terça-feira, 5 de novembro de 2024

Sobre Olavo Bilac

 

John Carey, num livro polêmico e belicoso, Os intelectuais e as massas, trata do “orgulho e preconceito entre a intelligentsia literária” no período de 1880 a 1939. Publicado em 1991, foi celeremente traduzido e publicado no Brasil em 1993. A tese de Carey, como ele mesmo sintetiza no prefácio, é que “a literatura e a arte modernas podem ser vistas como uma reação hostil ao público leitor”. Creio que a provocação contida nesse livro pode nos ajudar a pensar o tema desta conversa.

Queria começar pela questão do público. Como anota Carey, na Inglaterra criou-se no final do século XIX um público leitor de volume sem precedentes na história, gerado pelas reformas educacionais. O mesmo sucedeu por certo em várias partes do mundo, nas quais a demanda da sociedade capitalista burguesa por operários, funcionários e consumidores alfabetizados ensejou um incremento na educação das massas. Ao mesmo tempo, os avanços da tecnologia permitiram aumentar e baratear a produção de textos impressos, de modo que ao longo desse período se observa um incremento brutal no número de veículos de imprensa e de livros à disposição do novo público. 

No caso da Inglaterra, temos a propósito um depoimento de Eça de Queirós na Gazeta de Notícias, em 18 de novembro de 1881. Conta aí o romancista que não é possível sequer estimar o número de livros publicados por ano naquele país, mas que seguramente se contam por dezenas de milhares. E neles há um gênero que se destaca, a literatura geral. Só na semana em que ele escreve, num único jornal, o Spectator, listam-se 93 obras em primeira edição. Ao lado disso, registra, proliferam os livros de ciência e os de um gênero que atrai sua atenção entre todos: a literatura de viagens. 

O mesmo Eça de Queirós, ainda escrevendo da Inglaterra, em 1886, radica o diferencial entre o Antigo Regime e o período moderno na extração social do produtor e do consumidor de literatura.[1] Para o autor de Os Maias, antes do período moderno, inaugurado com a Revolução Francesa, havia Autores e Leitores, isto é, indivíduos, pertencentes a uma classe com distinção, instruída nos clássicos. Já no seu tempo, havia Escritores e Público, ou seja, de um lado uma função produtiva, uma profissão, e de outro uma massa anônima, indiscriminada, consumidora e ávida pelo produto literário. 

Valeria a pena mostrar como Eça extrai dessa oposição inclusive uma determinação quanto à hierarquia dos gêneros literários, à linguagem e até mesmo no que toca aos paratextos. Mas registremos por ora apenas a constatação de que no período moderno se constitui na Europa um vasto público alfabetizado e anônimo, interessado em literatura.

Embora não na mesma escala, o Brasil não ficou à margem do processo de criação de massas leitoras, por meio dos esforços de alfabetização. Na província de São Paulo, por exemplo, aprovou-se a obrigatoriedade do ensino primário já em 1874, apenas 4 anos depois de a Inglaterra o ter feito.[2] Nas demais regiões do país, o avanço foi mais tímido. A população analfabeta do Brasil era ainda de cerca de 80% no primeiro ano da República, e só muito lentamente foi sendo reduzida. De fato, como mostra o censo de 1920, época em que se dá o primeiro grande ciclo de difusão da literatura para o interior do país, com a atuação de Monteiro Lobato, 65% da população de mais de 15 anos ainda era analfabeta. Mesmo assim, ao menos no Rio de Janeiro e em São Paulo, era notável e sensível o aumento do público letrado e o crescimento da indústria editorial.[3]

O fato não escapou à observação de Bilac. Numa crônica de 1905, intitulada “O vício literário”, espanta-se o poeta de que o Rio de Janeiro contasse com 12 jornais diários, além de muitos semanários, para um público leitor que não chegaria à casa dos 100.000. Também a produção de livros experimentaria a mesma expansão, dando o cronista como testemunho dessa cornucópia o fato de numa única semana ter recebido, como oferta, nada menos que 18 livros de poesias.

Na mesma crônica, porém, dá conta do que julga uma singularidade brasileira. Ouçamos o que ele diz:

 

Verdadeira mania, verdadeira doença... Compreender-se-ia bem a nossa superprodução literária, se neste país houvesse leitores. Mas não há. As edições dos livros e folhetos que se publicam não saem das tipografias: o autor manda brochar cem ou duzentos exemplares que dá aos amigos; e o resto da tiragem é dado em pasto às traças vorazes, quando não é vendido a peso, para embrulhar manteiga.

 

Entretanto, o pior seria o vício que dá nome à crônica, que ele descreve assim:

 

Mas o mal não seria grande, se essa mania apenas se manifestasse por meio da publicação contínua e torrencial de folhetos de versos e contos... / O que há de terrível nesse vício é que fazemos literatura em tudo, e a propósito de tudo, em todas as idades, em todas as classes, em todas as profissões. É um horror! Há literatura nas mensagens presidenciais, nos relatórios dos ministros, nos artigos de fundo, nos noticiários, nos anúncios, nos compêndios de matemática, nos tratados de anatomia, nos códices de farmácia (...). 

 

Daí conclui ele: “O fato de existirem tantos jornais em uma cidade em que quase ninguém lê jornais, - é uma das consequências desse vício literário”. E ainda: “Mas, enfim, quem lê todos esses jornais? Lemo-los nós, que os fazemos, - assim como também os livros de versos são lidos pelos autores.”

E em seguida insiste na necessidade de criar um público leitor, instruído, que garanta o futuro da nação.

Ora, Bilac tinha e não tinha razão. Tinha, no que concerne ao país como um todo, mas não no que diz respeito ao Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades importantes, pois é certo que de uma forma ou de outra havia público não só para todos esses jornais e livros, mas ainda para uma outra manifestação do “vício literário”: as conferências pagas, que atraíam muita gente e propiciavam bons recursos a Bilac e seus contemporâneos. Ou seja, mais do haver um público, havia um público fiel e pagante. 

Tanto que o poeta registrou o seguinte, como corrigindo-se a si mesmo, dois anos depois, em 3 de outubro de 1907, num discurso intitulado “Sobre a minha geração literária”: 

 

Que fizemos nós? Fizemos isto: transformamos o que era até então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio; estabelecemos um preço para o nosso trabalho, porque fizemos desse trabalho uma necessidade primordial da vida moral e da civilização da nossa terra; [..] tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade, e incorporamo-nos a ela, honrando-nos com a sua companhia e honrando-a com a nossa; e nela nos integramos de tal modo que, hoje, todo o verdadeiro artista é um homem de boa sociedade, pela sua educação civilizada, assim como todo o homem de boa sociedade é um artista, se não pela prática da Arte, ao menos pela cultura artística. Foi isso o que fizemos.[4]

 

E ainda:

 

Aluímos, desmoronamos, pulverizamos a pretensiosa torre de orgulho e de sonho em que o artista queria conservar-se fechado e superior aos outros homens; viemos trabalhar cá em baixo, no seio do formigueiro humano [...], não nos limitamos a adorar e a cultivar a Arte pura, não houve problema social que não nos preocupasse, e, sendo ‘homens de letras’, não deixamos de ser ‘homens’.[5]

 

Ao ler esses trechos, destaca-se o elogio à integração do escritor na sociedade, por meio da sua participação nos debates e na abordagem dos problemas sociais. Destaca-se ainda o elogio da criação de uma identidade entre o público e o escritor, por meio da educação daquele pela ação deste. Por fim, destaca-se o contrário do que a história literária insiste em dizer: que os escritores do seu tempo se recusaram a ficar na famigerada “torre de marfim”.

No que toca à constituição do público para a literatura, quando consideramos a obra de Bilac, é digno de nota o empenho do poeta nas questões educacionais, seja pela redação de livros a utilizar na educação básica – poesias e teatro infantis, livro de leitura escolar, letras de hinos etc.[6] –, seja por meio de conferências, discursos e artigos na imprensa periódica.

No que diz respeito à sua atuação de publicista, o conceito chave para Bilac é o mesmo que no elogio da sua geração: a integração. Quando lemos extensamente os seus textos de intervenção, percebemos que sempre trabalhou com um só objetivo, qual seja buscar a criação de uma norma civilizacional comum, um substrato cultural básico que permitisse a construção de uma nação republicana e a manutenção da unidade do país.

E qual era o inimigo contra que se batia o publicista? Qual o perigo que procurava conjurar, e quais os sintomas que lhe mostravam que se tratava de uma ameaça real?

Para responder a essa questão, devemos lembrar-nos de que, na passagem do Império para a República, não foram poucos os que pensaram e sentiram como Eça de Queirós, ídolo confesso de Bilac. Numa crônica publicada logo que os telegramas anunciaram a proclamação da República, Eça refletia sobre o que sucederia ao nosso país com o fim da ação unificadora da Coroa: 

 

Com o Império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil. Este nome de Brasil que começava a ter grandeza, e para nós Portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha geografia política. Daqui a pouco, o que foi o império estará fracionado em repúblicas independentes, de maior ou menor importância.[7]

 

O temor de que se cumprisse um dia a profecia do romancista parece ter acompanhado Bilac ao longo dos anos em que se empenhou pela construção da República. Nos últimos tempos, numa conferência pronunciada no Clube Militar, já em plena Guerra, verbaliza-o claramente:

 

O que me aterra é a possiblidade do desmembramento. Amedronta-me esse espetáculo: este imenso território, povoado por mais de vinte e cinco milhões de homens, que não são continuamente ligados por intensas correntes de apoio e de acordo, pelo mesmo ideal, pela educação cívica, pela coesão militar [...][8]

 

Ao longo de toda a sua campanha patriótica, Bilac congrega as elites instruídas para o trabalho de manutenção da unidade nacional. Os perigos são vários, num país cujas partes vivem tempos históricos diferenciados, mas dois deles lhe aparecem como mais graves: o analfabetismo e a constituição, pelo interior do Brasil, de quistos linguísticos e culturais, alemães e italianos

Basta ler extensamente suas conferências e discursos para constatar que suas campanhas cívicas tinham o mesmo objetivo que sua ação enquanto escritor: fabricar as normas do convívio social, criar a civilização brasileira e mantê-la unida tal como veio do Império. Esse é o sentido último de sua campanha pelo alistamento militar obrigatório: obrigar o cidadão a usar a língua portuguesa; além de adquirir civilidade, com hábitos regulares de higiene, e receber educação fundamental.[9]

Pensemos agora quem era esse público recentemente criado no Brasil, desde o fim do Império e, principalmente, no período republicano.

Era basicamente a nascente classe média, os funcionários públicos, os empregados do comércio e os profissionais liberais. Nas pequenas cidades do interior, a farmácia – como sabemos por Monteiro Lobato e também por Leo Vaz, em O professor Jeremias (1920) – era um centro de encontros intelectuais e inclusive de venda de livros. Nas pensões das capitais, os aspirantes a funcionários públicos e os escreventes e empregados do comércio se ilustravam em movimentados serões, que vemos otimamente descritos no romance Gente moça (escrito em 1922), de David Antunes. Neles discutia-se de tudo: literatura, política, filosofia e gramática. 

Nos primeiros anos da República, aliás, a questão da norma linguística ocupava um lugar central na intelectualidade. O caso emblemático, aqui, é o do parecer de Rui Barbosa ao projeto de Código Civil, redigido por Clóvis Beviláqua. Rui demorou dois anos, de 1900 a 1902, para redigi-lo. Quando finalmente o deu a público, constatou-se que nele não havia nenhuma palavra sobre o conteúdo jurídico, técnico ou de princípios do projeto. O Águia de Haia revirou o projeto de ponta a ponta, mas só debateu regência, concordância e cacofonia. Seu parecer gerou imensa polêmica, e contribuiu para ao atraso na promulgação do Código, que só foi feita em 1916. Mas não era apenas um evento idiossincrático: as resenhas de livros também muito frequentemente descambavam em debates e ofensas sobre crimes gramaticais ou deslizes métricos. 

Na verdade, a arte do bem dizer e do bem escrever era uma obsessão nacional, e seu valor de mercado era grande. Dominar a norma culta e conhecer literatura eram um capital cultural a conquistar para a colocação no mercado da pequena classe média ou para a ascensão social da classe média alta, nos cargos superiores do funcionalismo, porque numa seleção para emprego mais qualificado a prova de redação era sempre da maior importância (muitas vezes era a única prova que de fato decidia). E ser correspondente comercial, por exemplo, era um dos poucos caminhos para deixar a dura condição operária.[10]

A intelectualidade brasileira buscou, desde os primeiros tempos republicanos, além da educação das massas, a institucionalização das letras. O marco decisivo foi a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, que sob a presidência de Machado de Assis solidificou um padrão de gosto e buscou dignificar o estatuto do homem de letras, zelando pela sua separação da boêmia, como mostra a recusa a aceitar como membros duas figuras notáveis do tempo: Emílio de Menezes e Lima Barreto.

Para um olhar desapaixonado, é impossível não constatar, nos primeiros tempos republicanos, que o sistema literário (nos termos de Antonio Candido) atingia um ponto de perfeita funcionalidade. 

Lembremos mais uma vez a sua definição. Para que exista literatura como sistema é preciso: a) “a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel”; b) “um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público”; e c) “um mecanismo receptor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos)”. 

Diz ainda o crítico: 

 

quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária (...) uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar.

 

Esses três elementos são frequentemente banalizados como autor-obra-público, o que seria um truísmo, pois desde que há literatura há autores (e até mesmo um conjunto de produtores, como as academias setecentistas), receptores (que pode ser o círculo alargado dos produtores ou um público mais variado), e obras. O que Candido diz, entretanto, não é tão banal. Ele pensa em código, em estilos constituídos. Mais adiante no texto, distingue o período de “manifestações literárias” por ser um no qual falta a “elaboração de uma linguagem própria e o interesse pelas obras”.

Ora, se houve um período no qual esses três elementos – especialmente o terceiro, a linguagem própria e comum – existiram plenamente, esse período é aquele em que viveu Olavo Bilac. Ou seja, no quadro da Formação, o momento de apogeu do sistema, aquele no qual há, pela primeira vez, um conjunto de produtores identificados – inclusive profissionalmente – como autores, homens de letras, que recebem pelos seus trabalhos e se orgulham disso; um público amplo como nunca antes houve para a poesia, o teatro, a conferência literária etc.; e um código e uma base cultural bem definidos que ligam uns e outros – o momento do apogeu sistêmico, eu dizia, é o Parnasianismo, do qual Machado poeta foi não só um dos maiores expoentes mas também um diretor, lutando bravamente para evitar os exageros da poesia realista e promovendo os poetas de maior pendor parnasiano. 

No entanto, esse Machado, o poeta e o crítico de poesia, o admirador de Antonio Feliciano de Castilho, não parece ter merecido senão o silêncio de Candido. Mesmo no livro de recorte didático que escreveu com José Aderaldo Castelo, o Machado-poeta não merece mais do que três linhas, e não tem nenhum poema transcrito. A completar o quadro, nesse mesmo livro didático (Presença da literatura brasileira), o momento parnasiano é repetidamente descrito como medíocre, tendo inclusive o seu caráter sistêmico recebido uma coloração negativa. Tanto no que diz respeito aos produtores, quanto ao código, e ainda no que toca ao público. Os produtores: 

 

Tomados no conjunto, os nossos parnasianos parecem um grupo talentoso e sem gênio, realizando frequentemente uma obra superficial, própria de versejador, mais que de poeta, e pouco adequada para exprimir os verdadeiros caminhos da poesia.

 

O código: 

 

Quanto à língua, buscaram uma correção gramatical não despida de pedantismo, eivando a sua obra de um tom acadêmico e professoral, por vezes bastante desagradável. (...) e é ainda como parnasianos disciplinados que os encontramos no verso sentencioso, filosofante e geralmente muito banal, que foi do agrado de todos eles. 

 

Já o público não sai melhor nessa pintura. Por exemplo, eis como explicam o sucesso avassalador de Bilac: 

 

Idolatrado em vida, Bilac permaneceu como o poeta do gosto médio, e mesmo medíocre, sofrendo não apenas o desgaste dos que representam com demasiada fidelidade uma corrente literária, mas o descrédito que o Modernismo lançou sobre os parnasianos em geral.

 

O próprio Candido, entretanto, num conhecido texto sobre a literatura e a cultura entre 1900 e 1945, escreveu sobre o período que antecede o Modernismo o seguinte: “Uma literatura [...] que, de 1900 a 1925 teve o seu grande, de certo modo único período de funcionamento bem ajustado”. 

Aí está, portanto, a admissão do momento de esplendor sistêmico. Mas a ela se segue imediatamente a ressalva do nível: “As letras, o público burguês e o mundo oficial se entrosavam numa harmoniosa mediania”.

Não creio estar sendo injusto com Antonio Candido se disser que nesse mesmo texto, escrito em 1955, o desprezível gosto médio, que lhe parecia continuar parnasiano ou algo assemelhado, satisfeito pela denominada Geração de 45, lhe surgia como persistente antagonista, por antimodernista. Por fim, não penso que Candido tenha narrado a sua história a partir, como ele disse, do ângulo dos primeiros românticos. Ele a narrou a partir do ângulo modernista. Mais exatamente, do ângulo da versão marioandradina do Modernismo paulista.

Alfredo Bosi, por sua vez, treslendo ou ignorando o empenho modernizador e o patriotismo ativo de Bilac, via nele apenas o representante de um “meufanismo estático e vazio, amante da tradição pela tradição considerada em si mesma como beleza”.[11] Já no que toca à poesia, retoma o ponto de Antonio Candido, mas agora produzindo uma inversão interessante. Eis: 

Os temas que versou com mais assiduidade [...] ajustavam-se bem a esse traço exterior e retórico do seu modo de ser artístico; e deram-lhe leitores fiéis que representavam o gosto das gerações resistentes ao impacto modernista.”[12]

 Ou seja, se para Candido o sucesso de Bilac se explicaria por ele atender ao gosto médio da pequena burguesia semiculta, agora, para Bosi, a sua sobrevivência como poeta é, ela mesma, atestado da persistência de um público imune à novidade modernista. Gostar de Bilac, assim, era incorrer não só em gosto pouco sofisticado, mas ainda em passadismo e resistência ao novo.

Felizmente ao estudioso de hoje parecem desprovidas de base e sentido afirmações como esta, extraída de uma resenha que o crítico modernista Sérgio Milliet escreveu, em 1944, sobre uma biografia de Bilac:

 

[...] o que caracteriza esses literatos boêmios do início da República é o seu total isolamento da vida da nação, o seu exaltado bovarismo. Vivem no mundo da lua, mais em Paris que no Brasil, e alheios aos fatos nacionais. Cultivam com carinhos absurdos uma planta de estufa em meio ao carrascal e à miséria do país. Transplantam para o Rio, numa cópia servil, a boemia parisiense, com seu espírito, suas preocupações mundanas, suas lutas literárias.[13]

 

A afirmação é tão descolada da realidade que ou devemos concluir pela ignorância profunda de Milliet sobre o período, ou creditar erro tão flagrante à má fé. Seja qual for o caso aqui, o certo é que esse tipo de desinformação fez fortuna, especialmente no nível mais baixo da reflexão intelectual, que são os manuais escolares.[14]

No que toca à verdade histórica, tudo se passa ao contrário do que afirmou Milliet. Basta ler extensivamente as suas crônicas para constatar que nenhum assunto moderno lhe era estranho: desde as reformas urbanas do Rio de Janeiro ao automóvel, passando pela questão escravista, pelo destino dos negros após a Abolição, pelo empenho em campanhas nacionais em favor da língua e da cultura brasileira, pela criação de material destinado à educação infantil e pelos esforços de difusão do conhecimento.[15] Por isso sempre me parece atestado de indigência ou preguiça intelectual a reafirmação de lugares-comuns sobre a alienação parnasiana, ou, pior ainda, a acusação de elitismo tão levianamente brandida contra Bilac e seus contemporâneos. 

O livro de Carey aqui pode funcionar como estímulo ao pensamento, pois ao descrever a repulsa intelectual pela massa aponta para uma questão importante: qual seja a seleção pela linguagem e pelas referências culturais mobilizadas pelos textos. A mim me parece que o Modernismo, alimentado nas estufas da alta burguesia financeira e cafeicultora paulista, integra o movimento geral que ele tão agudamente identificou.

Sabemos hoje que as vaias do Municipal, durante as sessões da Semana, foram de claques contratadas ou combinadas para produzir o escândalo que se supunha essencial às vanguardas. E sabemos mais: que a Semana foi basicamente um evento musical e que nenhum texto realmente modernista foi lido e vaiado ali. Isso não anula, antes confirma, o desejo de distanciamento dos criadores em relação à massa indiferenciada, provocando ou simulando uma hostilidade no que tenderia a ser – como parece ter sido – indiferença ao evento.[16]

Eu creio, entretanto, que se a massa tivesse ido vaiar a Semana o teria feito por se sentir traída, que os apupos seriam a voz daqueles que integraram o sistema, acumularam capital cultural a duras penas e depois se viram ridicularizados por um grupo de artistas patrocinado pela riqueza paulista, empenhados em achincalhar os seus valores, e para os quais a experiência de uma viagem à Europa parecia valer mais do que os esforços de estudar a gramática e a versificação.

Ao contrário do que narra a vulgata modernista em que se tornaram boa parte da história literária e quase todos os livros de pendor didático, a Torre de Marfim parece uma metáfora muito mais adequada para descrever o ambiente dos primeiros modernistas, no seu voluntário distanciamento do público disponível, do que para descrever os autores parnasianos, esses sim integrados ao seu público e empenhados no debate dos problemas de momento, regionais ou nacionais. Torre de Marfim, nesse sentido, eram os salões da alta burguesia cafeeira, onde a última moda de Paris campeava tanto na roupa e na mobília, quanto na literatura.

Ou seja, eu penso que grande parte da literatura modernista – especialmente a de primeira hora – foi também feita contra o leitor comum e seu cabedal cultural, em nome de uma suposta aristocracia, seletiva e up to date com os movimentos da literatura europeia. 

Ler um soneto de Bilac era uma operação assente num código ao alcance do público, que podia verificar e aferir o desempenho do artista, o seu domínio da arte. Ler os poemas do Pau-Brasil implicava operações culturais menos acessíveis, mais dependentes do conhecimento adquirido em línguas estrangeiras ou em viagens e frequentação de ambientes selecionados. 

Em suma, penso que, tal como Antonio Candido viu – mas avaliou em clave positiva – os modernistas recusaram o público disponível e buscaram criar um outro, à sua imagem e semelhança. Independente, aqui, de juízo de valor, penso que no limite é razoável entender essa oposição entre os modernistas e o gosto público, o gosto médio do tempo, como uma recusa à integração social da literatura. Um esforço não de inclusão da massa semialfabetizada ou dos aspirantes à cultura letrada, mas de exclusão deles em nome do gosto refinado de uma aristocracia imaginária.

Nesse sentido, foi mesmo um movimento de elite, contra as massas que se instruíam. Os efeitos dessa proposta de elitização, e os seus defeitos literários, se encontram em muitas obras. O que é natural, mas não posso agora desenvolver. O que não é razoável é que a historiografia herde as simplificações ou desinformação do combate modernista e as operacionalize acriticamente, como se lhe fosse forçoso ou enriquecedor tomar partido, à custa de inverdades históricas, num embate que se encerrou há mais de cem anos. 

Principalmente porque a presença de Bilac na formação dos principais poetas modernistas é hoje evidente. Manuel Bandeira, por exemplo, em Itinerário de Pasárgada, afirma que sabia de cor todos os sonetos de “Via Láctea”.[17] Já Carlos Drummond de Andrade confessa: 

 

Soneto de Bilac era alguma coisa como a vária do Jornal do Comércio [...] O mestre falou? Turibulemos. Sempre amei Bilac, embora não o confessasse no período modernista; é riqueza da minha infância, nas páginas da Careta, ilustradas por J. Carlos. [...] Essas revistas, lidas, relidas, alisadas no excelente papel couché, fizeram minha iniciação literária, muito imperfeita mas decisiva.[18]

 

O próprio Mário de Andrade, no artigo da série “Mestres do passado”, louva a poesia anterior de Bilac. Suas baterias estão ali voltadas para o livro Tarde, sobre o qual faz um exercício crítico de demolição a que pouca poesia resistiria, se alguma.

Infelizmente, pouca coisa há a contrapor, na atual fortuna crítica, à desinteligência sistemática da dimensão do homem e, principalmente, da arte poética de Olavo Bilac.[19] Poucos são os trabalhos compreensivos e despidos dos preconceitos modernistas, como o assinado por Ivan Junqueira, “Bilac: Versemaker”.[20] E mesmo a presença de Bilac no horizonte poético da língua portuguesa ainda está por definir com mais precisão e imparcialidade. Um primeiro passo nesse sentido foi dado por outro Ivan, Ivan Teixeira, no prefácio que redigiu para a edição da poesia de Bilac pela Martins Fontes.[21]

Atentando para a intenção épica de poemas como O caçador de esmeraldas e, sobretudo, Sagres, e mapeando a presença de Bilac em Portugal, onde foi recebido com grandes homenagens pela intelectualidade, Ivan Teixeira sugere uma aproximação entre o poeta brasileiro e Fernando Pessoa, que lhe seria tributário. A sugestão pode parecer despropositada, a um primeiro olhar, dadas a dimensão e a projeção que a obra poética de cada um deles adquiriu, mas os argumentos são razoáveis e valem a pena de serem ponderados. 

De qualquer forma, eu não iria tão longe, retendo das ilações de Ivan Teixeira a ideia de que Bilac planejava um poema total, um poema que fosse, para o Brasil, o que Os Lusíadas foram para Portugal.

Nesse sentido, Bilac e Pessoa têm mesmo um ponto em comum pois enquanto este almejava ser o Super-Camões, tendo no final da vida reunido poemas compostos esparsamente para que formassem um poema épico lacunar e esotérico, Bilac, numa das suas derradeiras conferências, dizia:

 

Sonho às vezes, à noite, quando fico sozinho, com os meus pensamentos, com a inquietação de minha alma, com os meus sustos e as minhas esperanças de brasileiro, um grande poema, o poema que um grande poeta escreverá daqui a cem ou duzentos anos sobre o Brasil. A nossa pátria, a nossa língua, a nossa raça terão um dia a sua epopeia definitiva, complemento dos Lusíadas. [22]

 

Afirmando em seguida que a epopeia portuguesa celebra a expansão e a conquista, diz que “o domínio dos mares, os tesouros da Ásia, e o fulgor do império universal desapareceram com o tempo”, mas a grande obra portuguesa ainda está por celebrar:

 

... o que ficou foi isto, que é incomparavelmente superior àquilo que se poderia imaginar: uma pátria nova e imensa [...] - e hoje habitada por mais de vinte milhões, e um dia habitada por cem milhões ou mais de cem milhões de homens, falando a mesma língua [...] Esta criação da nossa raça, este verdadeiro milagre exige um poema, que será a continuação e o remate dos Lusíadas. Já vos disse que este poema só será feito daqui a alguns séculos. Os grandes poetas, supercriadores de beleza, só aparecem de séculos em séculos. [...] O Brasil terá o seu grande poeta e o seu poema definitivo, quando tiver o seu fastígio nacional. Daqui a cem anos, daqui a duzentos ou trezentos anos – quem sabe? – o gênio de Camões será reencarnado neste outro lado do Atlântico![23]

 

A modéstia e as advertências quanto ao tempo ainda por vir não o impedem, entretanto, de confessar: 

 

“também os pequenos poetas, como eu, possuem um pouco do misterioso condão da profecia... Posso aqui imaginar, convosco, em suas grandes linhas, esse poema futuro.”

 

O que se segue é uma descrição do plano do poema épico futuro, cujos momentos principais o poeta cristaliza em poemas, que vai transcrevendo, incluindo aí alguns dos mais famosos sonetos de seu último livro, Tarde.

Em outra conferência, que tem o mesmo título que o livro póstumo, Bilac explora outro veio: lê o seu livro como uma série de reflexões sobre o amadurecimento e a velhice, configurando uma espécie de testamento poético.

Embora vários dos sonetos que o compõem estejam entre os mais celebrados, inclusive por Mario de Andrade no célebre artigo, o certo é que as ressalvas demolidoras que o autor de Macunaíma fez ao livro (procedimentos repetitivos, busca da chave de ouro e efeitos fáceis, etc.) terminaram por determinar quase toda a crítica posterior, projetando inclusive sobre a totalidade da poesia de Bilac os defeitos que ele encontrou no seu último livro. O que é menos um atestado da força da crítica de Mário do que uma prova da fraqueza das que vieram depois dele.

O que faltou, e ainda falta, do meu ponto de vista, é não só deixar de subsumir (a partir do texto de Mário) a poesia de Bilac nos sonetos de seu último livro, mas ainda – e principalmente – colocar esse mesmo livro em perspectiva. Tarde é uma coletânea, uma reunião da produção sonetística madura de Olavo Bilac. Sua leitura revela a grande perícia do poeta, seu extremo virtuosismo no domínio da técnica. Não faz sentido exigir dele que se conforme aos novos tempos, definidos pelo fim da primeira Grande Guerra, que ele mal pôde começar a viver, ou que represente uma ruptura com a sua maneira pregressa, ou ainda que traga alguma que súbita inovação nos temas preferenciais do poeta ou na forma de abordagem deles. 

De minha parte, prefiro lê-lo nos seus momentos felizes, que são muitos, tendo em vista o duplo desenho ensaiado pelo próprio poeta nos textos há pouco referidos: Tarde nos traz peças que podem ser lidas como partes de um poema nacional de desenho fragmentário e sopro épico, nos moldes de Mensagem; e ao mesmo tempo nos põe em presença de uma suma da poesia de Bilac, à guisa de testamento poético.

Se me for permitido expressar um desejo e uma esperança, para terminar esta fala, serão estes: que a poesia de Bilac possa, num futuro próximo, ser lida no que ela tem de melhor e no quadro do seu tempo, e que as novas gerações de professores e críticos literários possam finalmente, ao tratar do Parnasianismo, escapar da repetição anacrônica e preguiçosa da visada modernista, que é o que até hoje têm feito seus herdeiros presumidos, diretos e indiretos. 

 



[1] [1]Eça de Queirós. “Prefácio aos Azulejos do Conde de Arnoso”. Em Obra Completa (org. Beatriz Berrini), vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1791-1803.

[2] É certo que a implementação do que foi aprovado em lei não foi imediata, mas a promulgação da lei, em si mesma, atesta o reconhecimento da necessidade de alfabetizar a população.

[3] Segundo Simões Junior, de 1900 a 1920 o número de pessoas aptas e ler e escrever no Brasil passou de 3.380.451 para 6.155.567. Como ele observa, em termos estatísticos o quadro foi de estagnação, já que esses números representavam apenas 35% de alfabetizados dos habitantes do país. De minha parte, penso que a alfabetização não foi uniforme no Brasil todo, de modo que a massa leitora das grandes cidades pode ter aumentado significativamente. Cf. Alvaro Santos Simões Junior. Bilac vivo. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017, p. 138.

 

[4] Bilac, Osvaldo. Obra reunida. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996, pp. 892.

[5] Id., Ib., p. 893.

[6] Contos pátrios (1894, com Coelho Neto), A terra fluminense (1898, com Coelho Neto), Prática da Língua Portuguesa (1899, com Manuel Bomfim), Poesias infantis (1904), Teatro infantil (1905, com Coelho Neto), Através do Brasil (1910, com Manuel Bomfim) e A pátria brasileira (1911, com Coelho Neto). Além disso, ampliou a Gramática elementar e lições progressivas de composição (1882), de Hilário Ribeiro e redigiu um Tratado de versificação (1905, com Guimarães Passos). Com Manuel Bomfim escreveu ainda, no Livro de leitura para o curso complementar das escolas primárias (1901), uma apresentação dos autores “modernos” brasileiros. Também ampliou a Pequena história do Brasil (1907), de Joaquim Maria de Lacerda, e atualizou as Lições de História do Brasil para uso das escolas de instrução primária (1918), de Joaquim Manuel de Macedo.

 

[7] Publicada orginalmente na Revista de Portugal. Repr. in: Obras. Porto, Lello & Irmão, s/d, vol. III, pp. 937-941.

[8] “Ao exército nacional”. In: Últimas conferências e discursos. In: Obra reunida, cit.., pp. 921. A conferência é de 1915.

[9] É importante, nesse assunto, não incorrer em anacronismo. Por conta do golpe militar de 1964, as gerações que se formaram sob a ditadura terminaram por projetar sobre Bilac e sua campanha a justa aversão pelo exército e pelo militarismo. Entretanto, Bilac nunca foi militarista, tendo sido inclusive, como se saber, perseguido por Floriano Peixoto. Na conferência “Nec nos labor iste gravabit!”, lida em São Paulo, em 2 de abril de 1917, celebrando a implantação do serviço militar obrigatório por sorteio, Bilac escrevia: “dos sorteados, que vieram dos mais distantes pontos do Brasil, muitos são analfabetos, ignorantes da nossa geografia e da nossa história, leigos na vida administrativa, econômica e política do país, inconscientes do seu valor moral como cidadãos.” Cita, então, para comprovar o real estado de coisa no interior do país os dados referentes aos alistados na cidade de São Gabriel, no Rio Grande do Sul: “60% não tinham a mais ligeira noção sobre a nossa grandeza territorial; 46,66% desconheciam a nossa forma de governo; 73,33% eram analfabetos; 73,33% ignoravam a residência oficial do Presidente da República; 86,66% nunca tinham ouvido o nome do Barão de Rio Branco. E dos brasileiros natos, de origem alemã, 61,53% não falavam nem entendiam uma só palavra do nosso idioma”. In: Últimas conferências e discursos. In: Obra reunida, cit., p. 881.

[10] Por conta dessa valorização da norma e da arte da escrita, um poeta como Bilac gozava de uma fama hoje só comparável à de um músico ou ator de novela. Dois episódios pitorescos, de petite histoire, nos permitem aquilatá-la. O primeiro: o poeta certa vez entrou numa perfumaria do Rio de Janeiro para reabastecer-se de uma colônia que, num gesto teatral, tornara famosa ao derramá-la sobre o corpo de um companheiro de geração, na hora do enterro. O atendente de balcão, que era um rapazinho recém-chegado de Minas Gerais, mal ouviu o nome da colônia, associando-a ao poeta e sem saber que estava em presença do próprio, passou a derreter-se em elogios ao seu ídolo, que ainda não pudera ver pessoalmente... O segundo: ia o poeta pela Praça Martim Afonso com outros literatos, pouco tempo depois de ter publicado na A Semana um dos seus sonetos mais famosos, quando foi abalroado por um homem que lhe pisou brutalmente um pé. Depois da troca de alguns insultos, advertido que se tratava de Bilac, o atropelador logo mudou o tratamento: pediu-lhe perdão, aludiu com piada ao soneto d’A Semana, dizendo que o poeta estaria não só ouvindo, mas também vendo estrelas, e terminou por despedir-se chamando ao poeta “ave augusta da nossa poesia”. 

 

[11] Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. (2ª ed.) São Paulo, Cultrix, 1975, p. 256.

[12] Id., Ib., p. 256.

[13] Reproduzido em: Olavo Bilac, Registro – crônicas da Belle Époque carioca. Campinas: Editora da Unicamp, 2011, p. 20.

[14] Ver a propósito a crítica à posição de Milliet o comentário de Alvaro Santos Simões Jr. “Introdução”, em “A Belle Époque nas crônicas de Olavo Bilac” in: Registro – crônicas da Belle Époque carioca, cit.

[15] Ver a propósito os trabalhos de Alvaro Santos Simões Junior, já referidos, e ainda Antonio Dimas. Bilac, o jornalista. São Paulo: IMESP, EDUSP; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

[16] Ver, a propósito, o estudo de Antonio Carlos Secchin, “A Academia e o Modernismo: 22 e depois”, disponível em https://www.facebook.com/share/p/B5bUEBW3A8ewzK5L/ . 

[17] Bandeira, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2009, p. 558.

[18] Carlos Drummond de Andrade. Tempo vida poesia – confissões no rádio. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 17.

[19] Um bom exemplo é a “Introdução geral”, de Alexei Bueno, ao volume Obra reunida. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.

[20] Reproduzido em Olavo Bilac. Obra reunida. Cit.

[21] Bilac, Olavo. Poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[22] Olavo Bilac. “Brasil”. Reproduzida em Obra reunida. Cit., pp. 1006-1015.

[23] A propósito, vale lembrar o que escreveu Fernando Pessoa, em 1912, na revista A Águia, no artigo “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova que não existe no espaço, em naus que são cons­truídas ‘daquilo que os sonhos são feitos’. E o seu ver­dadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante- arremedo, realizar-se-á divinamen­te”. 

 

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Papo meio sério

 

Um dos princípios bem conhecidos do New Criticism, que depois também foi atuante na crítica estruturalista e pós-estruturalista, é a recusa do que se denominou “falácia intencional”. Um texto, diziam, deve ser entendido, estudado e mesmo avaliado sem recurso à intenção de quem o criou. Sem, na verdade, sequer pressupor que a intenção possa ter alguma importância. Junto com a “falácia intencional” vinha a crítica a outra falácia, a emotiva: um texto não deveria ser lido em função da emoção que o autor teria sentido e que o determinaria de alguma forma. O texto é um objeto de linguagem e a atenção dos formalistas estava no jogo dos elementos que o constituem, especialmente nas tensões internas que o organizam. Na época do sarampão estruturalista, o ideal da história literária seria uma história de formas, na qual até mesmo o nome dos autores poderia ser suprimido dos textos alinhados num eixo cronológico.
Mas agora os tempos são outros. Temos máquinas que podem fazer poesia. Máquinas que podem emular estilos e que podem criar objetos textuais complexos. A questão que emerge é: quando lermos um livro de poesia, quando nos aproximarmos de um, vai ser indiferente saber se foi escrito por um ser humano ou por uma máquina? Poderemos ainda orgulhosamente nos apegar ao texto e dizer que a intenção não importa? E poderemos ainda desprezar tão seguramente a ideia de que um texto foi produzido a partir de uma emoção, ou mesmo num momento de emoção? Por fim, será possível sonhar com uma história literária que só leve em conta os textos?
Creio que de agora em diante, com o aprendizado progressivo e rápido das máquinas, a produção de textos bem escritos, bem estruturados, complexos, vai dar saltos sucessivos. Creio mesmo que pode chegar um momento em que não consigamos saber se um autor existe fisicamente ou não. E podemos nos deliciar com poemas produzidos por máquinas. Mas será a mesma coisa?
Dizendo de outra forma, apesar dos ditames da teoria, mesmo nós, os profissionais das Letras, quando nos aproximamos de um poema pedimos apenas formas, ritmos, tensões internas, harmonias ou dissonâncias? Estaremos preparados para prescindir do contrabando da aposta na intenção e na emoção originária?
Uma frase banalizada é “o estilo é o homem”. Mas e quando o estilo puder ser uma máquina, ainda será estilo? Em que sentido?
É um assunto sério, mas talvez a melhor forma de lidar com ele agora seja com o humor e a piada da redução ao absurdo, como nós estamos fazendo aqui nesta página há alguns dias, mesmo que, apesar da piada, possamos gerar só cansaço com a monotonia do assunto.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Saudação

 Creio que esta será a última provocação no tópico (mas não só...)


Numa língua que conheço mal ou da qual tenho apenas rudimentos, prefiro ler traduções literais de poemas, ao lado do texto original.
Nisso, o meu modelo – eleito ainda na adolescência – foi a antologia de Pablo Neruda publicada pela Editora Sabiá: o texto do original em versos, no corpo da página, ocupando o lugar principal; em rodapé, humilde, em texto corrido, com a quebra dos versos marcada por um sinal gráfico, a tradução plana, literal. Foi o modelo que sempre depois tentei conseguir de poetas que me interessavam, ainda que a prosa fosse não em português, mas em espanhol ou francês.
Porque em línguas ocidentais não é difícil oralizar e perceber o ritmo e as sonoridades. E tendo o texto em prosa literal, usufruir das duas coisas: a sucessão das palavras, imagens e conceitos, e a sucessão, a repetição e a variação dos sons e mesmo a disposição das letras. Por isso mesmo, quando organizei o livro “Haikai – antologia e história”, tratei de fornecer ao leitor a tradução palavra por palavra ao lado de outra, mais escorreita, mas ainda assim literal.
Já as traduções que buscam recuperar aquilo que em certa época se denominou “função poética”, ou – como se diz - recriar ou transcriar o original, poucas vezes me atraem ou convencem. Primeiro porque não sei o que poderia haver a ganhar em recuperar uma rima à custa da mudança do registro da palavra; ou uma aliteração, alterando a imagem; ou um acoplamento sintático de verso a outro quebrando a relação determinada entre frase e verso, ou provocando inversões que não há no texto original.
Para mim, desde que eu consiga ver isso tudo no original, e juntar o que vejo (ou ouço) com o que a tradução mais elementar me mostra, já está bom. E se o tradutor do texto em prosa generosamente acrescentar notas para esclarecer o que achar que merece ser esclarecido nas opções que fez, melhor ainda.
É o meu limite. E se na poesia lírica prefiro a tradução literal, acompanhada do original, mais ainda na tradução da épica tenho predileção pela prosa o mais possível literal.
Por exemplo, eu gostei de ler a Ilíada, na adolescência, na tradução em versos de Carlos Alberto Nunes, que me seduziu pelo ritmo. Tanto que, enquanto a lia, qualquer trabalho escolar ou mesmo carta, terminava por se conformar ao batidão de “logo que aurora de dedos de rosa surgiu matutina” ou “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas” – versos que posso estar referindo errados, mas que se fixaram assim na minha memória. Mas estou seguro de que preferiria a ter lido desde sempre numa boa tradução em prosa corrente.
Assim como preferi, depois de ter lido a Eneida em versos, a prosa da tradução de Giulio Davide Leoni e Neyde Ramos de Assis. Foi essa a Eneida que mais me satisfez e satisfaz como leitor, ao longo do tempo, e foi ela a que usei quando, anos depois, pude compreender um pouco de latim e assim ler em paralelo. Por isso, na escala das minhas preferências, traduções como as Odorico e seus descendentes ocupam um lugar bastante modesto. Há quem garanta que ali se recupera muito da sonoridade ou do sentido das palavras do grego, e do latim. Não sei avaliar, e penso que possam ser, por isso mesmo, bom material de estudo. Mas a verdade é que nunca consegui ler nenhuma delas de modo extensivo, só por amostragem – e ainda assim sem entusiasmo nem prazer.
Mas me ocorreu hoje esse tópico por conta da disponibilidade de máquinas inteligentes, capazes de traduzir muito melhor do que o velho Google Tradutor.

Então me lembrei deste poema de Mallarmé:

Salut

Au seul souci de voyager
Outre une Inde splendide et trouble –
Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double
Comme sur quelque vergue bas
Plongeante avec la caravelle
Ecumait toujours en ébats
Un oiseau d’annonce nouvelle
Qui criait monotonement
Sans que la barre ne varie
Un inutile gisement
Nuit, désespoir et pierrerie
Par son chant reflété jusqu’au
Sourire du pâle Vasco.

A mim esse poema interessou sempre por dois motivos: por ser de fato um belo sonetilho, em versos de 8 sílabas; e por ter sido composto quando dos quatrocentos anos da viagem de Vasco da Gama, no mesmo ano, portanto, em que Camilo Pessanha publica o díptico “San Gabriel”.

A tradução mais conhecida talvez seja esta, de Augusto de Campos:

Brinde

À só tenção de ir além de
Uma Índia em sombras e sobras
− Seja este brinde que te rende
O tempo, cabo que ao fim dobras

Como sobre a vela da nave
Mergulhando com a caravela
Espumante a ávida ave
Da novidade sempre vela

A cantar com monotonia
Sem jamais volver o timão
Uma jazida ali à mão
Noite demência e pedraria

Que se reflete pelo casco
Ao riso pálido de Vasco.

Gosto muito pouco do resultado. Primeiro porque é aquele tipo de tradução em que, em nome de uma aliteração ou uma rima, se sacrifica uma parte importante do sentido, algo que parece constitutivo do seu sentido.

O poema é um brinde a uma coisa e não a outra. Mallarmé brinda à viagem, não ao objetivo dela. À viagem e não à conquista de um lugar luxuoso e turvo. Brinda apenas à inquietação de viajar, a uma viagem portanto além da Índia. O brinde ocupa os dois primeiros versos. O terceiro se refere ao próprio brinde e diz que o fato de ser feito quando é feito o torna uma espécie de mensageiro do tempo. Vasco da Gama dobrou o tempo, ultrapassou-o, e não só ao Cabo das Tormentas.

Na tradução de Campos, o tempo é que rende (?) um brinde ao navegador. E a Índia comparece agora “em sombras e sobras”, o que não ecoa mais a atração do luxo e a confusão que o verso de Mallarmé lhe atribuía como atributos. É a fissura da aliteração, embora não haja aliteração nesses versos. É, portanto, o tal perde-ganha: há uma aliteração em outro verso, que é irrecuperável, então se compensa onde não há.

Há outros problemas, do meu talvez limitado ponto de vista. A ave da nova anunciação, ou seja, a anunciação de uma nova era ou novo mundo, vira uma ave da novidade, que é sempre ávida – talvez de mais novidade. Ou de mais aliteração.

Também fica um pouco obscurecida a ideia de que nada fazia o navio perder o rumo (esse é um dos sentidos da palavra gisement – que é ainda jazida e jazigo – o ângulo formado entre o eixo longitudinal (ou linha de proa) de um navio e a direção de um ponto externo (fixo ou móvel). Na versão de Augusto, em vez de não desviar nada do rumo pré-traçado, temos “volver”, que dá ideia de retorno ou mudança voluntária de rumo. Tampouco gosto do “casco” rimando com Vasco, mas isso já é o de menos.

Mário Faustino fez uma tradução mais literal (tenho anotada num caderno, mas não encontro o livro, por isso desculpem alguma imprecisão):

Com a única inquietação de viajar
Para além de uma Índia esplêndida e perturbada -
Seja esta saudação o mensageiro do tempo
Cabo que tua popa dobra

Como certa verga baixa
“Mergulhante” junto com a caravela
Espumava sempre em folguedos
Um pássaro de nova anunciação

Que apregoava monotonamente
Sem que variasse a cana do leme
Um inútil jazigo
Noite desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

Por fim, uma tradução de máquina. A de Claude.ai:

Saudação

Apenas com ânsia de viajar
Além de uma Índia esplêndida e turva -
Esta saudação seja a mensageira
Do tempo, cabo que tua popa dobra

Como sobre alguma verga baixa
Mergulhando com a caravela
Espumava sempre em movimentos
Um pássaro de novo anúncio

Que gritava monotonamente
Sem que o leme variasse
Um inútil jazigo
Noite, desespero e pedraria

Por seu canto refletido até
O sorriso do pálido Vasco.

Prefiro ler na de Faustino, embora o primeiro verso me pareça melhor na de Campos. Mas para aqueles poemas que eu não puder ler no original e que Faustino ou outro que ensaie uma tradução literal não traduziu, é bom saber que agora tenho a tradução artificial.