segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Jorge Cury

 

Na pequena faculdade de Araraquara havia um só professor de Literatura Brasileira e somente um professor de Literatura Portuguesa. Creio que não estou em erro quanto à primeira; mas quanto à segunda, estou seguro.
O regente desta última cadeira, quando o vi pela primeira vez, pareceu-me vagamente familiar. Talvez fosse o bigode, talvez o formato das maxilas, ou o jeito desconfiado com que olhava meio de baixo para cima, talvez mesmo o jeito de caminhar. O certo é que de imediato o associei à infância ainda próxima, às matinés no Cine Theatro Polytheama, onde nos fazia rir o grande Amácio Mazzaropi.
Conhecendo-o depois, como aluno, apreciei e imitei o seu humor meio matuto, cortante e nem sempre contido. Nas tardes modorrentas, a classe enlanguescia. Jorge, sentado à mesa, apertava os olhos ao passá-los sobre nós. No novo campus, havia incômodas nuvens de minúsculos mosquitos. Voejavam junto dos olhos e da boca. Jorge então batia palmas na frente do nariz, para espantá-los. Aproveitava as palmas para dizer com o olhar irônico ou com a voz meio esganiçada que não era pra dormir. E muitas vezes emendava com aquela frase que hoje talvez lhe custasse o emprego.
Eu achava divertido. Eram outros tempos. Mesmo que houvesse ali verdade, confesso logo que ele estava errado em dizer e eu mais ainda em rir, cúmplice. Não, não era um curso de espera-marido, o de Letras. Estou certo de que não. Mesmo que não estivesse convencido disso na época, hoje sem dúvida devo estar. Por isso, não devia rir mais alto quando Jorge completava que, enquanto o marido não aparecia, todo mundo tinha de estudar.
Talvez devesse dizer que era acima de tudo um rabugento. Mas quanto a mim era um adorável rabugento. Porque não creio que houvesse, apesar da máscara protetora de azedume, professor mais dedicado a nós, mais atento, mais solícito.
Durante muitos anos, e talvez até hoje, a sua vida – ou o que eu imaginava que ela fosse – foi um ideal. Jorge vivia em frente a uma escola grande da cidade. Sua casa tinha uma garagem que dava para a rua. Mas não era usada como tal. Era uma biblioteca.
Habitava-a, além do Jorge em carne e osso, o Jorge em papel e tinta. Digo: um enorme fichário, onde ele guardava inúmeras fichas, minuciosamente preenchidas, arrumadas e catalogadas. Suas leituras todas, desde um tempo que me parecia imemorial, se prontificavam ali, ao alcance da mão!
Durante muitos anos, meu sonho foi voltar a Araraquara como professor, comprar uma casa com garagem, fazer uma biblioteca na garagem e ser um novo Jorge Cury. Só me faltaria o fichário, por isso ainda no segundo ano comecei a preencher uma ficha para cada leitura escolar ou relevante. E se parei com as fichas pautadas de papelão foi porque continuei a fazê-las em formato digital, nos primeiros e precários computadores de 8 bits.
Devo dizer, entretanto, que não foi pacífica nossa convivência. Jorge era muito cristão. Demasiadamente cristão para o meu gosto. Certa ocasião, em vez de me dizer coisas interessantes, começou a louvar o casamento. As virtudes cristãs do casamento. Estávamos na sua biblioteca. Eu tinha 18 anos e lhe garanti, como alguém que tem mentalmente muitos anos a menos do que 18, que não me casaria nunca. Foi uma conversa, um debate meio sem sentido, mas terminou com uma aposta bizarra. Como eu tinha acabado de ganhar um Karman-Ghia vermelho, que era meu xodó, e sabendo o Jorge que eu invejava a sua biblioteca, apostamos uma contra o outro: ou seja, se eu um dia me casasse, lhe daria o carro; se não, ele me daria a biblioteca. Jorge ria muito, quando selamos o trato. Mas quando finalmente me casei, apenas uns cinco anos depois, não voltei para vê-lo. Muito menos para lhe levar o carro, que eu já não tinha.
Outra nossa desavença foi pública. Ele ensinava o Camões. Tínhamos de ler o Jorge de Sena. E lá estava o nosso Jorge escrevendo na lousa o número das estrofes de cada canto, do menor para o maior. Em certo ponto, havia dois cantos com o mesmo número de estrofes. Então ele os escreveu na mesma linha. Por fim, quando terminou, virou-se para nós e disse que ali estava uma revelação. Não sei se usou essa palavra, mas o jeito como falou sugeria que se tratava de uma revelação. E a revelação era que aquele arranjo de números na lousa formava a Cruz.
Eu tinha visto que o encontro dos tempos narrativos, em “Os Lusíadas”, se dava na estrofe 551. Como o poema tinha 1102 estrofes, ok: Camões tinha feito cálculos, segundo o outro Jorge, o de Sena, para que isso acontecesse assim mesmo. Mas a história da cruz me parecia uma grande bobagem!
Quando ouviu essa palavra, ainda piorada pelo qualificativo, Jorge ficou transtornado. Foi um desacato pessoal. Sua voz se alterou. Quando se irritava, parecia taquara rachada. Disse-me, indignado, que eu era uma formiguinha perto do Sena. Passou-me uma lição de moral, uma descompostura em regra. Mas então, em certo momento, disse a frase que nunca me saiu da memória. Por algum motivo, para aumentar a glória do Sena, resolveu se meter na comparação. Disse que, perto da grande árvore que era o xará português, ele, o Cury, era “um humilde pilriteiro”! Aquilo me abalou. Um pilriteiro! Jorge era um pilriteiro e eu era uma formiga! Eu não fazia ideia do que fosse um pilriteiro, mas concluí que provavelmente havia ali um recado para mim, e que eu era a formiga no pilriteiro que ficava embaixo da árvore do Sena. Eu mais não disse. Nem ele retrucou, satisfeito com a constatação da minha derrota embaraçada e encolhida.
Houve ainda outros embates, mas a verdade é que eu o adorava e ele me tolerava bem.
Quando me decidi a fazer a livre-docência, Jorge foi um dos primeiros nomes que me ocorreu submeter ao departamento. No memorial, já registrara a dívida imensa, então era de justiça.
Naquele tempo, a gente começava a ser dispensado de apresentar tese. Podia ser uma reunião de ensaios. Eu já tinha feito a tese, sobre Pessanha. Mas na incerteza também tinha preparado o livro de ensaios. Então apresentei os dois. No dia da defesa, reencontrei o riso sardônico do Jorge, quando ele se queixou do meu exagero, que o obrigava ainda agora a trabalhar tanto. Ele ria ainda do mesmo jeito, meio entrecortadamente, alternando o sorriso com a careta e mastigando, sob o bigode já branco, as palavras que vinham embaladas em veneno leve. Depois, na titularidade, convoquei-o outra vez. Era parte de tudo aquilo, de um jeito ou de outro, desde que debutei em escrita acadêmica, na revista dos alunos e no jornal do diretório, com dois textos nascidos das suas aulas.
Vi-o por fim numa reunião da turma. Foi a última vez, eu creio, que conversamos de viva voz. Em silêncio, entretanto, durante leituras, planejamento de cursos e redação, o diálogo algo conflituoso de Araraquara nunca se apagou. Pelo contrário, quando o assunto era português, foi se mantendo e, aqui e ali, frutificando, em boa emulação e melhor cumplicidade, risonha e admirativa.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Um soneto de Pessanha - "o mais perfeito da sua Obra"

 Estou preparando uma nova edição da poesia de Camilo Pessanha, a sair pela Dilúvio Editora, em Portugal.

Revisitar os documentos que utilizei para fazer a edição crítica e as subsequentes é sempre uma aventura. Por exemplo, estive consultando as decisões que tomei quanto ao texto do soneto que começa “Foi um dia de inúteis agonias”. Não é um soneto qualquer. Pessanha o considerava “o mais perfeito” dos seus poemas, segundo anota seu melhor amigo em Portugal, Carlos Amaro.
Ora, quando esteve em Portugal, em 1916, na sua última visita à terra natal, Pessanha anotou “de memória” alguns poemas, que depois foram utilizados para sua amiga Ana de Castro Osório compor a “Clepsydra”, de 1920. Esse soneto não está na caligrafia de Pessanha, mas de João de Castro Osório. Pessanha apenas corrigiu a palavra “impressível”, que João entendeu e anotou como “imperecível” e alguns pormenores.
Esse autógrafo deve ter servido para Luís de Montalvor publicar esse soneto na revista “Centauro”, em 1916. Publicação essa que foi revista por Pessanha, pois Pessanha teve de novo de corrigir “imperecível” para “impressível”.
Até aqui, tudo bem. Sucede que no autógrafo de Carlos Amaro há algo que torna o poema melhor, do meu ponto de vista. Algo que não há nem no apógrafo corrigido do seu espólio, nem na revista “Centauro”.
Nunca pude reproduzir essa versão, porque os critérios que escolhi exigiam que eu reproduzisse apenas a última versão, a última vontade do poeta.
Mas aqui, que é o Facebook e o meu blog, posso reproduzir o soneto da forma que me parece melhor, mesmo que seja contra a vontade do poeta – por assim dizer.
A diferença mais significativa está nos versos 6 e 8. No autógrafo que reproduzo aqui, lê-se “teu mole sorriso”. Nas outras versões “seu mole sorriso”.
Não creio que o autógrafo que pertenceu a Carlos Amaro tenha sido algum dia reproduzido. Aqui está ele, juntamente com a página corrigida da revista “Centauro”. A anotação diz: "Disse-me o Camilo Pessanha que era *Isto* o mais perfeito da sua Obra".

Para maior facilidade de leitura, eis o texto do manuscrito, já me ortografia brasileira.


Foi um dia de inúteis agonias,
-- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias. 
-- Dia de sol, inundado de sol. 
Foi um dia de falsas alegrias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Passavam, das feiras e romarias. 
-- Dália a esfolhar se, o teu mole sorriso. 
Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido! 
Difuso de teoremas, de teorias... 
O dia fútil, mais que os outros dias! 
Minuete de discretas ironias... 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!






sábado, 30 de setembro de 2023

Fausto

Quando assumi a direção da Editora da Unicamp, percebi que a última reunião do conselho editorial da gestão anterior tinha, para empregar uma expressão triste recentemente usada por um vilão, colocado algumas granadas no bolso no inimigo. O inimigo, no caso, era eu – por algum motivo que ainda não sei precisar. As granadas não eram algumas, na verdade; eram muitas: desde uma profusão de livros aprovados sem o rito necessário – isto é, sem pareceres de mérito que permitissem fundamentar a decisão –, até carta-branca a dois docentes de certo instituto, para que publicassem o que quisessem de uma extensa lista que, se desdobrada, daria origem a duas centenas de títulos. Porque aquilo significava apenas uma coisa: que eu não teria nada que fazer, ao longo dos quatro anos de meu mandato, senão ir pagando a dívida impagável. Ainda mais que o saldo em caixa era próximo de zero, se é que não estava negativo. Por sorte, pude contar desde o primeiro dia com um conselho editorial do mais alto nível e, nele, com o meu parceiro de longa data, Alcir Pécora. Com este passei em revista, durante vários dias, os processos dos livros aprovados irregularmente, que foram logo todos descartados, com um convite aos autores para que, se houvesse real vontade, reapresentassem proposta. Com o Conselho rigoroso erguido como assombração no final do processo, quase nenhum foi reapresentado. Vários dos que ainda constavam na lista, talvez como meros espantalhos, já tinham inclusive sido publicados. Restava o caso dos professores plenipotenciários. A cada um enviei ofício, comunicando que tal promessa-aprovação não se sustentava, cada livro teria de ser examinado, cada caso seria um caso. Dos dois, só um me deu notícia: um velho professor, que marcou hora e veio cobrar o prometido. Eu já o conhecia de nome, de modo que fiquei feliz com a oportunidade. Para espanto dos que aguardavam e temiam o possível embate, o que ecoou pela Editora foi o riso sonoro, quase uma repetida exclamação de Papai Noel, característico daquela personagem. Ofereci-lhe, tendo sido revogada a tal carta-branca genérica, a possibilidade de dirigir uma coleção inteira, nova modalidade aprovada pelo Conselho Editorial. Ou melhor, duas. E talvez três. Desde que dirigidas por ele e por uma equipe de alto nível, que elaboraria pareceres e mostraria ao Conselho a necessidade, a propriedade e a qualidade de cada publicação pretendida.
Foi assim que fiquei amigo de Fausto Castilho.
Na sequência, uma frase deu a real medida do feito e, em dimensão oposta, da real medida de quem a disse: um professor da nova geração, colega de Fausto, vendo-nos à porta do restaurante, deu um jeito, na sequência, de rir-se e me dizer que não sabia como eu tinha paciência para aturar a figura pitoresca. Nada respondi. O tempo diria. Como disse: Fausto dirigiu coleções de obras filosóficas imprescindíveis à formação de profissionais e interessados na filosofia; fez traduções e supervisionou as feitas por colegas e ex-alunos, zelou pelas edições bilíngues e apresentou à editora intelectuais que até hoje são autores da casa. Além disso, publicou conosco um livro fundamental para pensar o ensino superior no Brasil, expondo seu conceito de universidade, até hoje uma bandeira e um ideal de resistência à miséria imposta à instituição pela máquina produtivista americana. Ao mesmo tempo, foi me contando histórias deliciosas de suas visitas (ainda menino) a Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, e dos tempos da Sorbonne, da França e da Alemanha, falando de Bachelard e Sartre e Heidegger e tantos outros com familiaridade, pois os conhecera a todos. É certo que era dado a exageros e se acreditava, ao que parece, imortal. Um dia entrou na minha sala agarrado a um livro pesado. Vestia seu traje usual, que era um safári de cor clara. Vendo-o assim, ocorreu-me um caçador esmagado sob o peso da caça maior que ele. De fato, estava calor e vinha esfalfado. Depois de um minuto de suspense, em que saboreou o meu espanto, com um risinho maroto desabou o livro sobre a minha pobre mesa, com estrondo. Então riu alto e disse, com seu vozeirão: “Dr. Paulo, temos de publicar este livro!” Era o Kant Lexikon. Olhei aquilo, olhei para ele, e para aquilo de novo. Seus olhos claros riam mais do que o seu rosto. Perguntei-lhe: quem vai traduzir isto, Professor? E ele, rindo de novo: “Eu, claro!” Andava ele, eu creio, pelos oitenta anos. Ou pouco menos... Disse-lhe que podia ser, mas que precisávamos de recursos, ao que me respondeu que traduziria de graça. Quanto aos custos, seriam também por conta dele. Não tinha filhos, acrescentou. O Kant Lexikon nunca foi publicado por nós. Mas talvez de algum lugar do seu espólio ainda nos possa surpreender o trabalho começado. Mas foi bem que não o traduzisse, que não gastasse muita energia nele, porque assim se dedicou às coleções e à idealização da profícua Fundação que leva o seu nome.
Veio tudo isto à memória hoje porque Ricardo Lima passou comigo a manhã, mostrando-me o conjunto e lendo para mim a apresentação e o primeiro capítulo do livro que acaba de terminar: uma biografia de Fausto Castilho. Do que vi, ouvi e li nesta manhã, posso dizer que se trata de um livro excepcional, muito bem escrito, bem fundamentado em pesquisas, entrevistas e documentos, e ricamente ilustrado. Sobretudo, trata-se de um livro animado por um propósito louvável, e necessário: mostrar ao público o vulto inteiro de um grande intelectual, que pensou a universidade com profundidade, coerência e paixão. Em mais alguns meses, estará impresso. Quando isso acontecer, pretendo voltar ao assunto, depois de o ter lido com calma e por inteiro.

Tradução?

 Gosto de ler as postagens de Thomaz Albornoz Neves e de debater com ele. É que ele é inteligente, culto e não-acadêmico, cousas que juntas (como diria Camões) se encontram raramente. Acabo de ler uma delas. Diz o seguinte: “Esta edição de Renée propõe um exercício conceitual. No lugar do autor traduzindo seus próprios poemas, os oferece em cinco idiomas sem determinar um original. / Discorrer pelo sentido dos versos com um vocabulário multilíngue, mas fiel a uma única voz, refrata a leitura, logo a amplia. Sugere que a poesia é a mesma em qualquer idioma. Em si o poeta não muda, o poema é que varia conforme a época e a cultura.” Bom, Renée é o nome de um livro do autor. Que foi publicado (e aposto que escrito) em português. Então, há um original. O autor é o original? Sem dúvida, mas há um original textual, ou melhor: uma forma primeira em que se cristalizou alguma experiência ou expectativa. Ou seja, é difícil concordar que não há aí um autor a traduzir os seus poemas. A não ser que se afirme que um poeta recriar em alguma língua os poemas que escreveu em outra não seja tradução. (Nem vamos aqui mergulhar nas águas confusas da emoção recolhida na tranquilidade, ou no vapor úmido da inspiração. Basta pensar que algo teve uma realização num dado sistema de sons e sentidos e depois teve outras realizações, para as quais era impossível obliterar a primeira, que ao menos estará lá como baliza, pauta, desenho interior.) Mas o que me chamou a atenção nesse caso foi menos esse espinho conceitual do que a carnadura prática do resultado. Por exemplo, o primeiro verso do poema VIII desse moderno guardador de rebanhos (sendo o rebanho, no caso, o dos seus versos em prisma poliglótico): Oscurece y volvemos de la ensenada /  Tramonta e torniamo dalla cala / The sun fades and we return from the cove / Le jour tombe et nous revenons de la baie / Entardece e voltamos da enseada. Se fosse uma tradução (e não é, mesmo?) eu logo me perguntaria o que foi traduzido. Seriam os conceitos? Apenas eles? Em português, ouve-se um eco tradicional forte: o ritmo heroico do decassílabo se impõe desde logo à leitura, dando à abertura um acento que falta (me parece) completamente à versão inglesa. Também esse harmônico, por assim dizer, falta ao francês, onde poderia haver se viesse forma ou ritmo alexandrino. A aliteração do italiano produz outro efeito, diverso, ainda que forcemos bastante (a meu ver) a escansão para emular o decassílabo de Dante. Já em espanhol não percebo equilíbrio, nem eco ou alusão formal. Então, mais uma vez: se fosse uma tradução, o que estaria sendo traduzido exatamente? O autor, porém, nos informa de que não é tradução. O poeta nos oferece os poemas em várias línguas. Que quer dizer isso? Reescreve? Recria-os? É difícil escapar do sentido amplo ou restrito da palavra tradução. Seja qual for o prisma – me pergunto –  esses versos se equivalem? Não. É certo que deveria talvez julgar o conjunto de cada poema e não o incipit apenas. Mas o começo é decisivo, porque dá a tônica. Seria o poema uma operação de perde-ganha? Isso ainda seria tradução. Seria livre-composição a partir da reconstrução e vivência nova do impulso, da configuração vida-linguagem do momento em que cada um foi escrito em português? Mas então por que não seriam novos poemas, com novo título, novas palavras, em um novo livro? E seria verdade que, em várias línguas, seria sempre a mesma voz? É o mesmo o que fala assim, ou refala, em vários idiomas, com vária tradição e diversos sentidos acomodados em cada cadência ou número? A poesia é a mesma, por graça dessa identidade suposta de origem? Seria a poesia algo transcendente ao idioma? Em que sentido? Seria capaz de o atravessar incólume? Ou mesmo de permanecer idêntica a si mesma além ou aquém dos sentidos implicados nas formas? Fiquei pensando nisso, sem concluir nada porque nada queria concluir. Apenas fui anotando, em traços rápidos, as impressões. Como numa conversa, aqui, olhando a noite e a lua cheia, com um copo e um palheiro, enquanto a noite segue.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Crônica - anotação

 Na minha última divagação, registrei que a crônica me parece a poesia realmente integrada aos meios de comunicação de massa. Porque a poesia, qualquer que seja ela, não me parece. Ao deparar com um poema num jornal, abre-se como uma janela, ou melhor uma porta ou portal, para outro universo: o da Literatura. Muda a atitude do leitor. Mesmo os folhetins são janelas para fora do universo da notícia, do presente. A crônica, não. Deixa-se ler como parte do presente, seu tempo de escrita e referência é ou dá a impressão de ser o mesmo tempo da leitura. Tem isso em comum com a reportagem e o registro do fait divers de uma coluna esportiva ou policial. Se se abre nela uma janela para o lirismo, é uma espécie de janela sorrateira. Que a gente quer e espera que se abra, desde que a sua abertura não exija grande alteração na postura no leitor, por assim dizer.

Rubem Braga

 Estávamos falando sobre Caetano Veloso. Começou com a homenagem em Salamanca. Lembramos que Alcir e eu fizemos um livrinho com as suas letras, tiradas de ouvido, em 1980 ou 1981. O assunto mudou aos poucos, mas eu continuei nele, derivando: passei a recordar que, antes do Caetano, escrevemos na mesma coleção sobre Rubem Braga. Naquele tempo, foi um deslumbramento. Para mim, foi uma descoberta muito mais importante do que o vislumbre da totalidade (até então) das letras e textos de Caetano. Lemos de enfiada todos os livros do Velho Braga. Aprendemos, nos emocionamos e nos divertimos a valer. Após a leitura individual, relíamos em voz alta as crônicas que mais impressionaram. Até um volume que pelo título parecia desinteressante se revelou delicioso: “Com a FEB na Itália”. Em todos os livros, impressionou-me o lirismo intenso. Pensei e ainda penso, sem ter retornado a elas, que muitas dessas crônicas são maravilhosos poemas em prosa. O notável era o tom, o jeito de quem nunca perdia de vista o leitor, a figura mais ampla e variada de leitor, o da imprensa cotidiana. Seus textos nunca eram poesia pura, nesse sentido. Eram poesia contaminada pela presença do leitor, pela dimensão da coluna e pela atualidade, ou melhor, pela afirmação do interesse no presente. A liberdade da crônica, sua versatilidade e descompromisso de registro fazia com que a leitura de um livro se assemelhasse muito à de um volume de poemas, melhor dizendo, daquele tipo de livro de poemas que chamávamos de álbum, em contraposição ao livro organizado como livro, com começo, desenvolvimento e fim. Essa versatilidade permitia extrair muitos poemas de notícias de jornal, e, na direção contrária, transformar muitos momentos líricos em um tipo de notícia: a crônica, o relato do tempo que passa ou já passou. O mais corriqueiro se elevava a símbolo, o mais alto símbolo podia ser trazido ao nível literal do chão e fazer rir ou enternecer. Ainda hoje me ocorre que a crônica, entendida dessa forma, é a poesia de fato integrada aos meios de comunicação de massa. E também me ocorre algo que ainda preciso pensar melhor: que há um momento na obra do genial cronista que foi Machado em que a enorme liberdade de que ele dispunha nesse gênero invade o domínio do romance, onde ele até então era um comportado senhor, bem diferente do afiado e imprevisível cronista de jornal. Mas isso foi uma divagação dentro de outra. A que importava e me desviava repetidamente a tenção, enquanto a conversa voltava ao rumo da crítica às homenagens e títulos acadêmicos honoríficos, era a que me trazia à lembrança o impacto que teve a leitura sequencial das crônicas que Braga julgou por bem ajuntar e publicar em livro.


Autoplágio



A manhã já vai a meio. Faço uma pausa para um café e divago. E me vem à cabeça o conceito de autoplágio, que só existe porque o produto do pensamento passa a ser tratado cruamente como mercadoria. Creio que o conceito e sua aplicação têm origem dupla: por um lado, a lógica perversa do sistema de revistas científicas internacionais, que vivem de vender assinaturas. O intelectual ali aliena o produto do seu pensamento, mas sem remuneração. Sua instituição ou uma agência de fomento paga a ele para estudar e pesquisar, e sem seguida os resultados de seu trabalho é cedido aos periódicos. Mas a cessão não é gratuita nem remunerada ao pesquisador ou instituição: trata-se de uma inaudita cessão na qual o cedente paga ao cessionário pelo direito que lhe transfere. Para maior estranhamento, uma vez cedido o direito, a instituição, num circuito perverso, paga para ter acesso a ele por intermédio do periódico. Também nessa categoria de negócio ficam as editoras, mas com dignidade na maior parte dos casos, pois o editor de fato investe capital e trabalho na produção do livro e paga os direitos autorais. Dessa forma, ocorre uma relação clara e limpa entre o produtor, o intermediário e o público. Entretanto, há também muitas editoras caça-níqueis, que no Brasil se apresentam como Qualis A ou B, e que só publicam mediante pagamento dos custos de produção. Nesse caso, como os periódicos, se apropriam gratuitamente do produto intelectual, mas ao menos em geral pagam os direitos autorais em exemplares ou, mais raramente, em pecúnia. De outro lado fica a cultura do produtivismo, que se dispensa de verificar o mérito ou o caráter de cada publicação. Como não se lê nada nem se verifica a situação e o lugar de publicação, e como se traduz tudo em números, o posterior uso do produto pelo produtor, isto é, do texto pelo seu autor, fica alienado assim que publicado, sendo a republicação, no todo ou em parte, considerada uma fraude.
Entretanto, ao menos na nossa área, alguns trabalhos fundamentais, que atravessam os anos, poderiam ser banidos da produção do professor ou pesquisador sob alegação de autoplágio. Refiro-me aos livros que reúnem artigos publicados em periódicos ou na imprensa de massa. Mas não é só o caso de clássicos como os livros de Antonio Candido, que são reuniões de artigos e conferências. Ocorre também na escala miúda. Eu mesmo sou um autoplagiador. Por exemplo, no livro que resultou da minha livre-docência, o primeiro capítulo tinha sido publicado um ano antes num livro de homenagem a Óscar Lopes. E em uma conferência sobre Pessanha utilizei esse mesmo capítulo para exposição oral. Creio que utilizei ao menos uma parte dele em algum lugar. Um trabalho sobre I-Juca Pirama saiu num livro da Edusp e depois foi incluído numa coletânea de trabalhos, junto com artigos de jornal e outros textos já publicados. Na verdade, quase nada há inédito em “Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa”. Ou seja, esse é um livro que deveria pontuar 0, se algum metrificador o lesse e visse nele a referência da publicação anterior de cada parte. Além disso, um programa que algumas editoras usam para verificar se alguma parte de um livro já foi publicada certamente encontraria nos capítulos de livros e artigos de periódicos rastros e trechos mais ou menos longos de publicações que fiz no meu blog. Tanto é que uma editora recente, para publicar um livro, condicionou a publicação à retirada do ar de textos em que o programa encontrou partes idênticas ou quase idênticas. O que, sendo uma relação comercial clara, não me pareceu absurdo. E cumpri.
Voltando ao ponto: a origem dessa polícia é fácil de entender. É a pressão para os professores e pesquisadores produzirem muito. Uma pressão irracional, que produz forte distorção em algumas áreas, como a dos estudos literários, que demandam tempo de amadurecimento e redação (porque o estilo é parte importante e porque dificilmente tem interesse a publicação apressada e precoce de resultados parciais de uma reflexão em curso). Mas não só. Nas áreas “duras”, essa pressão resulta em oportunismo: dados falsificados, conceitos errados e resultados fantasiosos. Se a origem é essa, a função dessa polícia é ratificar a alienação promovida pelos periódicos internacionais e pelo sistema de avaliação matemática da produção da pesquisa.
Uma consequência grave da visada produtivista é o desprestígio da docência. Um bom professor que não publica muito passa a ser condenado. Mas não um péssimo docente que publica um artigo após o outro. É que a docência não se mede numericamente. Na situação atual, dar 10 aulas ruins pode parecer melhor do que dar 4 aulas fundamentadas. Além disso, a docência é cheia de autoplágio: de outras aulas e de artigos e ensaios que o professor publicou. A docência, assim, não é mensurável, a não ser quantitativamente ou, pior, por questionários aos alunos. Daí que as pessoas sejam contratadas nas universidades como “professores”, mas que a sua valorização para auxílios, bolsas e promoção na carreira seja basicamente pela divulgação de sua produção de pesquisa. E na avaliação do pesquisador não se incluem os ganhos intelectuais obtidos na preparação e no desenvolvimento dos cursos. 
Um amigo a quem envio estes textos esparsos me diz sempre que é perda de tempo. Estamos depois do fim. O fim já aconteceu. É, portanto, irreversível. Escrever sobre isso é como desenhar na água ou num pote de geleia. Talvez ele esteja certo. Mas Anchieta não o fazia na areia? Então, com predecessor tão ilustre, não me sinto mal rabiscando no nosso pote de geleia, enquanto a brisa forte da manhã vai amenizando o calor neste final de um estranho inverno.

Periódicos - a máfia

Acabo de responder a um questionário de pesquisa do CNPq sobre publicações. As perguntas eram de dois tipos: por que eu escolheria um determinado periódico para publicar? – e: o que acho da cobrança para publicação? Da minha confortável posição de aposentado, posso dizer com ainda mais ênfase o que sempre disse quando militava na Unicamp. À primeira pergunta respondi que escolho por dois critérios: sem cobrança de taxa alguma tanto para o autor quanto para o leitor (um terceiro critério, que não vem ao caso por ser cada vez mais raro é: receber pela publicação); a relevância que uma dada revista tem na minha área, independente dessa bobagem matemática chamada índice de impacto. O segundo critério tem a ver com a área, mas não só. Em Literatura, a gente sabe quais são as boas revistas, e sabe também da farsa frequente que são os conselhos editoriais, inchados de pessoas ilustres, e o registro fictício das datas de recebimento e aprovação. Creio que isso seja apenas uma cedência à imposição de outras áreas, nas quais não posso dizer que tais dados tenham relevância (a não ser para registro de precedência), embora desconfie que não é tanto quanto a propaganda dos editores acabou por nos fazer crer. A primeira pergunta tem a ver diretamente com a máfia das revistas: cobram uma alta taxa das universidades ou dos órgãos financiadores para publicar artigos e depois vendem para essas mesmas universidades as assinaturas de suas revistas a peso de ouro. E é bem-feito: as universidades se tornaram presa fácil, na medida em que delegaram às revistas o filtro para contratar docentes e avaliar a produção dos já contratados. A CAPES, assistindo ao que se passa e por imposição das ciências duras, estabeleceu a escala do Qualis. Mas sinceramente nunca fui verificar o Qualis de uma revista para publicar nela. Se meu artigo for bom, será encontrado por quem se interesse pelo assunto, se não for ficará merecidamente no limbo, seja em que tipo de revista estiver. Além disso eu tenho um blog. E se comparar o acesso a artigos em revistas especializadas e no blog, tendo a pensar que deveria publicar mais ali do que em qualquer periódico. Essas coisas estão todas ligadas e é fácil compreender. Por exemplo, um dirigente de órgão de financiamento à pesquisa, fortemente convicto da importância da matemática na mensuração da qualidade, passa a integrar a diretoria da que é talvez a maior editora dos periódicos que toda universidade se vê obrigada a assinar, por conta da roda-viva produtivista. Dizer não a esse esquema é difícil para os jovens professores. Principalmente porque já vêm desde o início da carreira colonizados pelos ditames da produção desenfreada e do papel dos periódicos na avaliação da qualidade. Para os mais velhos, creio que é mais fácil, embora nem todos estejam dispostos a comprar a briga. Para encerrar, li que uma colega recentemente disse que as editoras e os financiadores são elementos importantes do ecossistema de pesquisa. No tal sistema, universidades e agências financiadoras pagariam o processo todo da pesquisa, e as editoras entrariam no final. É verdade. O que faltou dizer é que nesse tal ecossistema o segundo elemento é um predador voraz do primeiro.

sábado, 2 de setembro de 2023

Perfis - 10 – Carlos Vogt



Uma certeza me guia nesta tarefa, que desobedece a um preceito. O preceito era não redigir perfil de pessoas vivas. A certeza é que se há alguém que suportaria contemplar-se num desses perfis, ignorando ou fruindo a eventual carga de ironia, é ele. Aliás, creio que, sendo um perfil dele, já lhe bastaria, acostumado que está ao sim e ao não, desde que subordinados à presença. Conheci-o primeiro no restrito redil acadêmico. Fomos colegas de Instituto e quase de Departamento. Mas quando pleiteou a transferência já era muito político. Seu patrono argumentava que, nesse aspecto, o candidato mudara, estava desistindo da vida pública, queria um cantinho para trabalhar em paz com literatura, e ser, como nós, apenas mais um acadêmico relativamente anônimo e às vezes dedicado. Alexandre Eulálio, porém, brandiu o argumento de peso universal: ninguém muda! E fez bem, porque, se aceito, Vogt não seria só mais um, provavelmente apenas estaria ali nominalmente, sendo seus horários e tarefas divididos entre nós. Ou seja, não seria bom para ninguém. Já da forma como foi, ganharam todos: ele, a universidade e o Estado. E nós. Ninguém muda. E graças a isso a universidade foi regida pelos oito anos que muitos, eu incluído, consideram as quadras douradas da instituição. Estou afastado da Unicamp há vários anos, mas sou dos que se acostumaram a ver o vulto do homem em toda parte. Talvez, no meu caso, por ter sido quase atropelado por uma sua criatura, o Projeto Qualidade. In illo tempore a gente não tinha pressa em se titular. Bastava estudar e lecionar. O doutoramento não era uma necessidade nem um objetivo, e assim ia sempre ficando para as calendas. Enfin Vogt vint... foi o nosso Malherbe: regrou tudo, baniu o que achava banível, exigiu o que achava exigível. Doutoramento em três anos ou rua. Por isso fui parte do rebanho que pastou bibliografia, roeu canetas e rasgou a alma nas madrugadas ruminando páginas. Chegando mais perto, diria que o mais marcante nesse homem era a capa de blandícia. Por debaixo podia haver um tigre ou um como nós. Mas ela era suficientemente opaca para não deixar ver, e por isso incongruente com a fama gerada, o que a tornava quase ameaçadora. Em certo sentido era a essência de seu poder: uma meia frase, um sorriso de canto de boca, um olhar que é como uma pergunta aliciante, um risinho controlado, temperado com um endurecimento dos lábios, uma oscilação da narina e algum movimento súbito do olho. Dali podia vir um favor ou uma punição. Ou nenhum dos dois – o que me parece ter sido quase sempre a regra. Embora eu ainda acredite que, sendo essa a regra, as exceções pudessem ser doloridas. Sempre me admirei desse poder em pura potência, que não dependia de nada para se sustentar na altura da cara do interlocutor, como um balão de ar que poderia se tornar uma granada ou uma flor, mas que na ordem das coisas era e continuava sendo apenas um balão. Talvez venha dessa manipulação do balão de ar o magnífico poder de atração, que fazia com que sempre a roda à sua volta, seja num baile, numa tese ou num comício, fosse maior do que a roda dos demais. O quilate do homem, sua têmpera, se revelava no graúdo, mas também no miúdo. Certa vez sentou-se à mesa ao meu lado, deixando vaga a cabeceira. Observei que il Cappo di Tutti Cappi deveria se ter sentado à cabeceira, ao que me respondeu, com ironia na dose certa para ser afirmação segura, que tanto fazia onde se sentasse, porque o lugar passaria a ser a cabeceira. Eustáquio Gomes, num livro memorável, narrou com precisão um momento simbólico. Era o final da reitoria. Nosso herói passa os olhos lentamente pelos retratos, quadros e objetos da sala – pessoas, lugares e símbolos do poder, que ele soube exercer com as doses eficazes em tudo o que fosse preciso. Eustáquio percebeu a melancolia tensa do momento, que narrou como terminal. Mas deve ter visto, embora não registrasse, que era apenas um capítulo mais dramático, não o fim do romance. Porque a propósito poderia requentar aqui um dito popular: Vogt saiu da Unicamp, mas a Unicamp nunca saiu dele. O que é verdadeiro, mas não suficiente, porque a realidade exigiria um quiasmo: a Unicamp saiu do Vogt, mas o Vogt nunca saiu da Unicamp. Este, aliás, mais justo, porque se ela lhe saiu das garras diretas, ele não desgrudou dela, nem quando ocupou outros cargos relevantes. Nesse esforço de domínio, a unha até hoje enfiada na carne acadêmica é o Labjor. Mas outras unhas se juntam à primeira, a mais recente das quais atendia pelo nome de IdEA. A cordialidade costumeira, que é talvez a unha do mindinho, faz escala na sua poesia: a cada ano, pelo encerramento, um breve poema pelo correio ou pelo escaninho. Era um cumprimento e um lembrete. Não era, porém, poeta bissexto ou de data fixa. Alcir Pécora, num texto de perfeita descrição, mapeou a corrente dos anos de 1960. Uma nota ali permite juntar o poeta ao professor e este ao estudioso e ao político. Não sei se a traduzo bem, mas seria algo como a consciência vigilante. Alcir a surpreendeu nos títulos, assinalando o seu poder modalizador, controlador da leitura, basicamente pelo recurso à ironia. O obsceno, o mordente, o cínico, o confessional ou o pungente são, por meio deles, conduzidos a um registro mais pacífico. Talvez por isso de menos potência. Algo como um pé no freio, de busca de uma faixa neutra, fora da zona de guerra, do perigo. O crítico, ao final do prefácio, diz que iria reler o conjunto, torcendo secretamente por surpreender algo que desbordasse os limites do controle. Penso agora que o sentimento é do mesmo tipo, com sinal trocado, do que descrevi como presidindo à constatação da blandícia, que na crítica ou na atuação se resolvia, no confronto ou aliança pessoal, como mero temor e sobressalto, que o mecanismo, a estratégia e objetivo final eram, em essência, os de sempre. Tinha este texto pronto, quando Vogt veio, com Alcir, visitar-me. Trazia o homem um belo chapéu. Sentou-se na varanda, de frente para a praça. Conversamos longamente os três. Ainda a vivacidade, e o mesmo jeito de falar com o pé no freio e com o sorriso que indicava um subentendido. Que às vezes eu entendia, às vezes buscava em vão. Era sempre o mesmo homem. Ninguém muda. Estava certo o perspicaz e veemente Eulálio. E era bom.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

A rã de Bashô – II (ainda as rápidas anotações insones)



Para muitos, tanto aqui quanto no Japão, esse haikai merece toda a fama que tem pelo seu sentido. Uma história tradicional diz que um mestre zen, com quem Bashô teria estudado, fez aos discípulos algumas perguntas de resposta impossível. O resultado é algo como um koan: o mestre pergunta algo sobre a lei de Buda e Bashô, ouvindo o barulho de uma rã pulando na água responde com a última parte do poema: o barulho das rãs pulando na água. O mestre fica muito admirado e toma isso como um índice da iluminação de Bashô. Depois disso, Bashô submete a questão aos seus discípulos: qual seria o primeiro verso para esse haikai? Depois de várias sugestões, ele diz que o verso será “O velho tanque –“. Nisso se teria aberto o Olho do Haikai! É uma história zen, como se vê. E como outras que dizem respeito a Bashô e o zen, provavelmente apenas tradicional, ou seja, não factual. Por conta disso, muito se investiu na interpretação zenista desse poema. E de outros de Bashô. A ligação do haikai de Bashô com o zen, é tributária da orientalização da contracultura norte-americana, na qual o irracionalismo encontrou na imagem daquela vertente do Budismo um terreno propício à projeção dos seus ideais e de suas angústias com o rumo da vida ocidental. Um escritor magnífico como Alan Watts, por exemplo, teve grande magistério. E também D. T. Suzuki, em cujo livro mais famoso há um capítulo intitulado “Haikai e Zen”. Para esses leitores, um poema plano como o furu-ike ya exigia uma interpretação esotérica. Tão mais esotérica quanto mais objetivo ele se apresenta. Mas a pergunta permanece: por que esse haikai especificamente? Por que nele recaiu a atenção e por que nele se investiu tanto na interpretação esotérica? A resposta a essa questão se pode encontrar num texto muito interessante escrito por Masaoka Shiki. Nele, Shiki finge um diálogo com um visitante justamente sobre esse poema. O artigo foi traduzido por Blyth, e creio que foi esse texto que fez com que ele, Blyth, corrigisse a sua própria percepção do poema, em certa época muito embebida de zen. Eis o começo do texto de Shiki, onde a questão se apresenta da forma que julgo mais razoável. Começa a sua visita por dizer que o poema é conhecido até pelas pessoas menos estudadas, que é uma obra-prima, “embora ninguém consiga explicar o seu significado”. Ao que Shiki responde: O sentido desse poema é apenas o que ele diz; ele não tem nenhum outro sentido, nenhum sentido especial. Na sequência, esclarece: o poema ficou assim famoso porque Bashô o apresentou como o primeiro da sua própria maneira, aquele que divide o novo estilo do velho. Por isso, completa, as pessoas depois ficaram falando dele. Com o tempo, essa fama terminou por se confundir, no sentido de que esse poema seria o melhor haikai de Bashô, e o sentido da sua fama e o próprio sentido do poema terminaram por ser esquecidos, dando lugar a todo tipo de interpretação esquisita. Em seguida, mostra como a rã era representada, de modo antropomórfico ou como objeto de ridicularização, até propor que a novidade do poema de Bashô é que ali a(s) rã(s) faz(em) apenas o que as rãs fazem, mais nada. Ou seja, o que Shiki diz é que a maneira de Bashô é a poesia objetiva e fiel à realidade observável, sobre objetos simples em linguagem despojada: com clareza e com simplicidade, nada escondendo e nada cobrindo, evitando o raciocínio e a exibição técnica. Essa é a nova poesia, de que esse haikai é a primeira realização. Pessoalmente, tendo a concordar com Shiki e não creio que ele tenha interpretado mal o sentido desse haikai na história do gênero. Nem por isso cai por terra a possibilidade de uma leitura zen, à ocidental, pois onde mais, a não ser numa cultura na qual o zen tem um papel importante, um poema com tais características negativas poderia ter tal destaque, ter anunciado uma nova maneira e se tornado um marco na história de uma arte centenária?

A rã de Bashô – I (rápidas anotações de uma noite de insônia)



Não deve haver muitos poemas (não creio mesmo que haja algum) tão conhecido no mundo todo quanto o que Bashô compôs sobre uma rã que mergulha num velho tanque. Em português, há dúzias de traduções. Em inglês e em francês, idem. E não deve ser diferente em outras línguas europeias. Além disso, é um clássico japonês e creio que em todo o Oriente quem gosta de poesia já deve ter ouvido falar ou lido uma tradução. É verdade que a diminuta extensão do texto favorece. Mas não é só isso. O haikai, desde a segunda metade do século XIX vem despertando o interesse ocidental, na esteira da “descoberta” do Japão, propiciada pela abertura do país a partir de 1867, depois de mais de 300 anos ciosamente protegido dos olhares e da experiência direta dos estrangeiros. A onde de exotismo extremo-oriental, bem conhecida no final do século, também favoreceu o pequeno poema de 17 sílabas.
Mas afinal por quê? Há tantos versos de Bashô e de outros grandes poetas japoneses que permanecem desconhecidos... Mesmo entre os que louvam o haikai de Bashô poucos haverá que possam dizer de memória qualquer outro poema dele. Apenas o furu-ike na flutua na memória e passa por ser o melhor poema de Bashô, ou mesmo o melhor poema da literatura japonesa. Mas seria isso verdade? 
Comecemos pela pergunta mais simples e direta: o que diz esse poema? Uma tradução simples seria: velho tanque - rã(s) mergulha(m), barulho de água. É difícil decidir se se trata de uma rã ou de rãs. E a expressão “tanque velho” vem seguida da partícula “ya”, que indica um corte e não tem bom equivalente. Pode ser dada como uma exclamação “Ah!”, mas eu acho que isso é forte. Poderia ser uma exclamação ou reticências, mas também me parece forte. No geral, a solução encontrada por muitos é marcar com um travessão a quebra indicada pelo “ya”. Mas há outra coisa que escapa sempre: não é possível em português deixar indefinido o número: ou marcamos pelo menos duas vezes o plural: rãS mergulhaM, ou marcamos de modo indubitável o singular: UMA rã mergulha. Temos de optar e com isso já temos eliminada a possibilidade de o barulho também ser, por assim dizer, plural. Mas vamos concordar que se trata de uma só rã. Ainda assim, em português o haikai aparece muito quebrado, pois em japonês “kawazu tobikomu” é uma expressão que adquire um aspecto adjetivo. Ou seja, uma possibilidade de tradução seria: o barulho da água do mergulho da rã. Isso é muito analítico, embora seja mais fiel ao original, no sentido que o barulho da água e o mergulho formam uma unidade, um qualifica o outro. Mas nessa ordem tudo se perde, pois o movimento deve começar com a rã e terminar com o barulho, logo depois de a rã entrar na água, enquanto na nossa paráfrase se dá justamente o contrário. Algumas traduções buscam ressaltar o aspecto sonoro. Leminski não disse “rã”, mas “sapo”. O sapo salta é uma aliteração. E há outros que escolheram o sapo. Apesar de algum ganho sonoro, não me parece uma boa solução, porque a rã é que vive em lagoas; os sapos vão para a água para procriar apenas. O mais importante, porém, é o enquadramento sazonal: rã é indicativo de primavera, renovação da natureza, retomada do ciclo da vida. Quando contraposta ao tanque velho, que sugere algo imutável, provoca-se o contraste. Se há união de opostos aqui é a da renovação com a permanência, do renascer com a velhice. A materialização dessa união é o som. Por fim, nesse contraste se encontra uma glosa ou alusão à ideia tão cara à escola de Bashô de que na arte há um elemento fixo e outro variável. De mais a mais, o japonês é uma língua com poucas combinações de sons para formar sílabas ( normalmente uma consoante e uma vogal) e não me parece que nesse haikai em particular haja algum esforço de onomatopeia. Então fiquemos com a rã. Mas tudo isso que dissemos até este ponto poderia ser encontrado em outros poemas de Bashô ou outro poeta de primeira linha no haikai. Portanto, fica ainda sem resposta o porquê de esse haikai em especial ter ganho essa fama e ter merecido tanta análise e comentário. (Continua…)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Direito ao uso


Postagens como a que fiz tendem a dar motivo para comentários agressivos. Autores que denominam os seus textos “haicai” ou “haikai” se sentem agredidos e revidam. O argumento se apoia na liberdade criativa: cada um faz o haicai do jeito que quiser. Eu nada tenho contra tercetos criativos. Ou dísticos criativos. Quadras, piadas, paródias. Pelo contrário! Meu ponto é o uso do nome. Por que alguém denomina “haicai” um poema breve qualquer? Eis a questão. Por que alguém denomina “poesia” um arranjo visual de formas geométricas? No melhor dos casos, porque busca expandir o sentido do nome, desautomatizar. Mas o que percebo no geral é uma reivindicação de um modo de leitura: leia-me como poesia, leia-me como haicai. O mais comum, porém, não é nem isso, é apenas manifestação da preguiça. Reivindica-se o direito ao uso do nome e ponto. Não se vê um esforço de compreensão, seja do poema japonês, seja da história do uso do nome no Ocidente. Há, por certo, um ponto a considerar: quem advoga o uso do nome para qualquer poema brevíssimo se contrapõe ao haicai reduzido a mero terceto de 5-7-5, animado por um propósito descritivo. Há, de fato, um mar de haicais nesse esquema – e, como em todo tipo de poesia, de literatura, na maior parte coisas sem grande interesse. Além disso, o haicai entendido como terceto promove de fato, como o soneto e a quadra, um exercício meramente formal, automatizado. Com a vantagem de parecer mais fácil, pois muito breve e sem rimas... Mas entre os que buscam ao menos a forma adaptada do 5-7-5 e os que usam o nome para designar algum fruto da preguiça prefiro os primeiros. Porque não haveria mal algum em denominar a própria produção apenas “poesia”. Por que chamar “haicai” a poemas brevíssimos, o mais das vezes escorados apenas num trocadilho, numa piada ou gracinha neoconcreta? Por que não, se a forma lembrar a do haicai, entender o produto como “tercetos criativos” ou o que seja. A reivindicação do nome é outra coisa. Principalmente quando se faz de forma agressiva, a pretexto de combater uma prática que se julga desinteressante, formalista ou castradora, e, na verdade, atropelando, desqualificando aquilo que a palavra denomina (seja como resultado, seja como atitude, seja como busca) na mais alta tradição, seja no país de origem, seja entre nós, no Ocidente.

Treinamento do espírito


Embora afastado da prática e do convívio, continuo recebendo livros físicos e digitais de haicai. Já ao haicai japonês retorno com frequência, como quem abre uma janela e deixa entrar o ar fresco num quarto abafado. Não gosto da ideia, repetida muitas vezes até por quem ignora a língua, de que só é possível fazer haicai em japonês. Como se só houvesse um haicai, um tipo de haicai, no Japão. E como se essa afirmativa se referisse a todos os aspectos do haicai. Só é possível, talvez, fazer haicai naquela forma, tal como se fazia em japonês: a forma clássica. Isto é, com os segmentos regulares definidos por número de -moras- e por palavras de corte. Mas isso é essencial? – poderíamos perguntar. É isso que nos inspira no haicai e nos desperta o desejo de recriá-lo em língua ocidental? Está claro que não. Porque – voltamos ao ponto – a maioria dos praticantes ocidentais não consegue escandir corretamente um haicai japonês, nem mesmo identificar nele as palavras de corte, que definem os segmentos; e porque seria sem sentido tentar compor por -moras- numa língua como o português. Não obstante, a esmagadora maioria dos praticantes se apega a uma tradução grosseira da forma. Traduzem a duração das -moras- por sílabas poéticas contadas à nossa maneira e o delicado equilíbrio dos segmentos por três versos. Junte-se a isso algum pendor descritivo e chegamos ao mínimo múltiplo comum do haicai no Brasil. Até aqui, porém, não temos nada exceto uma fôrma (faz falta o abolido acento diferencial). Do meu ponto de vista, nada de interessante, a não ser pela facilidade – o que responde pela grande cópia de livros de haicai que têm sido publicados. Mas é isso que queremos importar, quando falamos em escrever haicai em português? Se for isso, não vale a pena. Melhor desenvolver a quadrinha. Os mais versados na arte favorecem a divisão das frases em dois blocos: um ocupando dois versos e outro ocupando um verso. E aqui já se roça um elemento importante da forma: a composição por justaposição. Os que conhecem a tradição do haicai japonês acrescentam à justaposição a recusa das figuras de linguagem, evitando especialmente a metáfora e a atribuição de vida aos seres inanimados e de qualidades humanas aos elementos da natureza e aos animais. E ainda a fuga à palavra “eu” e à expressão direta dos sentimentos e emoções. Isso já vale a pena importar ou imitar, eu creio, porque é um bom exercício de negação das práticas usuais da poesia entre nós. Fazer poesia que funcione, dentro desses parâmetros, implica uma forma de olhar para as coisas e uma forma de escrever. É uma arte difícil, na qual a banalidade ronda todo o tempo e não raro triunfa.E chegamos ao que creio que interessa: tal como definido na escola de Bashô, um haicai “brota”. Ou ao menos o broto do haicai surge, podendo depois ser podado, ajustado ao desígnio original. Quando o espírito está livre da visão própria – é a lição – ele se funde com as coisas exteriores e esse movimento determina a forma dos versos, do poema. Aqui está o mais impressionante e o mais difícil, aquilo que, na minha opinião, vale a pena tentar incorporar, importar, imitar: o haicai como produto de um estado de espírito, um jeito de ser, uma forma de estar no mundo e de conceber a palavra e o momento da composição. O mais, ainda aquilo que não seja propriamente supérfluo, não me parece essencial.

domingo, 16 de julho de 2023

Poesia, pontuação, minúsculas, corte

 Nesta manhã friorenta domingueira, vejo que me marcaram numa postagem do Facebook. E que há ali um enorme debate, por assim dizer. Na verdade, uma série de declarações, a maior parte profissões de fé. Vejo ainda que me marcaram em outra questão. Não me animei a responder ontem. Mas agora, enquanto não me animo a deixar cama, pensei no assunto.


Então: emprego ou ausência de pontuação em poesia; o corte do verso na poesia contemporânea; o uso ou não de maiúsculas em começo de verso ou frase. 
Uma resposta simples, considerando a maior parte dos casos, poderia ser: são marcas de “poesia”. Algo como uma reivindicação de pertencimento a uma categoria. Uma demanda de um modo de leitura: leia-me como poesia – é o que dizem esses procedimentos ostensivos. O que quer dizer, mais ou menos: leia devagar, interprete, faça um investimento de sentido. Ou seja: me leve a sério! 
Isso para a má poesia, alguém poderia dizer. Assim como a medida e a rima foram em outros tempos. E é certo também. 
Será verdade que hoje se produz muito mais má poesia do que em outros tempos? Talvez seja, num sentido específico: o de que as marcas de poesia se tornaram mais fáceis. Não é preciso dominar a contagem das sílabas, nem buscar palavras de final igual ou parecido. A mesma tolice pode ser dita num soneto ou num pseudo-haicai. E este tem, sobre aquele, a vantagem da brevidade. (O que favorece tanto o autor quanto o leitor, diga-se.) Mas sem dúvida é mais difícil fazer (e ler) um soneto do que um poema pequeno de 3 versos sem rima. É certo também que é mais fácil fazer um “poema moderno”, ou modernista, em “versos livres”, frases sem pontuação e sem maiúsculas, do que compor em terza rima, em quadras ou mesmo em estrofes livres, de mesmo metro. 
Má poesia, porém, sempre houve. Não fazemos ideia do que se acumulava nos “álbuns” que muitas pessoas mantinham no século XIX. Mas podemos facilmente ver que o próprio soneto não era barreira suficiente ao derramamento de banalidades. O que muda, eu acho, é que nos dias de hoje a visibilidade é maior, por conta não só do barateamento da produção em papel, mas principalmente porque a eletrônica permite a publicação imediata e praticamente sem custo. E o custo, social ou material, terminava por ser um filtro. De classe, poderiam logo gritar alguns. Sim, mas não só. De qualquer modo, a facilidade de publicação nas mídias sociais é um estímulo à produção, assim como a organização de comunidades de autores-leitores, em grupos, sites, blogs. Nesse sentido, pode ser, sim, que hoje haja muito mais má poesia (desde que se admita que o que se autodefine como poesia seja por isso mesmo poesia) circulando do que em qualquer outra época.
Na poesia clássica, o verso era definido pela medida. Por isso o enjambement, o terminar da ideia, da frase ou o fechamento do sintagma no verso seguinte era muito comum. Como nos primeiros versos da Eneida:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris 
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit
litora,

Fechando um pouco o foco: em português, o verso foi também por muito tempo definido pela medida. Não já baseada em compassos, mas em número de sílabas. Assim, completada a medida, percebia-se completo o verso. Nesse sentido, a rima era apenas um reforço, do ponto de vista métrico.
Dissolvido o metro como definidor do verso, sobra a rima. E, além dela, várias formas de acoplamento, paralelismos. E ainda, em certo tipo de verso livre, o simples término da frase ou do conceito.
Homero era para ser ouvido. Virgílio já era para ser lido, embora o metro implicasse a oralização, chamasse aquele tipo de cantilena que se pode imaginar como o modo de leitura da poesia antiga e que persistiu, por exemplo, na missa. Já Dante parece sentir a leitura como forma principal de recepção da sua obra épica, uma vez que ao longo da Comédia tematiza o leitor, dirige-se a alguém que lê, não a alguém que ouve. Não obstante, neles é a medida que define o verso. Assim como em Os Lusíadas ou em O Uraguai.
Voltando ao ponto: quando a medida deixa de ser requisito do verso, é preciso buscar outras formas de o definir. E em muitos casos reagir a qualquer definição, tematizar inclusive isso, é uma forma parasitária de verso, que se sustenta e define por oposição, negação da medida. Nesse caso, a marca formal, o mínimo múltiplo comum da variedade é o corte da linha – porque se trata, quase sempre, de escrita.
Até agora, nesta parte, não falei propriamente de poesia, só de verso. Verso que podia ser utilizado inclusive para escrever o que hoje não definimos como poesia.
Então voltando ao ponto: os procedimentos contemporâneos (falta de pontuação, falta de maiúsculas, corte violento e “arbitrário” dos sintagmas e dos vocábulos) são uma reivindicação de “poesia”, isto é, de pertencimento a um gênero. No limite, uma reivindicação de uma forma de leitura que invista no sentido, na necessidade da forma. Ainda quando a falta de sentido e a arbitrariedade da forma sejam ostensivamente buscadas. Porque o que parece definir o gênero, em termos modernos, é a necessidade. A não-arbitrariedade (repetindo: inclusive a não arbitrariedade da encenação de arbitrariedade). 
Na maior parte dos casos, esses jogos se processam no plano da escrita e da leitura silenciosa, atenta à tipografia e à distribuição no espaço do papel ou da tela. Daí que os recitais desse tipo de poesia, a leitura em saraus, sejam normalmente muito aborrecidos. Porque ali a reivindicação de “leia-me como poesia” não se sustenta no texto lido. Daí também o esforço de encontrar alguma diferença no tom de voz, ou de apoiar o texto no ambiente.
A dissociação entre poesia e verso chegou a ser total, em algum momento. Mas mesmo nesse caso, como mostra o fato de que nunca se abdicou da denominação “poesia” ou “poema”, persistiu a mesma reivindicação de pertencimento a um gênero, ou seja, de uma forma de leitura que faça no texto um decidido investimento de sentido. O que cria a necessidade de manifestos e, como eles não bastam, de um tipo de manual ou guia de leitura, que caracteriza alguma poesia de vanguarda e inclusive favorece a criação de uma especial linhagem de poetas-críticos. Muitas vezes, poetas-críticos-e-intérpretes-de-si-mesmos.
Creio, porém, que a divagação domingueira está se afastando muito do tópico daquela postagem. E é hora de ver o sol e aproveitar o dia.

sábado, 15 de julho de 2023

Memória: Rubem Braga

Encontrei-me com Rubem Braga duas vezes, e foi assim: Marisa Lajolo coordenava com Samira Campedelli uma coleção da Abril Cultural. Chamava-se “Literatura comentada” e apresentava, em livrinhos vendidos em banca de jornal, os principais autores das literaturas brasileira e portuguesa. Alcir e eu ainda fazíamos o mestrado, o que de alguma maneira combinava, pois a forma do assunto talvez aspirasse ao cânone como nós dois à formação acadêmica. Era nosso primeiro livro, e o fizemos da forma que foi a nossa sempre, desde a tradução até a composição de poesia de nonsense ou obscena: a quatro mãos.

A primeira vez que o vi foi logo que recebemos o convite. Eu estava no Rio, acompanhado do meu pai, em busca de material para a minha dissertação sobre poesia concreta. Eram tempos difíceis aqueles, sem internet nem máquinas digitais ou celulares. A Biblioteca Nacional era um caos. Por falta de pessoal ou competência, abriam andares ímpares e pares alternadamente. De modo que se por acaso o que você quisesse num dia ímpar estivesse num andar par, a consulta ficava para o dia seguinte, mas sem garantias, porque de repente a sequência podia ser quebrada por algum motivo. Além disso, não havia serviço disponível de microfilmes. E era aí que entrava o meu pai: fotógrafo amador, foi autorizado a fotografar com sua Pentax as páginas que me interessassem dos jornais dos anos de 1950.
Meu pai sempre foi um bom leitor, além de músico, poeta e cronista nos jornais do interior onde vivemos. Por isso, era grande fã de Rubem Braga. Bastava-lhe saber que o cronista estava num periódico para assiná-lo ou comprar na banca.
Não desperdicei a oportunidade, portanto. Telefonei ao velho Braga e lá fomos visitá-lo numa bela tarde ensolarada, após o trabalho na Biblioteca. Não me lembro nada do que falamos. Apenas me recordo claramente da expressão do meu pai, quando apertou a mão do escritor. Depois, ficamos ali conversando. Eu na verdade não tinha assunto, senão lhe dizer que eu e um amigo escreveríamos sobre ele.
Quando voltei a Campinas, organizamos as jornadas de trabalho. Lemos a obra de Braga de uma ponta a outra, selecionando cada um as crônicas que mais impressionavam. Em voz alta as relemos e depois as fotocopiamos, recortando os xerox para montar o conjunto.
Em seguida, redigimos uma apresentação crítica – ainda muito colada à bibliografia, vi agora –, o esboço biográfico e as notas. E então veio a notícia terrível: Rubem Braga não queria ser explorado pela Abril (não foi bem isso o que disseram, mas o que entendemos, e ele depois confirmou) e exigia que no livrinho houvesse tanto texto dele quanto sobre ele.
Foi então que fui pela segunda vez à sua casa, saindo de Campinas numa madrugada fria, de moto, para apanhar o avião da ponte-aérea e voltar no final do mesmo dia.
Isso explica que eu calçasse uma bota quase até o joelho e carregasse uma grande mochila, onde meti depois o casaco e as luvas, mas não as botas. E portanto em poucas horas lá estava eu, com aquelas botas e aquela mochila, andando pela praia de Ipanema, sob um sol de assar batata na rua.
É que Rubem Braga tinha ido a um enterro no horário matinal combinado. E só me receberia quando voltasse. Por isso nem me afastei muito do apartamento dele, nem fiquei muito por lá, com tal aparência suspeita.
Quando me recebeu, pude ver melhor o famoso apartamento de cobertura, com jardim de Burle Marx e um pequeno aquário rodeando a casa.
Vejo agora que não descrevi o escritor. Não era baixo nem alto, se me lembro bem. Nem gordo nem magro. Tinha cabelos brancos e um bigode esbranquiçado. Seu traço mais marcante eram os olhos. Bovinos, disse dele alguém. E não encontrei melhor palavra. Como o boi do poema de Drummond, talvez. Eram olhos ao mesmo tempo acolhedores e investigativos, nos quais também julguei perceber algum tédio, derivado da experiência. Assim devia ser o jeito de Aires, lembro-me que pensei.
Perguntei-lhe o que achara do nosso texto. Ele me disse algo vago, que não assegurava que tinha lido. Eu lhe disse que nossa ideia para cumprir a exigência era desenvolver a apresentação e acrescentar uma pequena fortuna crítica. E acrescentei que a sua biografia tinha saído tão breve porque havia muita inconsistência no que estava disponível. Por fim, que pretendia fazer com ele uma entrevista e acrescentá-la ao livro, para cumprir o necessário.
Ele mandou vir uma grande caixa. Abriu-a sobre a mesa e vi que nela havia de tudo: cartão de repórter de guerra, passaportes, salvo-condutos, muitas fotografias, cartas, recortes, registro de nascimento, carteira profissional. Juntos separamos a papelada e reconstruímos a vida dele, corrigindo os dados que eu trazia anotados a partir das leituras. Selecionei por fim os documentos mais relevantes, que a editora trataria de fotografar. E fiz a entrevista. Um dos trechos vem junto desta postagem.
Na saída, deu-me um exemplar do seu único volume de poesia, que tinha acabado de ser publicado em Recife, pelas Edições Pirata, mas com a condição de que os versos não seriam incluídos no livro que fazíamos.
Na volta, com base na conversa do Rio e atendendo à necessidade de espichar o texto, reforçamos as notas de rodapé, aumentamos a biografia e inventamos um diálogo. Essa foi a parte melhor, na verdade, a mais divertida e produtiva: submetemos o nosso texto primeiro à crítica, desdobrando-nos em duas figuras – o Mestre questionador e o Discípulo aplicado – e pudemos assim ser mais ousados, autoirônicos e agudos. Por fim, convocamos para a conversa o próprio Rubem Braga, atribuindo-lhe as palavras que me disseram no Rio.
Ele me dissera que uma prova da decadência da crônica era que a revista Manchete tivera outrora quatro bons cronistas, mas que agora só tinha o Adolfo Bloch, que só escrevia para um leitor, ele mesmo. Como ele me disse, publicamos.
Algum tempo depois, ele se referiu numa crônica aos rapazes de Campinas que colocaram aquelas palavras na sua boca. Disse que não se lembrava de tê-las dito, mas que, já que dissemos que ele disse, então estava dito.

sábado, 8 de julho de 2023

Enquanto espero…

Enquanto espero, por algum motivo me lembro de coisas que li em Ezra Pound. Mais exatamente no livro que entre nós se chamou “ABC da Literatura”. Não a abstrusa noção de paideuma. Essa, tal como ele a operacionaliza, não disfarça o caráter autoritário. Afinal, quem disse que o trabalho de uma geração é capaz de selecionar para a próxima o que é vivo, evitando que ela perca tempo com coisas obsoletas? Não é justamente o contrário? Que na modernidade uma geração digna do nome enterra a anterior, ao menos em parte, descobrindo a novidade ou o interesse onde aquela não punha o seu coração?  O que me ocorreu foram outras passagens, que refiro de memória. A primeira é aquela em que ele compara uma opinião a um cheque. É uma questão de fundos. Se ele, Pound, desse um cheque de um milhão de dólares, seria uma piada. Se Rockfeller o fizesse, não. Seria uma coisa séria. Assim também, com a opinião de um não-conhecedor de literatura e arte. A comparação é brutal e pode ser contestada em vários níveis, mas aponta para algo que é de fato importante: o conhecimento como padrão de julgamento (e de gosto, talvez), o valor da autoridade intelectual. Auctoritas. Não se trata de “sabe com quem está falando”, nem de “sabe quem está falando”, e sim a importância de constatar que “quem está falando sabe”. Mas a passagem que primeiro me ocorreu foi uma na qual Pound pergunta se o seu leitor se interessaria pela obra de um autor cuja visão de mundo (acho que ele diz percepção, mas não estou seguro) estivesse abaixo da média (creio que ele disse “não estivesse acima da média”). Confesso que, indagado, tenderia a responder que não. Talvez porque seja essa a base da minha recusa a continuar a leitura de poesia ou prosa na qual não perceba que o autor de fato tenha algo a dizer. Algo relevante, de algum ponto de vista, ainda que seja o puramente pessoal. Nesse ponto, me ocorre outra lembrança: a de que é bastante desfocada a repetição incessante da boutade de Mallarmé sobre a poesia não se fazer com ideias, mas com palavras. Porque a mim não interessa o contrário: a poesia feita com palavras sem ideias. Talvez porque me lembre de Bashô, quando dizia que as obras produzidas apenas com arranjos de palavras são o testemunho de um espírito que não se esforçou para atingir a verdade. Não são dignas de respeito, acrescentava ele. Mas voltando ao Pound: embora tenda a concordar, reconheço a dificuldade. Por exemplo, Fitzgerald. Em que medida poderia dizer que ele tinha uma visão de mundo acima da média? Eu acho que sim, mas não sei bem por que acho isso. Sei apenas que o “Grande Gatsby” me encantou desde a primeira leitura. E não só pelo enredo. Na verdade, não pelo enredo. Mas porque há ali, por exemplo, uma cena na qual a personagem adentra uma sala cheia de leveza e brisa. As mulheres, como tudo o mais, flutuam, se erguem no ar. Quando o dono da casa fecha brutalmente as janelas, tudo se assenta. Assisti às filmagens da obra. E gostei, eu creio. Mas essa cena me marcou a partir do livro, porque se fosse encenada ao pé da letra o resultado seria certamente ridículo. E assim muitas outras cenas e passagens, pelas quais eu avaliava, normalmente em clave deceptiva, as equivalentes nos filmes. Tudo isso para dizer que há mais coisas aí, entre a visão de mundo e o puro domínio das palavras. A mescla é variada e o resultado incerto, penso. Uma coisa parece transformar-se em outra. Ou gerar a outra. E agora, enquanto ainda espero, me lembro de algo que parece ter pouco a ver. A ideia marxista (ou terá sido Engels?) de que a determinação estética pode inclusive corrigir a crença de classe, a visão parcial pessoal do artista. Ou quase isso. Porque sempre vi ali uma postulação do valor de conhecimento, isto é, de análise e desvelamento da realidade, que a submissão à coerência estética acarreta. Como se o justo e o esteticamente ajustado fossem de alguma forma íntimos. Claro que a estética, no caso marxista, era a do realismo. Mas o ponto era esse. Neste momento, porém, acho que já esperei demais. E que há algo de desvario nisto tudo. Mesmo assim, que seja.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Ensaio

 Estive, desde ontem, para escrever uma nota sobre um artigo de Alcir Pécora. Era para ser um comentário a uma postagem que fiz a propósito do livro de Frederico Lourenço. 

Sucede que por ter compartilhado e endossado a crítica mordaz que ali (em Lourenço) encontrei sobre a “indústria universitária” logo me tornei alvo da bondade do bom-mocismo. Ora, me disseram em privado, você está subscrevendo uma atitude reacionária. Em público, em comentário desrespeitoso que apaguei, levei um sabão por compactuar com a arrogância e outros vícios, e também me disseram com condescendência que toda pesquisa é válida e sempre há contribuição original, por menor que seja etc. O ponto, entretanto, não estava em parte alguma dessas reações repletas de boas intenções, na maior parte.

Mas voltemos à ideia do comentário. Aconteceu que na sua visita semanal, Alcir me trouxe um número da revista “Miscelânea”, da Unesp. pois lá vinha um texto seu, de brilho característico, sobre aquilo que denominou “um tema que nos interessa”, acrescentando, agora com verdadeira generosidade, que eu já sabia daquilo tudo. O que pode ser verdade, num nível, mas não o era certamente em outro, ou seja, o da capacidade de exposição e síntese que ele tem em dose admirável. A começar pelo título: “O ensaio na época da morte do ensaio”.

Se eu quisesse de fato resenhar e debater o texto, não seria este o espaço. Mas basta-me chamar a atenção para o que nele vai, e realçar alguns pontos em que convergimos. Por fim, se a tanto me ajudasse engenho e arte, gostaria de glosar alguma coisa do texto, numa clave algo crítica, mostrando que os dois terços finais do título não permitem a redenção do primeiro. Mas temo que isso seria demais também, então basta indicar a leitura e transcrever algumas frases.

O primeiro ponto é que, listando uma bibliografia do maior interesse, conclui: “os autores que pensam a universidade ... acabam igualmente por entender o presente dela como um momento de declínio”.  Como ele mesmo reconhece, ao tratar do ensaio nesse quadro, seria fácil ceder à nostalgia e entoar um “ubi sunt?”. 

Alcir reflete sempre com um pé no chão do presente e outro no campo de combate. Nada de nostalgia, nem de lamento. A situação da universidade, diz, tem uma clivagem dupla: as implicações internacionais da ideia de universidade e as inovações tecnológicas. Ambas incidem diretamente sobre o tema do artigo, que é a escrita. Ou a atitude que preside à escrita, eu talvez pudesse dizer.

Haveria ainda uma terceira determinação presente do pensar a universidade, que é a hegemonia da sociedade de mercado, que lhe permite esta formulação provocativa, algo angustiante: “O quadro incrivelmente raivoso dos novos fundamentalismos que se apresentam como ‘antissistema’ – mas que, de fato, são basicamente antidemocráticos – sugere mesmo que não é impossível que, num futuro próximo, tenhamos saudade do cosmopolitismo laico do capital”.

 Ao traçar o quadro da crise das humanidades, Alcir continua com a faca afiada. Aqui, desnaturaliza o uso da palavra “pesquisa” no interior das humanidades, ali indica como, nos países centrais, a tendência é que sejam versadas por pessoas das classes ricas, já que não permitem retorno do capital investido (ele diz de modo mais refinado do que estou resumindo, claro), mais além fustiga a especialização precoce incentivada pelo sistema de bolsas, a começar pela IC. E ainda a “obrigação artificial de interdisciplinaridade”, criada pelas agências de fomento.

Nesse ponto, o autor percebe o risco da navegação e escreve: “Mas se é verdade que eu capitulo diante da determinação um tanto tristonha do gênero que pensa a Universidade, gostaria ao menos de evitar um segundo estágio da melancolia, o de viés catastrofista. Cair nele encerrar-nos-ia definitivamente num cômodo apertado entre a saudade dos bons tempos e a ansiedade do fim. Quando essas duas afecções se juntam, resta-nos apenas a nostalgia da extinção, que tudo devora e reduz a pós-.”

Mas será que ele consegue evitar esse segundo estágio terminal?

O caminho dá nesse ponto uma volta. A volta da definição do que seja o ensaio. E o faz chamando para o palco um texto de Abel Barros Baptista sobre um conto de Poe, de que extrai esta formulação: “O ensaio não é o conhecimento disfarçado de literatura – é a literatura disfarçada de reflexão, análise, conhecimento”.

E aqui chegamos à peripécia, por assim dizer. O que Alcir vai identificar, derivando essa proposição, é a definição de ensaio não como mapeamento do objeto, mas como conquista e/ou imposição do lugar do intérprete. 

Para mim, esta é uma percepção muito aguda e certeira: “o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo o alienaria da obra que pretende elucidar”.

E aqui a conclusão, da qual decorreria muita coisa: “Assim, um ensaio bem sucedido é menos a explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema”.

O artigo se encerra poucas linhas após essa frase. Por isso não faz uma amarração dela com o feixe dos problemas e argumentos anteriores.

Quando terminei a leitura, escrevi ao autor. Mas antes de contar o que lhe disse, vejo que me esqueci de ressaltar um ponto muito notável do seu artigo, aquele no qual define a nova forma de relação dos entes universitários. Eis: “Como detalha Collini, ..., o aluno comporta-se cada vez mais como um cliente que tem exigências a serem contempladas pelo professor. E o professor, por sua vez, ... aproxima-se da figura de um fornecedor.”

Pois bem, o que lhe disse primeiramente foi isto: “Você escapa por pouco do lamento pelas neves de outrora, se safa bem com a admissão da tentação e a superação por aquela atitude mesma que me sugere quando me vê resvalar pela encosta da melancolia abaixo.” Depois, provavelmente com algum dramatismo provocador, escrevi-lhe que no novo mundo da universidade, o ensaio, tal como ele o define, está mais para um tapa na cara. Algo do tipo, dito pelo fornecedor ao cliente: olhe aqui, você nunca vai conseguir fazer isso se insistir no que tem insistido! 

E claro que, ainda nesse registro chão e brutalista para o qual às vezes gosto de puxar o problema, pisando a questão material fiz as perguntas chãs, mas talvez decisivas: “quem está disposto a pagar pelo ensaio? Como ele atende aos clientes/alunos?” 

Claro que uma parte da resposta incômoda já estava lá, naquela parte do artigo em que mencionava o caráter cada vez mais elitista, ou melhor, elitizado das humanidades em algum tipo de instituição universitária. Mas achei que devia, para dar seguimento à conversa, formular claramente a questão. 

Por fim, retornado àquela frase do Abel, que ele cita para depois desenvolver, observei que o guizo no pescoço do gato ainda está por amarrar, isto é, ainda é preciso dizer para os financiadores (e convencê-los disso) que um texto literário disfarçado em estudo não é de forma alguma uma trapaça, mas aquilo mesmo que define (e também estou convencido disto) um dos núcleos mais importantes, se não o definidor, na ideia de universidade.

sábado, 1 de julho de 2023

Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna


Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso,  a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.

sábado, 10 de junho de 2023

Perfis 8 - Jesus Antônio Durigan

    Jesus baixou à Unicamp sem anúncio nem pompa, por via incerta. Veio com uma mala de viagem estruturalista, e fortes tatuagens da passagem de Greimas pelo Brasil. Se bem me lembro, era bom professor, sistemático, cumpridor. Depois, foi diretor do Instituto, na sequência do episódio da intervenção malufista que depôs Carlos Franchi. E foi, como nos cursos que ministrou, fiel cumpridor do que lhe cumpria pensar e fazer. As lembranças mais claras que dele tenho, porém, não são da sala de aula. Fui seu aluno e de tudo o que ali falamos ficou-me apenas a lembrança de uma ardida discussão sobre um texto de Edgar Morin. Recordo-me bem, isso sim, de seu livrinho sobre o erotismo, que teve destaque na época. Mas não só, para minha surpresa: quando comecei a pensar em fazer este perfil, percebi que havia mais, nalgum canto empoeirado da memória. Era algo sobre pecado e sobre narrativa. Abanando a mente com o Google, varrendo a internet por “pecado” + “Jesus” + “Greimas” surgiu-me logo na tela do notebook o artigo de 1984. Não vou dizer que o reli agora há pouco com grande interesse, embora a releitura não fosse desinteressante. Assim como o vestuário sofre com a passagem do tempo (pela época da redação, creio que ainda se teimasse nas calças boca-de-sino e nos sapatos de plataforma), as modas teóricas resistem mal ao progresso do calendário. Será que o guardei por conta do título algo pomposo, que à época não viria despido, para mim, de alguma comicidade? A “ciência do discurso”? Creio que não. Talvez então tenha sido por conta da nota, em que a personalidade do autor se revela junto com as tensões do tempo? Pode ser, porque embora os organizadores se esforçassem por registrar, com a honestidade devida da modalização, que “aparecem aqui lado a lado tanto trabalhos teóricos quanto estudos particularizados (...), num exemplo razoável de coexistência pacífica”, a verdade é que Jesus era um estranho no ninho candidiano e devia sentir-se todo o tempo como tal: “Escrito em 1975, este trabalho se propunha a participar das discussões que se realizavam na época. Muita coisa mudou de lá para cá. Curiosamente, o trabalho foi policopiado e lido por amigos e inimigos. Talvez ainda se preste a fofocas. Por isso, foi mantido na sua versão original.” Enquanto tentava retraçar o perfil moral do homem, o que se me impôs foi o seu perfil físico. Ou melhor, a sua silhueta, inconfundível para quem a tivesse divisado alguma vez no corredor das salas de docentes do IEL. Para quem não conheceu o velho pavilhão, devo dizer que era um pouco soturno. Escuro, atravessado por um corredor comprido, ladeado de salas quase sempre fechadas, com uma grande porta de vidro em cada extremidade, tinha a propriedade de nos acostumar às sombras, e de treinar a vista para reconhecer o desenho projetado do corpo de quem vinha por uma das pontas quando estávamos no meio. Jesus tinha longas pernas arqueadas, como de vaqueiro. Pernas de alicate, como se dizia na minha terra. Ver a sua sombra caminhar num tipo de gingado na nossa direção, na semiobscuridade daquela miúda caverna, gerava alguma tensão, e era fácil imaginar, emergindo do fundo da tela, uma das muitas memoráveis trilhas de Ennio Morricone. Creio que poderíamos ter sido amigos, apesar da diferença de estatuto e de idade. Afinal, éramos ambos caipiras do interior, tínhamos a mesma origem veneziana. O que nos garantia um sotaque comum e, mais do que o sotaque, aquela entonação de quem foi criado com macarronada e frango assado aos domingos, sob a dupla sombra do crucifixo e da Comédia. Mas a verdade é que nunca fomos próximos. Jesus parecia ter, por assim dizer, o physique du rôle para cavalgar a burocracia: logo, de diretor do Instituto passou à presidência (ou direção executiva, não estou seguro) da fundação da Unicamp. Creio que foi a saída que encontrou. Mas não continuou muito tempo nessa estrada e se recolheu. No final da sua temporada no IEL, ainda gostava de o encontrar, quando percorria semanalmente outra longa estrada, de Franca (eu acho que era Franca), para dar as últimas aulas necessárias à aposentadoria. De alguma forma me identificava muito vagamente com ele. Principalmente nos primeiros tempos, em que eu tinha a impressão de que não pertencia àquele ambiente, não conseguiria me mover ou crescer dentro das fronteiras demarcadas. Ambos ansiávamos, eu acho, pela largueza dos campos gerais, em vez do canteiro bem cercado. Com o tempo, devo ter me acostumado (ou talvez a horta tenha crescido e se multiplicado), embora até hoje suspeite que aquele não foi para mim o melhor terreno. Para ele, olhando desde este ponto do tempo, tenho cada vez maior convicção de que não foi.