e os
lugares visitados por ele, ou ainda sobre o turismo sexual europeu há 150 anos.
Tudo isso vem junto. Mas o que as torna excepcionais é serem um excelente
texto, um brilhante exercício de estilo contra o estilo. O assunto e a
linguagem oscilam rápida e brutalmente. Passa-se diretamente da apreciação
literária e da reflexão histórica ou estética à celebração de um priapismo
orgulhoso, voraz e desprovido de culpa; da análise de cambiantes sentimentais
ao registro mais cru das sensações eróticas; do desenho de um estado complexo
de espírito ao puro gosto do palavrão ou à recolha de histórias e cenas
exóticas que são bizarras, repulsivas ou simplesmente miseráveis.
O resultado da leitura é uma
imagem convincente do artista enquanto jovem explorador, em busca de assuntos,
formas e experiências.
A novela é também um exercício
de estilo. Melhor: de estilos, pois se trata de um texto bipartido. Na primeira
parte, tem-se uma autobiografia sentimental, cujo tom está dado logo na frase
inicial: "Amo o outono, essa triste estação combina com as
recordações". Segue-se uma série meditações, confissões, estremecimentos
de espírito, vazadas numa linguagem romântica que lembra Chateaubriand. Tudo
tão anacrônico que o leitor não poderá deixar de se perguntar, junto com o
narrador: "por que escrever isso? Por que continuar, com a mesma voz
lastimosa, o mesmo relato fúnebre? Quando o iniciei, eu o considerava belo, mas
à medida que prossigo, minhas lágrimas caem sobre o coração e me extinguem a
voz".
Não é verdade, porém. Essa voz
não se extingue em lágrimas. Pelo contrário, prosseguem ambas, voz e lágrimas,
por mais 50 páginas. Quando cessa, assume a narração um narrador em terceira
pessoa. A primeira parte se revela, então, uma transcrição de manuscrito, e as
dez páginas em terceira pessoa respondem pelo interesse maior do texto, pois
esse narrador segundo funciona como um crítico do primeiro: "Era um homem
que se comprazia no quimérico, no incompreensível, e fazia grande abuso dos
epítetos". É esse registro metalingüístico e irônico que torna o texto
legível, porque de resto, tudo é já sentido como falso. Inclusive a própria
morte do herói/narrador, desencadeada apenas pelo seu pensamento, e que o
segundo comenta assim: "o que parecerá incrível às pessoas que sofreram
muito, mas que convém tolerar num romance, pelo amor ao maravilhoso".
Sendo os textos do volume tão
diferentes em gênero, a questão é: por que nesta edição eles vêm publicados
conjuntamente e sob o mesmo título? O organizador do volume e tradutor dos
textos, Sérgio Medeiros, afirma que os dispôs assim porque "se completam
um ao outro". Ambos seriam autobiográficos e o nexo principal seria, além
da temática amorosa e erótica comum, o fato de o defunto narrador de Novembro
imaginar uma viagem ao Oriente, que o autor Flaubert realiza alguns anos
depois. Essa é a sua tese. O livro é, como diz, "uma espécie de ensaio
crítico que usa a tradução e o rearranjo como meios e não a argumentação
acadêmica".
Essa questão esgota o texto
introdutório. Do meu ponto de vista, a montagem crítica de Medeiros padece de
uma crença pouco razoável na substancialidade da sua construção. Em última
análise, parece que ele acredita que todos (Maxime du Camp, o narrador de Novembro,
o remetente das cartas da viagem, os autores citados na bibliografia e ele
mesmo, Medeiros) -- todos estão falando e querendo descrever a mesma e unívoca
"pessoa". Seu objetivo, com a montagem, parece ser propiciar um
retrato fiel do jovem Flaubert e das contradições que caracterizariam a sua
personalidade.
Aceita a clave, é até possível
ler os textos como um conjunto de testemunhos. Mas é pouco interessante e pouco
produtiva a perspectiva estritamente biográfica. Ela só se torna eficaz quando
dá origem a um texto de natureza ficcional. Sartre, por exemplo, que era um bom
romancista, biografou Flaubert e Baudelaire. Mais modernamente, Marguerite
Youcenar fez sucesso com as Memórias de Adriano. Mas quem, hoje, leria
qualquer desses livros em busca da personalidade, das motivações e da
"verdade" do seu assunto e não do seu autor?
Novembro, reunindo dois conjuntos
textuais muito diversos em gênero, vigor e interesse, propõe uma leitura
seqüencial que os prejudica. Faz deles um conjunto inverossímil, sem unidade ou
graça, senão para os amantes convictos de especulações biografizantes.
Como conjunto, o volume não se
sustenta. Mas pelas suas partes, vale muito a pena. O leitor que quiser duas
horas de leitura animada pode comprá-lo. Para garantir-se de não perder tempo, deve
tratar de ler logo os textos de Flaubert, na ordem que melhor couber ao momento
ou à disposição do seu espírito.
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Publicado no jornal Correio
Popular, em 02 de dezembro de 2000.