quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Memórias: Danilo Barreiros


O que vem a seguir, em três partes, é um extrato de um texto mais longo e nunca publicado.

Enviei-o a Pedro Barreiros, quando ele começou a redigir a biografia do pai. Enviei junto as cartas nas quais Danilo terminou a narrativa, pois ficou interrompida pela minha volta ao Brasil.

O encontro com ambos, a que se acrescentou depois o conhecimento da mulher de Pedro, Graça, foi uma das grandes alegrias que tive em Portugal.

 

 

I

 

            Em 1989, de passagem por Lisboa, perguntei a vários conhecidos se ainda vivia e se morava em Lisboa o Dr. Danilo Barreiros. Ninguém sabia responder. A única pessoa que com ele estivera ultimamente, disseram-me, andava agora por Macau, em busca dos rastos de Camilo Pessanha para compor uma fotobiografia.

            O homem era para mim uma referência bibliográfica. Tomei certa vez um avião em São Paulo e voei ao Rio de Janeiro para consultar, na Biblioteca Nacional, A paixão chinesa de W. de Moraes. Tinha dele algumas outras notícias, que me levavam a procurá‑lo. Uma, que morara longos anos em Macau, onde convivera com o grande sinólogo José Vicente Jorge, companheiro e professor de Pessanha. Outra, que se casara com uma filha de Jorge, aluna de Pessanha no Liceu de Macau, herdeira de muitas recordações do mestre e de uma bela coleção de arte chinesa do pai.

            Sobre um móvel de canto, na sala de televisão do hotelzinho, estava a lista telefônica. Na letra B, o nome de minha principal bibliografia sobre Wenceslau de Moraes. Telefonei‑lhe, apresentei‑me e desliguei, surpreso, com uma entrevista marcada para segunda‑feira às duas horas da tarde. Era sexta‑feira, e o programa do final de semana era uma festa de touros Tejo acima, em Alcochete.

            Quando voltei dos touros, fui à casa de Danilo Barreiros. Dona Henriqueta, bem-disposta e elegante, abriu‑me a porta do apartamento da rua Coelho da Rocha e entrei em uma sala grande, que tinha ao fundo um retrato de Vicente Jorge e uma infinidade de outros objetos que só aos poucos pude observar com atenção. Enquanto aguardava, entretive‑me com as peças mais impressionantes e que eram, nesta exata ordem, um biombo de madeira escura coberto de baixos-relevos, um console chinês esculpido e um buda sorridente, que segurava um colar de contas. Todo em bronze, Sakhiamuni vinha ladeado por dois leõezinhos simpáticos, gorduchos, de boca escancarada.

            Não terminara ainda com o sino que ficava mais à esquerda e já Danilo Barreiros chegava, maldizendo a ciática que o castigava muito nos últimos dias. Embrulhado em uma espécie de robe‑de‑chambre arroxeado, que mal se acomodava sobre os pijamas largos, pediu logo ao menino ‑‑ que era eu ‑‑ que o ajudasse a se sentar junto à janela, numa cadeira de braços. Ficamos ali por alguns minutos. O motivo de minha visita, sua disposição em me ajudar, a falta de memória de sua mulher... Nisso sobe as escadas um rapaz magricela e miúdo, que vem consultar o advogado Dr. Barreiros sobre um ponto obscuro na interpretação de uma lei. De minha cadeira, agora à vontade para olhar detidamente o sino, a floreira e os pormenores do console, acompanho a exposição do artigo do Código Civil. É uma explanação clara e enxuta e o pequenino advogado ou estudante de Direito em breve se atira pela escadaria abaixo. Como o calor aumentasse muito, deslocamo‑nos para uma outra pequena sala, de mobília mais chinesa e luz mais escassa. Dizendo‑lhe eu que queria saber a sua vida, o porquê de ter ido a Macau e o que vira por lá pouco depois da morte de Pessanha, propôs‑me Danilo Barreiros o seguinte procedimento: ele iria dizendo o que lhe lembrava; eu anotaria o que me interessasse. Acrescentou, enigmaticamente, que nada ocorria por acaso e que, por isso, podia eu ter certeza de que algo me havia levado até ele naquela tarde quente de segunda‑feira; tínhamos uma missão por cumprir.

            Colocado junto à janela, onde havia mais luz, concordei com a primeira ideia. O calor externo estava realmente insuportável. Passaria ali a tarde, ouvindo as lembranças de Danilo Barreiros e logo mais, à noite, iria vagabundear na Baixa.

            Comecei a tomar notas. Disse‑me ele que nascera em 11 de outubro de 1910, em Lisboa, seis dias depois de proclamada a República. O local era a Rua Arco Marquês de Alegrete, na Mouraria, junto à capela. Era filho de Gregório da Costa Barreiros, originário de Trás‑os Montes. Esse Gregório viera muito cedo a Lisboa e ingressara ainda criança na vida artística, com o nome de Eduardo Barreiros. A respeito do pai, disse‑me que nenhum dos dois nomes era correto, porque o segundo era falso e o primeiro deveria ter sido Gregório Barreiro da Costa.

            Não sabia exatamente por que anotava tudo isso, nem por que ele me contava sua história ab‑ovo. Se devíamos chegar a Macau, o caminho seria muito longo, pensei, e não se vai nesse passo horas a fio com uma ciática tão cruel.

            Fui interrompido, quando divagava nessas questões, por uma observação completamente esdrúxula. Danilo Barreiros, olhando‑me fixamente, disse quase gritando: ‑‑ "O senhor é judeu!" Eu me espantei, é claro. Árabe, sem dúvida, por parte de avô. Judeu era novidade. Disse que não, bati a ponta da caneta no caderno, mostrei que estava a postos para anotar. Só faltava dizer: ora, deixe de brincadeiras, Dr. Danilo, tomemos logo o vapor para Macau! Mas ele me lembrou de que nada sucedia por acaso. Disse que meu perfil jamais o enganaria. A linha da testa, o queixo ‑‑ ou era o traçado do nariz? ‑‑ lhe indicavam claramente o sangue judeu em minhas veias. Falava com tal convicção, que me dispus a encarar o assunto. Pus o caderno sobre a mesinha e esperei. Perguntou‑me se tinha ascendência portuguesa. Disse que sim, que minha avó paterna era uma Teresa Barreira, de Trás‑os‑Montes. Apoiado em boa erudição e maior entusiasmo, o Dr. Danilo explicou‑me de chofre nosso obscuro parentesco, pois não havia dúvidas de que éramos marranos fugidos para Trás‑os‑Montes. Explicou‑me, de entremeio, que os enchidos sem carne, de que eu gostava tanto, eram criação dessa gente que para ocultar a origem matava também o seu capado nos dias previstos e pendurava bem à vista os enchidos ‑‑ sem carne, só aparência, para fugir à perseguição. Mostrou‑me a seguir, apoiado em altas especulações genealógicas e etimológicas, que éramos da mesma família e que, mesmo passados tantos anos e muitas gerações, nem por isso deixávamos de ser primos. Primo! Eu que chegara a ele pela lista telefônica era agora gente da casa! Nessa nova condição, fui novamente apresentado à aluna de Camilo Pessanha, que acorrera ao chamado emocionado de meu parente, trazendo com ela uma mulher que também era da família, além de minha colega. Era judia da gema e professora de uma universidade em Tel‑Aviv. Quase em seguida, chegou um neto do Dr. Danilo que era também, consequentemente, meu primo. Depois outro primo, pai deste, médico e pintor, filho de Danilo. Nessa altura, já tínhamos interrompido as lembranças e as anotações. Voltando à sala grande fizemos alguma festa, com uísque e cerveja. Afinal, desde o tempo de D. Manuel I que a família não se reunia! Cheio de emoção e de bebida, saí de casa de meu primo completamente trôpego, sem qualquer outra utilidade por aquele resto de dia que não fosse dormir despachadamente. Nem mesmo pude ir passear na Baixa e beber a brisa do Tejo. Devo ter descido sem acidentes as escadas, porque acordei ainda eufórico e inteiro, na terça‑feira de manhã.

 

 

II

 

            À tarde fui, na mesma hora, visitar os parentes. D. Henriqueta me recebeu com a cara um pouco mais fechada. Desejava por certo que não se repetisse a pândega do dia anterior, temerosa pela saúde e pelos setenta e nove anos do marido. Este já me esperava na saleta. Mal consegui instalar‑me, começou a contar que sua mãe, que se chamava Carolina Alice Nunes, era atriz e tinha dezoito anos quando ele nasceu. Fui anotando os dados e de novo me veio o pensamento de que aquilo não acabaria mais. Estávamos na segunda tarde de trabalho e meu primo mal acabara de nascer. Nesse ritmo, pensei, mal chegaríamos à primeira adolescência antes do prazo previsto para minha volta, que era dali a uns dez dias. Contou‑me a seguir o seu batizado na Igreja da Mouraria, e nomeou os padrinhos: meu compatriota Leopoldo Fróis, de Niterói, fundador da Casa dos Artistas, solteiro, e uma cantora lírica espanhola chamada Dolores Rentine. A respeito desta, disse‑me ainda que era de origem italiana e de família circense. Declarou ainda que a própria rainha de Espanha a mandara para o Conservatório de Madri, onde deveria apurar a voz maravilhosa. Ora, essa Dolores foi certa feita ao Brasil, numa companhia organizada por um grande empresário português que era também seu marido. No Rio de Janeiro, conhecera Dolores o Dr. Leopoldo Fróis, delegado de polícia. Viram‑se, apaixonaram‑se e ele deixou tudo para segui‑la a Portugal. De modo ‑‑ disse‑me o primo ‑‑ que na sua Certidão de Batismo a única pessoa casada era a madrinha, mas com outro homem. Fróis não era marido dela, nem de ninguém, e o meu tio não se havia casado ainda com a minha tia.

            Por parte de pais, os avós de Danilo Barreiros eram jornaleiros de Peso‑da‑Régua e Mesão‑Frio, nomes sugestivos, mas dos quais minha ignorância geográfica nunca tivera menção.

            Dizia‑lhe a sua mãe que o pai quisera que ele nascesse na Mouraria para que, se fosse homem, viesse a ser fadista. Pessoalmente, confidenciou, não acreditava nela e jogava a frase à conta de sua megalomania. A mãe fora filha de um operário que morreu tuberculoso no Hospital São José e de uma lindíssima senhora, de cujos olhos azuis e cabelos louros jamais conseguiu saber a origem exata. Chamava‑se essa sua avó Virgínia.

            O pai de Danilo Barreiros, que era considerado o melhor tenor português do tempo, conheceu Dolores Rentini e Leopoldo Fróis e com eles foi para o Porto, pois Dolores organizara uma companhia teatral dedicada a operetas e montara naquela cidade do norte a Viúva Alegre. Na peça, Leopoldo era Danilo Danilovitch e Eduardo Barreiros era a personagem secundária, o tenor. Dessa atuação e dessa amizade, veio o nome de meu primo, Leopoldo Danilo. Pouco depois do nascimento, foi a companhia para o Brasil, onde atuaria no célebre Teatro do Pará. No Brasil, a Companhia Dolores Rentini foi dizimada pela febre amarela. O pai de Danilo morreu, ficando sepultado no Pará. Faleceu também Dolores, pouco depois, e foi enterrada no Recife. A mãe de Danilo, que era muito bonita, continuou no Brasil como atriz secundária e lá faleceu, muitos anos depois, como viúva do General Hilton Fontoura, que era apenas um ano mais novo do que meu primo.

            Quando este se levantou para ir até a estante de livros, notei que estava exausto. Trouxe‑me de lá um volume: As mil e uma vidas de Leopoldo Fróis, de Raimundo de Magalhães Jr. A história desses tristes acontecimentos está toda aí, disse‑me. Aproveitando a pausa, disse‑lhe que seria melhor interrompermos nesse ponto a narração e continuarmos no dia seguinte, se não houvesse problema.

 

III

 

            No caminho do hotel, pensei que aquela era uma situação muito estranha. Fora a casa do Dr. Danilo para obter informações sobre Pessanha e Wenceslau e estava agora biografando o biógrafo. E num ritmo tal, que na melhor das hipóteses, viajaria para o Brasil deixando meu primo ainda a poucos anos da adolescência. Macau ficava cada vez mais longe. No entanto, a viagem pelo passado estava agradável. O Dr. Danilo tinha muito estilo e muito humor. Era bom estar naquele terceiro andar cheio de lembranças da China. Resolvi continuar.

            Quando voltei, feitos os cumprimentos de praxe, recomeçou o primo seu relato como se entre a última frase e esta não houvesse um dia inteiro, mas apenas alguns minutos. E como visse que me dispunha a tomar muitas notas, começou ele a falar bem pausadamente, num quase ditado, que fui taquigrafando como pude:

            [...]

            Nesse ponto, provavelmente lembrado dos motivos que me haviam trazido até sua casa, Danilo Barreiros deu por encerrada a sessão da tarde, prometendo cenas picantes para o dia seguinte. Apanhou então, da estante, um vasto arquivo sobre Wenceslau de Moraes, onde colecionara tudo o que pôde sobre o eremita de Tokushima. De uma gaveta, sacou uns papéis velhos que também me deu. Eram três cartas inéditas de Moraes ao seu amigo João Vasco. Passou‑me ainda uma terceira pasta, amarrada com barbantes de armazém, em que havia uma infinidade de recortes de notícias variadas sobre o Japão, publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos trinta anos. Disse‑me que poderia fotocopiar os arquivos e publicar as cartas de Moraes ‑‑ por conta, é certo, de nosso parentesco. Como também me disse que podia publicar suas memórias, tudo o que disse e também o que não disse e eu julgasse que deveria ter dito. Passamos o resto da tarde a falar de Moraes e de Pessanha e saí dobrado sobre uma sacola de feira cheia daqueles papéis. Como fosse a Sintra no dia seguinte, marcamos para segunda‑feira a continuação dos trabalhos. Ele me prometeu que chegaríamos, em uma tarde, a Macau. Não acreditei. Não fazia mais, também, questão alguma.

            Na segunda‑feira, meu primo estava mal. Aumentara a dor da ciática e uma complicação do estômago o deixara muito debilitado no final de semana. Queria, porém, continuar ditando. Insistiu, por isso, que me acomodasse em uma cadeira de balanço ao pé de sua cama, pediu um abajur a D. Henriqueta e, lembrado de que paramos quando de suas furtivas excursões para fora do Colégio, recomeçou a história.

            [...]

 

domingo, 27 de novembro de 2022

Perfis 5 - Modesto Carone

Modesto Carone tinha algumas citações que funcionavam como leitmotiv. Talvez três, talvez quatro. Tinha um jeito particular de enunciá-las. Estivesse andando pela sala ou de frente para o quadro negro, bastava vê-lo girar de modo constante, nem rápido nem lento, sobre as botinas de zíper bem engraxadas para saber que alguma delas logo se encaixaria a contento na ocasião. Dizia-as sério, como se fosse a primeira vez que as enunciasse, mas depois um traço de alegria, como o que atesta no artesão a consciência do trabalho bem feito, iluminava o seu rosto. Lembro-me de duas, que reproduzo como me traz a memória, que não erra.
A primeira era de Brecht, aquela famosa – também porque referida por Benjamin – sobre fotografar fábricas da Krupp. A segunda, esfregada contra a condenação existente nesse texto de Brecht à expressão da vivência, era a conferência sobre lírica e sociedade, de Adorno. A terceira também era deste: aquela frase sobre escrever poesia depois de Auschwitz. Já vi que me lembrei de três, e agora me vem uma quarta: a de Paul Celan, sobre a língua materna dele ser a dos assassinos de sua mãe. Mas essa ocorria bem menos, embora contraposta hábil e produtivamente às duas já evocadas do filósofo de Frankfurt.
Mas além ou aquém (no sentido físico e geográfico) dessas estrelas-guia havia outra, mais efetiva porque encarnada: Roberto Schwarz. Formavam uma boa dupla. Modesto, tradutor notável do alemão, vinha da USP, dessa área. Aqui defrontou-se com um verdadeiro austríaco. E rendeu-se.
Lembro-me de uma demonstração do fato. Foi durante a intervenção que o malfadado Paulo Maluf fez na Unicamp. Um interventor rodara a pé, aparentemente perdido, pelo campus. Nós o acompanhamos aos gritos de “rato” e outros termos do mesmo nível. Fazíamos menção de o agredir, mas não tocávamos nele. Era o tempo sombrio da ditadura e tudo podia acontecer. O rato, por fim, enfiou-se num buraco administrativo, e sumiu.
Na cantina do IEL, depois, comemorávamos e interpretávamos o sucedido. Vendo a agitação jovem, Modesto se aproximou. Tinha essa simpatia generosa pela juventude impulsiva, pelos estudantes. Um de nós tinha uma tese, que foi logo exposta quase em coro, mas ele não concordou. Deu uma interpretação diversa, e a defendeu com grande autoridade de silêncios e ponderações. Quando quase nos dávamos por convencidos, aproximou-se o Roberto. Um de nós lhe pediu opinião e ele disse mais ou menos o que dizíamos. A reação do Modesto ficou famosa. Olhou para nós todos, olhou para o recém-chegado, concordando e assentindo com a cabeça. Inclusive, na sequência, desenvolveu com boa lógica o novo ponto de vista, que já tinha passado a ser o seu.
Fisicamente, Modesto não era nem baixo nem alto, embora mais para baixo do que para alto. E nem era gordo nem magro, talvez puxando um pouquinho mais (quase nada) para a primeira opção. Era compacto. Principalmente no inverno, quando uma persistente gola olímpica vinha juntar-se a um casaco de couro de corte clássico. Tinha o rosto mais para o redondo em certa época, e algum maldoso quis apelidá-lo de Batatinha, em homenagem a um gato célebre dos desenhos animados. Mas o apelido não pegou e nem sei por que me lembrei disso agora.
Intelectualmente, era também robusto e bem composto. Tinha uma grande qualidade como professor: a paciência. Na verdade, tinha duas: a aplicação didática. De novo começo pela redução, pois tinha três: a simpatia generosa com que recebia os alunos, conversava com eles, indicava livros.
Aliás, um dos testemunhos ou sequela da sua seriedade era a fixação nas referências, que ia até o extremo de dar o devido ou suposto crédito, quando possível, a declarações orais. Esse traço, pelo excesso e às vezes pela impertinência do registro, deu inclusive origem a um poema coletivo, em clave alegre. Não tenho a versão da época, porém. Soube depois que foi musicado, mas não sei se no todo ou em parte, se do jeito que nasceu ou acrescido. Começava assim: “Bonjour, comme dirait Charles Aznavour”. Do resto não me lembrava, mas busquei a canção do Zé Miguel, e nela deparei com esta estrofe, que me recorda algumas das afeições da época em que fazia o curso: Il fait chaud, comme dirait Arthur Rimbaud / Merci, comme dirait Claude Debussy / Il fait beau, comme dirait Jean-Jacques Rousseau / Je suis désolé, comme dirait Mallarmé.
O mais admirável desse conjunto de qualidades mobilizadas em sala de aula é que todos sabiam que para ele a docência não era uma vocação, mas um trabalho. Era um escritor talentoso, como depois se viu, no período da aposentadoria. E um tradutor muito notável e reconhecido. Mas mais de uma vez, como era seu costume, repetiu algo que me pareceu divertido, embora eu não o tivesse imitado nisso quando chegou a minha hora. Dizia que, se estivesse dando aula e escrevendo na lousa uma palavra e alguém chegasse à porta e gritasse: “Modesto, saiu sua aposentadoria!”, ele deixaria cair o giz, sem sequer terminar a grafia do vocábulo. O que talvez fosse o caso, se na hora ele estivesse grafando uma daquelas intermináveis palavras alemãs. O que sei é que ele cumpriu seu tempo com dignidade. É certo que depois, como prometido, desapareceu do IEL e, imagino, de qualquer outra sala de aula. O que apenas confirma uma vez mais o mérito: um marcante professor, mesmo se, como ele julgava, lhe faltasse a vocação como já lhe faltava, nos últimos tempos, a vontade.

Perfis 4 - Eric Sabinson

Não sei ao certo quando conheci Eric Sabinson. Mas estou seguro de que antes de o ter conhecido já o tinha ouvido. A altura da sua voz era inversamente proporcional à física, embora igualmente encorpados ambos, corpo e voz, maciços.

Depois que o conheci melhor, percebi que, seja sobre um evento trivial, seja sobre um poema ou peça de música, seu comentário nunca era exposto de modo explícito, analítico. Quanto maior fosse o empenho, mais as palavras saíam da sua boca como se lhe custasse muito. À primeira vista eram um esforço propriamente físico: vinham subindo devagar pela garganta, enroscavam-se, exigiam alguma torção inesperada da língua e das bochechas, até por fim surgirem à tona. Estavam, diríamos, a ponto de explodir, não viesse algum súbito e salvador controle segurar, domar e abater a desmesurada emoção. Muitas vezes desconfiei de que o controle era de fato maior do que parecia, que a arte residia em esconder o andaime. Ou melhor, torná-lo invisível enquanto tal, por apresentá-lo como parte do edifício ou escultura. Uma performance, enfim, mas tão entranhada que se transformara no próprio modo de ser, uma forma física de pensar ou expor o pensamento.
Um elemento importante da arte era o sotaque, mantido (se não cultivado) por décadas. Não era uma fatalidade, era um objetivo, por assim dizer, um elemento central do que poderíamos descrever como a sua poética, que era a do deslocamento. Por exemplo: Eric gostava de traduzir, mas insistiu o tempo todo no que poderia ser descrito como a direção errada, porque nunca o fazia daqui para lá, o que seria mais natural e mais fácil para ele, mas sim de lá para cá. Como muitos de nós, José Paulo Paes parecia preferir que se desse o contrário, já que registrou num prefácio que Eric tinha do português um conhecimento (acho que foi essa a palavra que usou) instrumental. Mas isso seria ignorar a razão, o motivo: Eric queria era desnaturalizar a língua de chegada, violentá-la – o que sempre conseguia. Não por meio de alguma cerebrina teoria tradutória, mas por meio de algo mais impactante e pé-no-chão, uma forma muito particular de conceber e tentar reproduzir corporalmente (por assim dizer) o fôlego, com especial atenção à ordem de aparição das palavras, às sucessões de imagens determinadas pela sintaxe ou pela forma do verso. Dessa perspectiva, um resultado canhestro resultava parecer fruto da intenção, ou era redimido como tal. Era o sotaque, o deslocamento e o indefinível em ação plena.
De modo complementar e coerente com a proposta geral, não só sobre literatura, mas sobre qualquer assunto, dos mais comezinhos do departamento aos mais transcendentes, além da forma importava o por onde agarrava o assunto ou entrava nele. Nem sempre era pelo corpo do problema. Às vezes era pelo rabo, outras por uma pata, outras pelo focinho. A questão era agitada de súbito na frente do nosso nariz, e quando a gente pensava que viria algo como uma vivissecção ou ao menos morte por asfixia, Eric de súbito abandonava a presa, terminando por uma expressão enigmática: “É aquela coisa...”. Revirava os olhos ou mirava o interlocutor de esguelha, deixando-o à espreita, à espera de algo que não se concluía. Creio que não só por isso, digo, pela sua capacidade de agarrar pelo ângulo menos esperado, mas mais pessoal, o assunto – tudo terminava por falar para ele ou dele, como o torso de Apolo de Rilke –, mas ainda por estar sempre muito empenhado em atingir ou iluminar o interlocutor, acabou, para as novas gerações, por se configurar como uma espécie de mestre zen, ou melhor, cavaleiro Jedi – no caso, o Yoda.
Tinha o hábito de se referir a si próprio em terceira pessoa. Dizia “o Eric”. E fazia bem: a expressão designava uma persona, mais do que o emitente. Uma persona maior, autoconsciente, que dominava o antigo artífice e senhor, regendo-o. Além disso, tal persona, sem os pruridos ou o senso de ocasião que talvez tivesse tido seu autor, terminava com frequência por configurar ou ocupar de modo abusivo, e por isso mesmo nem sempre agradável, o ambiente.
Sua erudição musical, principalmente num aspecto, impressionava. Parecia saber tudo de ópera, e devia saber muito mesmo. Não se limitava ao gênero, porém. Filho de um produtor da Broadway, conhecia muito mais do que mostrava usualmente, e quando mostrava era de fato notável.
Nos últimos tempos, lembro-me de ele se dedicar a duas artes que pouco ou nada tinham em comum: o halterofilismo e o clarinete. Ouvi-o muitas vezes amaldiçoar uma palheta, ou discorrer sobre o zen do manejo do instrumento, sobre o esforço de controlar a vontade própria durante os treinamentos, da luta para se esquecer e deixar o corpo interagir. O que, no caso dele, era de fato uma tarefa hercúlea. No outro lado do disco, acompanhei as proezas e as queixas de dores dos esforços desmesurados e irracionais, além de ter visto muitos vídeos e lido ou ouvido inúmeras descrições de suas proezas musculares.
Foi, aliás, o grande empenho de superação nos halteres, eu creio, que terminou por levá-lo ao hospital. A uma desastrada operação da coluna cujas consequências foram fatais.
Eu estava em Portugal, quando chegou a notícia. Alcir me disse depois, com revolta, que lhe parecia erro médico.
Durante um bom tempo da sua vida, sentiu-se deslocado no departamento que o contratou quando veio dos Estados Unidos. Por sorte e por graça de amigos dedicados, finalmente veio para o seu lugar correto, que era a literatura. Lembro-me do singular argumento que um de nós apresentou ao departamento, quando da sua transferência. Os mais sintonizados com os novos tempos produtivistas não eram simpáticos à transferência. Achavam que ele não publicava com a frequência desejável. O que era verdade, pois ele conseguia passar longos períodos em abstinência. Mas se era certo o julgamento sobre o passado, esse julgamento não se aplicava necessariamente ao futuro – disse o advogado de defesa. Desvencilhado de um lugar a que era pouco afeito, quem poderia garantir que não seria diferente? E foi assim, com a absolvição futura, que ele veio.
É verdade que, no tocante às provas de condenação pregressa, nada mudou. Mas isso não foi grave. Como outras figuras notáveis com quem convivemos na Unicamp, Eric não se importava com papéis pintados com tinta. Dedicava-se de corpo (e creio que também de alma) às aulas-performance, e punha particular empenho na orientação de trabalhos. Mais do que isso, aplicava-se muito à tarefa de abrir horizontes, forçar estudantes a pensar “fora da casinha”. O que sabia fazer como ninguém, sendo um parceiro dos neófitos e um aplicado perturbador de certezas ao longo do processo formativo. Por fim, contribuía em algo essencial: atrapalhava, fazia desandar as discussões muito burocratizadas, atrasando assim o destino inevitável do departamento rumo à perda do foco no que importa, em nome de ceder gostosa e, em certo sentido, preguiçosamente aos critérios avaliatórios das agências de avaliação e financiamento. Essas ondas encontravamm nele, que nos momentos acalorados se erguia com a energia do costume, um pequeno, porém inabalável e teimosíssimo rochedo.
Quando me lembro dele, termino por ver claramente na memória seu curioso modo de caminhar, quase aos saltos nas pontas dos pés. Era singular e lhe valeu entre estudantes o apelido de Grilo. Do que ele talvez gostasse, se tivesse sabido, pois para os Pinocchios que abundavam entre os estratos acadêmicos ele, de um jeito ou de outro, era quem fazia o papel de consciência. Quando me casei, Eric foi convidado de honra, já não me lembro se padrinho. No caminho para o cartório, minha mãe, impressionada com o gingado peculiar, inesperadamente começou a imitá-lo. Estávamos todos muito felizes. Penso agora que aquele seu jeito de caminhar mimetizava seu jeito de pensar e de falar. Ou vice-versa. Por impulsos, sempre tentando e quase sempre conseguindo uma altura e um alcance maior, mesmo que isso parecesse estranho, descabido ou inapropriado a quem o visse ou ouvisse.

Perfis 3 - Alexandre Eulálio

Quando vim para o IEL como docente, em março de 1986, passei a dividir uma sala com Alexandre Eulálio. Ele já era professor ali desde 1979. Mas por essa época eu já não frequentava o Instituto, a não ser para os trâmites finais da minha dissertação, defendida em 1981. Com ele convivi pouco, porém. Em meados de 1988, faleceu.

Até sermos colegas, o que eu sabia dele era que tinha sido diretor da Revista do Livro e que era mineiro. O que não era verdade. Alexandre Eulálio era carioca, mas com tanta paixão por Minas que um colega dizia que ele conseguia fazer de um pano de boca de um teatro da província o objeto de uma explanação erudita e sedutora da qual nunca suspeitaríamos. Soube depois que não só não nascera em Minas, e sim no Rio, onde estudou e amadureceu, mas ainda que fora batizado não como Alexandre Eulálio Pimenta da Cunha e sim Alexandre Magitot Pimenta da Cunha. É provável que Eulálio lhe tivesse parecido mais mineiro do que Magitot, embora em matéria de mineirice um certo sobrenome nada vernáculo encontrasse poucos rivais.
A sala que dividíamos era, na verdade, uma meia sala, pois tínhamos uma janela compartilhada com a vizinha. E era espartana: duas mesas de fórmica, um armário deserto e paredes de blocos de concreto mal pintados de branco. O único adorno era um pôster, no qual D. Pedro II se exibia em traje de gala.
Alexandre era monarquista convicto. Mais do que isso, tinha amizades antigas na família imperial e participava de cerimônias, a convite dos nobres, em Petrópolis. Ouvi dizer que consumira uma aula dupla na descrição e análise do pôster da nossa sala, mas pode ser apenas exagero.
Costumo pensar que tenho boa memória. Lembro-me, com frequência, até de frases ditas numa fatídica reunião ou aula feliz de há décadas. Sei que aprendi muito com Alexandre, não tenho dúvida disso. Mas não me lembro bem o quê. Certamente não foi que “Dona Guidinha do Poço” é um dos maiores romances brasileiros. Nem que o regime monárquico é superior ao republicano. Que ele me ensinou muito, isso ensinou, porque podia discorrer por horas, talvez por dias, sobre qualquer assunto que lhe despertasse a paixão. A coisa podia começar como um fio d’água. Logo ganhava um pouco de corpo, ramificava-se, enfrentava obstáculos, que arrastava ou rodeava, descobrindo um caminho insuspeitado; logo afluía para um curso maior, e quando a gente menos percebia já tudo vinha aos borbotões, em cachoeira. Mas não tinha foz esse caudal. Pelo contrário, podia voltar a um dos pontos de afluência, pegar um igarapé, um rio da mesma bacia ou, de um salto, atravessar uma fronteira, para depois, em outro susto e maravilhamento, cruzar o oceano. Ou então, pelo contrário, empacar num veio extinto perto de Vila Rica, que logo vicejava como testemunho fluente de corredeiras e correrias de outro tempo.
De Alexandre, além dessas conversas, tenho apenas três lembranças precisas.
A primeira é de algo que ocorreu semanas depois de eu ser contratado. Eu voltava do almoço, pouco antes das aulas da tarde. Mal nos conhecíamos. Encontrei-o em alvoroço. Lembro-me sobretudo do modo como esfregava as mãos e passava a palma de uma sobre o dorso da outra. Daria a primeira aula do semestre no curso de graduação e confessou estar em pânico. Eu lhe assegurei que comigo era o mesmo, que a primeira aula era sempre um momento tenso, mas ele me fez ver que não era por ser a primeira. Eram todas. E então me disse algo que me esforcei para levar a sério: que ele era diferente de nós, não tinha formação, era um autodidata, um leitor sobretudo, sem treinamento, nem preparo etc. Não sei o que lhe respondi. Provavelmente alguma banalidade tranquilizadora, pois me parecia absurdo, descabido, o que ele confessava. Nos outros dias de aula, pude ver que não era exagero o que me dissera sobre a tensão de cada vez. Mas encontramos então uma forma de lidar com aquilo, por meio de perguntas irônicas sobre o estado de espírito de cada um, na hora mais terrível. E não poucas vezes fomos rindo daquelas piadas a caminho das salas de aula.
A segunda foi assim: eu dirigia, Alcir ia ao meu lado e Alexandre atrás, mas inclinado para a frente, bem no meio de nós. Era um Fusca. Tínhamos passado um dia muito agradável na casa de campo de um colega e voltávamos tarde. Alexandre mencionou um velório a que tinha ido ou tinha de ir. Então, de súbito, nos perguntou o que achávamos: haveria algo após a morte, ou tudo terminava ali mesmo? Mas não perguntou de passagem: insistiu no assunto, e num tom que fez com que Alcir e eu terminássemos por ficar um pouco perturbados.
A última lembrança é de algo que ocorreu pouco antes de ele morrer. Maria Eugenia me ligou, disse que vinha com o Alexandre, perguntou se eu estava em casa e se queria almoçar com eles. Encontrei-os na frente da igreja do Cambuí. Alexandre estava mais magro, mas de muito bom humor. Fez questão de visitar a construção de estilo meio mexicano. Contou que conheceu o arquiteto já velhinho, discorreu sobre as características de cada parte, relacionou essa igreja com alguma outra.
Fomos a uma churrascaria bem ao lado. Ele precisava comer carne, me disse. Estava muito anêmico. Almoçamos ali, de onde se podia ver ainda o flanco da igrejinha, rindo em boa disposição. Abraçou-me ao partirem.
Ao dar-me a notícia da sua morte, Maria Eugenia contou-me que a visita ao Cambuí tinha sido parte do périplo de despedida das pessoas de que ele gostava.
Alcir e eu fomos vê-lo pela última vez. E voltamos, no mesmo Fusca, lembrando daquela pergunta insistente que ele nos fizera poucos meses antes.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Memórias (Perfis 2): Décio Pignatari

 Creio que foi em 2007 que fui tutor de Décio Pignatari. Nos divertimos com essa denominação, que provavelmente não era exata. Eu tinha apresentado o seu nome como artista residente na Unicamp, o projeto tinha sido aprovado e ele ficaria conosco, sob minha responsabilidade acadêmica, durante um ano.

Suas atividades previstas eram poucas: dirigir uma oficina de tradução, fazer uma conferência, desenvolver algum trabalho e ficar no campus, à disposição de pessoas que quisessem conviver com ele.
Foi um período fantástico, no qual tive a oportunidade de conviver com uma das mentes mais ágeis e brilhantes com que me deparei ao longo da vida. Mas também com uma das pessoas mais surpreendentes e idiossincráticas.
Por exemplo, num certo momento veio me dizer que precisar ir à Itália. Eu lhe disse que não seria possível, pois ele tinha o compromisso de aparecer semanalmente, ou no mínimo a cada 15 dias, à Unicamp. Mas ele tinha um argumento muito forte, e tive de ceder. É que ele precisava escrever uma peça de teatro, que seria, com as outras que escrevera, uma das cinco peças de teatro mais importantes da literatura brasileira. Quando lhe perguntei por que teria de ir à Itália escrevê-la, se teria alguma pesquisa a fazer, ele disse que não: era mais grave. Ele só poderia escrever essa peça num hotel em Ferrara. E tinha recebido a notícia de que o hotel estava para fechar. Então ele foi e me mandou algum tempo depois não a peça, mas um simpático postal, no qual se via a fachada do hotel. E tudo estava correndo bem. Quando voltou, acabei me esquecendo de perguntar sobre a peça, e ele não se lembrou de me dizer nada a respeito.
O outro momento memorável foi a sua conferência. Nela elogiou Olavo Bilac e analisou de modo instigante alguns versos (creio) do soneto a Ouro Preto. Sírio Possenti talvez se lembre, porque foi um dos que, surpresos, comentou comigo o desbragado elogio.
Por fim, o terceiro. Décio gostava de beber e tinha um bom companheiro no meu amigo Ricardo Lima, que trabalhava na produção da Editora. Mas num dia em que Ricardo teve folga, lá fui eu com o Décio para um copo de prosa. Eu tinha feito questão de publicar junto com a Ateliê Editorial, em 2004, pela Editora da Unicamp, sua obra poética reunida: Poesia pois é poesia. No vaivém da conversa e dos copos, ele queria saber o que eu achava. Fiz o sincero elogio da sua poesia, que me pareceu sempre a mais consistente e interessante, desde o primeiro livro antes do concretismo, até os poemas sem palavras, dos quais aquele em que junta pátria família tv e pelé me parece ainda hoje divertido e bom. E devia ter parado aí, por prudência. Mas como não tinha parado no copo, não parei também no discurso, e lhe disse que as últimas coisas não me impressionaram muito e concluí com uma frase de que me arrependi logo que ela voltou da minha boca para os meus ouvidos: que alguns (não me lembro bem se disse alguns ou vários) me pareciam interessantes, como o para Maiakóvski, mas que aquele que glosava um verso de Castro Alves e principalmente aquele sobre Chico Mendes me pareciam horrendos. Eu mesmo me arrepiei ao ouvir a palavra, pois já convivido bastante com o homem. E esperei. Décio me olhou, calado. Eu esperei mais. E ele então me disse, como quem não ligasse muito, que eu tinha razão, esses dois eram mesmo muito ruins. Eram boa ideia, mas má realização, concluiu. Eu, ainda arrependido da palavra, concordei logo e passamos ao próximo copo e ao assunto seguinte.

Perfis 1: Haquira Osakabe

 Outro dia, conversando com Alcir, disse-lhe que ia redigir alguns perfis. E convidei-o a colaborar na tarefa. Ele logo se animou e disse que sim, que íamos fazer. Redigi, então, o primeiro. A ele competirá fazer o segundo. Mas outros projetos comuns surgiram e soterraram, ao menos por algum tempo, os anteriores – entre eles, o dos perfis.

O que escrevi então era mais ou menos o que segue. Mais ou menos porque retornei ao esboço há pouco e o refiz em grande parte (acrescentando todo o testemunho), depois de ouvir o quarto podcast do colóquio de Coimbra sobre ensino de literatura, no qual as questões relativas à imitação produtiva e ao momento da aula foram discutidas.
*
Haquira Osakabe
Era um nissei muito alto. Na verdade, quando deixou crescer a pera e o bigode, mais parecia chinês. De qualquer modo tinha um ar aristocrático e seu olhar sempre meio vago lhe dava um ar meditativo, mesmo quando argumentava ou falava para uma classe lotada.
Seu discurso acompanhava o olhar, no sentido que parecia às vezes igualmente vago, fazendo círculos em volta de algo que não era dito. Os silêncios entre frases ou mesmo entre palavras de uma frase, quando o olhar se tornava ainda mais vago, como se fixado num ponto no horizonte, geravam expectativa, energizavam o ambiente. E nunca sabíamos se o que ficava por dizer, no centro daquelas voltas, ainda não estava devidamente formulado, ou se era algo que não podia ser expresso com o vocabulário usual da academia.
Meu amigo Alcir o conheceu ainda antes da graduação. Eu apenas no mestrado. Mas ambos trabalhamos com ele ao longo dos anos, nas disciplinas denominadas Literatura Portuguesa, que eram nosso respiro para a literatura europeia. Isso porque o curso de Letras no IEL tinha sido criado por Antonio Candido, e sempre ali houve um tipo de exacerbação nacionalista. Não havia literaturas de língua estrangeira no programa: o curso era articulado sobre duas séries principais, os estudos de literatura brasileira e os estudos de Teoria Literária. Nosso próprio departamento levava este nome.
A estreiteza do ambiente e do programa terminou por fazer da Literatura Portuguesa um espaço de respiração fora do aquário onde circulavam os discípulos à volta das questões nacionais. A situação era de tal modo peculiar que uma disciplina oferecida no quarto ano, denominada Teoria Literária, chegou a ser ministrada com um programa que assim se resumia: “De Platão a Antonio Candido”.
Haquira foi, para nós, um guia para escapar dessas armadilhas. Em sua casa nos reunimos muitas vezes para discutir textos, pegar livros emprestados e, principalmente, programar os cursos de Literatura Portuguesa, que incluíam sempre uma situação dos autores e obras no quadro maior da literatura europeia.
A compreensão desse enquadramento era central para Haquira, assim como a necessidade de estudarmos todos os principais momentos da Literatura Portuguesa. Para isso, insistia na ideia de que os professores da disciplina percorrêssemos todo o arco temporal. Assim, cada um de nós teve de, pelo menos uma vez, ensinar literatura medieval, renascentista, oitocentista e moderna. E como havia pré-requisitos entre as disciplinas, elaborávamos em conjunto os programas e buscávamos linhas de continuidade de um semestre para outro, assim como otimizávamos a bibliografia de cada um.
Com tanta dedicação aos novos professores e aos alunos de graduação e de pós, com quem organizava seguidas sessões de orientação em grupo ou individual, Haquira pouco escreveu. Quase nada no seu campo de dedicação apaixonada, que era a literatura portuguesa.
Entretanto, sua atuação e a sua presença foram para mim (assim como para muitos outros) inspiração e desafio. Inclusive num assunto que terminou por ocupar grande espaço na minha vida pessoal e acadêmica: o haikai. De fato, foi ele que me emprestou, entre outros, os livros (então quase inacessíveis) de R. H. Blyth; foi ele quem me apresentou à minha parceira de trabalhos nesse campo, Elza Doi; e foi ele ainda quem me estimulou a estudar seriamente o haikai, a traduzi-lo com Elza e, por fim, a escrever um estudo de longo fôlego, do qual foi o primeiro leitor. Também foi ele quem me apresentou a Teresa Sobral Cunha (em breve, outra decisiva referência afetiva e intelectual), com quem se concertou para me convencer e estimular a fazer o trabalho de edição de Camilo Pessanha.
Houve ainda outro momento no qual sua presença foi marcante. É que, durante certo tempo, tentei imitá-lo no que fosse possível. Tanto na dedicação às aulas, quanto aos estudantes. E apliquei-me com mais afinco ainda ao estudo, sentindo-me como Eça disse que ficou, sob a inspiração de Antero: compelido a pôr os pés no capacho e a mergulhar silenciosamente nos livros, noite após noite. Nisso e nas aulas e convívio com estudantes consumi vários meses felizes, que prometiam nunca acabar. Foi então que, certa noite, naqueles anos de final dos 80 ou início dos 90, Haquira me apareceu em sonho. Só me lembro da parte principal: escreva, publique! Era uma admoestação dura – um tanto amargurada até, eu diria –, que referia a si mesmo como exemplo a não seguir nesse particular. Durante bom tempo, por semanas ou mesmo meses, fiquei sob o impacto do que ele ali me disse e confessou. E isso também me orientou e gerou decisões relevantes.
De modo que, de um jeito ou de outro, pela orientação explícita, pelo exemplo e ainda pelo sonho (no sentido figurado ou literal) não creio ter havido eventos decisivos no começo da minha carreira universitária sem que Haquira estivesse muito presente.
E é disso que venho aqui dar este singelo testemunho.

Mais um pouco de haikai (2) - ideogramas, haiga etc

 Acabo de postar duas figuras. São dois haiga, isto é, haikais acompanhados de desenhos. Por conta de textos como o de Fenollosa, muitos de nós estamos acostumados a pensar que a caligrafia de alguma forma revela o lado pictórico do ideograma. Ou que, para dizer de uma forma familiar, ela revele os harmônicos, ou seja, os componentes ideogramáticos comuns que integram várias palavras.

Entretanto, a arte de caligrafar me parece muito mais sutil e complexa. Especialmente em haikai.
É que em japonês o calígrafo pode escolher entre a grafia "chinesa", isto é, "ideogramática" (kanji) e grafia silábica. E a escolha pode ser ditada ou por conveniência e equilíbrio da página, ou por alguma outra razão, como a seguir tento mostrar.
Ao mesmo tempo, o caráter "desmanchado" da grafia é uma arte. Não é o desenho, a consecução de cada traço que importa, mas o ritmo, o movimento que a gente faz com o pincel, a direção de cada um dos traços que constituem o kanji.
Além disso, o tamanho de cada letra, a força com que é traçada, a quantidade de tinta, tudo isso produz efeitos de sentido muito além da representação pictórica que nos acostumamos a imaginar na escrita japonesa.
Nas figuras que postei temos, num caso, um haiga de Bashô. É o que tem o desenho de flores.
Seu texto diz:
asagao ni ware wa meshi kû oto kana
junto aos bons-dias eu sou um homem que toma refeição – ah!
É um poema que se entende facilmente, pois alude ao lado errante e frugal da vida do poeta, que dorme ao relento ou sai para a caminhada muito cedo. O ponto mais sugestivo da caligrafia, em minha opinião, é a forma como o poeta grafou meshi (comida). Ele poderia ter escolhido um caractere chinês, um kanji, mas escolheu grafia silábica. Poderia ter escrito de modo "normal" a palavra, mas juntou as duas sílabas e as grafou desmanchando a segunda, que mal termina em gancho, como na forma impressa.
Já no outro, da libélula, de Kempû, diz assim:
tonbô ya mizu wo nabaeru yúgeshiki
a libélula inclina-se sobre a água – cena do anoitecer
Aqui, o interessante, do meu ponto de vista, é a grafia da palavra água, em kanji (ideograma). É a representação de três fios de água correndo, como aprendemos em Fenollosa. Mas neste caaso está desenhada de tal forma que, com pouco esforço, vê-se nela algo como o reflexo do inseto sobre a lâmina de água.





Modernismo - uma ausência

Ao longo da vida quase nada escrevi sobre o Modernismo de 1922. Em tempos tive um projeto de apresentação da poesia brasileira, mas não fui além de dois estudos sistemáticos. Um que teve por título “As Aves que aqui Gorjeiam: A Poesia Brasileira do Romantismo ao Simbolismo”, escrito ao longo de muitos anos e publicado em 2005, e outro, do ano seguinte, intitulado “Pós-tudo: A Poesia Brasileira depois de João Cabral”. A eles se seguiram estudos vários sobre poetas e problemas da poesia contemporânea, posterior à Poesia Concreta. Entretanto, dei aulas sobre os modernistas, especialmente sobre Drummond, que dentre todos é o que mais li e ainda leio. Mas nem mesmo sobre a poesia de João Cabral, cuja poesia me encantou durante o período da faculdade e do mestrado, escrevi qualquer coisa.
Neste ano do centenário ocorreram-me estas lembranças e percebi que, por algum motivo, desviei do Modernismo: nem sobre Bandeira, cuja obra frequentei por anos, nada fiz além de uns poucos esboços de passagem.
O leque dos autores não permite explicação simples. É certo, por exemplo, que nunca me atraiu a poesia de Mário de Andrade. Admirei e admiro o crítico, acima de qualquer outra faceta, no qual me inspirei em vários momentos. E também li e leio com prazer a sua correspondência. Mas a poesia sempre me deixou indiferente. De memória – ou melhor, de cor, no sentido etimológico – apenas restaram pequenos trechos da “Meditação sobre o Tietê”, que me parece escorrer como rio oleoso; restou quase inteiro “O poeta come amendoim”; e talvez o estribilho do poema sobre a Serra do Rola-Moça. Claro, a parte tão batida de “Pauliceia” permanece, mas não por gosto ou identificação, mas por, digamos assim, inseminação escolar. Tampouco tenho especial afeição pela poesia de Oswald, embora tenha mais lembrança de versos seus, especialmente das boutades. Já Bandeira, Drummond e Cabral são poetas de eleição, por motivos vários e em várias épocas da vida.
O que terá mantido meu interesse e investimento de tempo à parte desse período tão celebrado? Talvez tenha sido justamente isso: o fato de ser assim celebrado, de um modo que me pareceu sempre pouco razoável, especialmente no que diz respeito aos autores diretamente vinculados à Semana.
A verdade é que não tive uma boa educação literária escolar. Minha formação no que hoje se denomina ensino fundamental e médio só foi rica no que toca às disciplinas científicas. Por isso mesmo, pensava seguir carreira ou em exatas ou em biológicas. A parte literária da minha vida juvenil foi toda autodidata, até o final do ensino médio, quando uma professora de grande capacidade começou a me despertar para a literatura moderna.
Ter ido, por impulso e por paixão, para o curso de Letras foi uma espécie de acidente. E para o curso de Francês foi uma temeridade. De qualquer forma, a faculdade era um mundo de livros e penso que duas coisas moldaram minha percepção da poesia. Três, na verdade.
A primeira foi que, no primeiro ou segundo ano do ensino médio, na casa de um primo descobri uma coleção das obras completas de Dante, em edição bilíngue. A leitura do seu “Inferno”, com as centenas ou milhares de notas redigidas pelo Monsenhor Pinto de Campos, foi para mim um deslumbramento, criou um padrão junto ao qual tudo me parecia empalidecer – e que me levou a ler, ainda em prosa, a “Eneida” e, em versos de Carlos Alberto Nunes, os poemas homéricos. A segunda foi comprar, logo que cheguei a Araraquara, por recomendação de um livreiro que trabalhava na faculdade, uma antologia do Ezra Pound publicada em Portugal, traduzida e prefaciada pelos então denominados “concretistas”. A terceira foi, na sequência imediata, ainda no primeiro ano da vida nova, conhecer um estudante de Química que fez intercâmbio nos EUA e, sabendo que eu gostava de poesia, deu-me uma tradução que ele mesmo fez do poema “Marina”, de T. S. Eliot. Em seguida, vendo que eu ficara animado, emprestou-me um exemplar de “The Waste Land” e, na sequência, dos “Four Quartets”.
Talvez por isso, ainda em Araraquara e imbuído de alguma fatuidade juvenil, não me interessei pelos modernistas brasileiros de 1922. Sem dúvida a minha pouca formação me impediu de valorizar o que eu lia dessa poesia em função da realidade nacional, ou do sistema literário nacional (como depois aprendi a dizer). Por fim, ainda durante o período da faculdade, a leitura do “Ulisses”, de 1922 como “The Waste Land”, deve ter me atraído mais e desviado a atenção dos romances e poemas nacionais contemporâneos.
Na sequência, com a maturidade, reacendeu-se a paixão juvenil por Manuel Bandeira e por Drummond, cuja obra revisitei muitas vezes. E ainda perdura. E me lembro de que, em algum momento, já durante o período da Unicamp dediquei-me por cerca de um ano à leitura sistemática, por ordem cronológica, da obra até então publicada de cada um deles, bem como de Mário e de Oswald, incluindo nesse conjunto Murilo Mendes e tantos outros, de Cassiano Ricardo a Menotti del Picchia, passando por Raul Bopp.
Por que então sempre evitei escrever o capítulo que preencheria o panorama da poesia desde a Independência? Talvez porque tenha pensado que não valeria a pena dizer isso mesmo que acabo de dizer aqui. Que a energia necessária para tal estudo, nesses termos, seria muita e que me faria falta em outros campos que me chamavam, como a poesia de Camilo Pessanha, a obra histórica de Oliveira Martins, o romance queirosiano e, por fim, o de Machado de Assis, cuja interpretação dominante parecia exigir até mais energia crítica do que a que vigorava sobre o Modernismo. E, paixão por paixão, havia outras, laterais, como o haikai japonês.

Seja como for, nesta altura da vida já não me parece valer a pena completar o panorama crítico. Nem em parece viável, para ser sincero. O tríptico, assim, permanecerá sendo um projeto fracassado, um mero díptico. Mas confesso que o lugar central vago de vez em quando, como agora, me incomoda 

Haiga - poesia + imagem

Enquanto escrevia o último post, lembrei-me deste haiga (combinação de desenho e haikai). Creio que todo admirador da arte conhece este haikai de Bashô: kare eda ni karasu tomarikeri no aki no kure.
Já o comentei várias vezes, inclusive por conta do fato de que se trata de um poema que excede o número padrão de durações por segmento (durações, moras, que aqui denominaremos, por comodidade, sílabas): kare eda ni – 5 sílabas; karasu no tomarikeri – 9 sílabas; aki no kure – 5 sílabas.
A tradução ao pé da letra seria: no ramo seco o corvo acabou de pousar – entardecer (ou: final) de outono.
Ao longo dos anos, quando apresentei esse haikai em cursos e palestras, percebi que o corvo, essa ave sombria que muitos de nós só conhecemos a partir do poema de Poe, o ramo seco, o entardecer – tudo isso terminava por exaltar a imaginação romântica e carregar o quadro de tintas dramáticas.
Para muitos, o haiga, que traz caligrafia de Bashô e desenho de um seu discípulo chamado Morikawa Kyoriku, tinha o efeito de anticlímax. Era chocante o contraste entre o que imaginaram e o desenho discreto, com aquele passarinho amuado e ainda por cima retratado de perfil, quase de costas. Mas não há como fugir: Bashô deve ter aprovado, ou não escreveria o haikai no desenho de Kyoriku.
Mas há outro haiga, desta vez com desenho e caligrafia do próprio Bashô, que só conheci depois e no qual os efeitos de anticlímax que acabo de descrever são ainda mais intensos. É o que está em qualidade pior de imagem e em preto e branco, abaixo.

Não sei se a forma como conduzi a conversa naquelas ocasiões fez com que vissem a beleza que me impressionava, tanto no haikai, quanto no desenho. Para mim, a melancolia é mais intensa quanto mais minimalista o verso, afastado justamente qualquer aspecto dramático ou sentimental. Na verdade, talvez nem mesmo devesse falar em melancolia a propósito desse haikai. Ele apenas nos diz que as coisas são como são; o ritmo das estações é inapelável; o corvo que acaba de pousar num galho é apenas um corvo pousado num galho. E, no entanto, que belo retrato do clima próprio do final de outono, quando o estado geral da natureza sugere recolhimento, preparação para o inverno que se aproxima e começa por se indicar no galho seco. Já o corvo, sempre barulhento e agitado, surge no desenho bastante encolhido. E nada se diz sobre seu típico e contínuo crocitar. Apenas que ele acabou de pousar ali.
A propósito, há um outro haikai que vale a pena trazer à baila. Este, de Kishú:
Até mesmo o corvo
Passa em silêncio —
Entardecer de outono.

Comparando os dois haikais, o de Bashô me parece mais impressionante. À primeira leitura, o de Kishú pode até parecer melhor, porque a cena tem movimento e o sentido é óbvio. Já no de Bashô tudo está reduzido ao mínimo. Por isso, não é difícil ver na cena do corvo que acaba de pousar no galho seco uma figura do outono, ou mesmo do inverno que se anuncia. No caso do haikai de Kishú, o entardecer de outono é um enquadramento sazonal e uma explicação, por assim dizer. No de Bashô é também um enquadramento, claro, mas o haikai não tem nada de explicativo. A cena se torna um símbolo (ou mesmo, forçando um pouco a barra: uma metáfora) do outono que termina e por isso desperta em nós o mesmo tipo de sentimento ou disposição de espírito que aquele preciso momento do ciclo natural. 






Por que haikai?

 

Publiquei estes textos ao longo do mês de novembro (2022) na minha página do Facebook. Como lá a leitura sequencial termina por ser difícil, postei a sequência toda aqui.

 

 

Parte 1/5

 

Um amigo me sugere escrever aqui sobre a origem e o sentido do meu interesse persistente no haikai japonês. Creio que já escrevi sobre isso. Mas não faz mal. As horas de convalescença são longas. O esforço concentrado para um novo ensaio ainda é impossível. Mas expedição na memória é agradável, quando não é penosa. 

 

Os velhos devem ser exploradores / Aqui e ali não importa / Devemos estar parados e ainda em movimento / Em outra intensidade / Para uma nova união, uma comunhão mais profunda / Através da fria escuridão e da desolação vazia,/ A onda chora, o vento chora, as vastas águas/ Do petrel e do delfim./ No meu fim está o meu começo.

 

Assim escreveu Eliot num dos poemas de que mais gosto e que me ocorre agora, ao recordar os primeiros passos no caminho do haikai.

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No caldo contracultural dos anos de 1960, o haikai não era para mim haikai. Era algo que vinha em livrinhos como “A sabedoria do Oriente”, ou outros trabalhos do tipo. 

O Oriente, naquela época, atraía não só os jovens. Meu pai me deu, quando ainda menino, um livro em dois volumes, organizado por Lin Yutang: “A sabedoria da China e da Índia. Até hoje os tenho na estante, perfeitos nas suas capas duras que resistiram a leituras e mudanças, desde meados dos anos de 1960.

Ali pude ter o primeiro contato com o budismo e com aquilo que o título resume. Na sequência, fui descobrindo primeiro o lado “religioso”, em livros sobre taoísmo e budismo. Depois, o linguístico e o poético.

Ora, desde antes de começar os estudos de graduação me interessava a poesia, que praticava. Mas no começo dos anos de 1970 a leitura de uma antologia de Ezra Pound, bem como do livro de Haroldo de Campos, “A arte no horizonte do provável”, pôs-me em contato com um desafio sedutor: entender o que, afinal, era a escrita ideogramática numa língua em que ela era utilizada de modo geral. O haikai não era ainda um objetivo. Vinha no bojo de algo mais amplo.

 

Passou a ser um interesse central apenas quando Haquira Osakabe, sabendo do meu interesse pelo assunto, emprestou-me um livro em dois volumes: “A history of haiku”, de R. H. Blyth. Ali eu pude ver, além das versões para o inglês e de vasta exposição, a grafia original, com os ideogramas entremeados ao silabário.

Decidi-me, então, a compreender melhor tanto a escrita, quanto a poética.

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Em Campinas havia um templo budista ou taoísta (já não me lembro). E foi para lá que me dirigi, na intenção de estudar chinês. 

Não resisti a duas semanas de aulas. Eu queria entender o ideograma, mas me vi envolvido na confusão dos tantos tons, que me pareciam indecifráveis, e abandonei o estudo mal tendo aprendido a dizer “eu sou brasileiro” na língua de Yutang.

Foi então que me ocorreu estudar uma língua que me parecia mais simples: o japonês, que eu conhecia bem da juventude passada em Guaíra, onde havia uma enorme comunidade japonesa, e onde eu tinha ensaiado os primeiros diálogos, quando visitava a família de alguma namorada ou quase namorada.

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O estudo do japonês não prosperou muito na Aliança, em Campinas. Marília Maruyama era um amor de paciência. Mas eu tinha aulas com um grupo de crianças que falavam japonês. E nem sempre era divertido ser o grandão meio estúpido, quando alguém me pedia um ovo e eu identificava o kanji de elefante ou outro animal que, positivamente, não se parecia com um ovo. Mas persisti por um bom tempo e guardo ótimas recordações. Principalmente das leituras que Marília fez de haikais que lhe levei, extraídos do Blyth, e que gravei para tentar apreender o ritmo da elocução. E também das aulas de caligrafia com seu pai, Maruyama-san, nas quais pude ver em ação o famoso pincel e tentar escrever sem borrar. Mas, sobretudo, pude aprender os traços básicos da escrita, sem os quais é impossível consultar um dicionário, já que em ideogramas não há, evidentemente, como dispor nada em ordem alfabética.

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Foi então que pedi a Elza Doi, minha colega de Instituto, que me ensinasse japonês. Mas não a língua que me permitiria ler jornais ou conversar. A língua do haikai, que naquela altura eu já sabia ser algo diferente do japonês usual, também porque o que mais me interessava ali eram os haikais do século XVII e XVIII.

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Gosto da expressão “abriu-se o olho do haikai”, que encontrei num dos tratados da escola de Bashô. Porque foi exatamente isso que ocorreu em certo momento: passei a ver a poesia e, digamos assim, o mundo – a partir ou com a presença do haikai.

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Parte 2/5

 

O haikai é uma arte ou prática tradicional. O poeta de haikai se move num universo determinado por convenções fortes: tal flor ou tal ação humana, tal animal ou tal dado atmosférico conotam imediatamente um momento preciso do ciclo sazonal. Mais que isso, conotam um estado de espírito tradicionalmente associado ao fenômeno observado. 

Isso não é tão estranho para nós. Basta ler, por exemplo, o livro do Curtius sobre os lugares-comuns, ou topoi. Essa expressão, “lugar-comum”, aliás, ajuda a compreender um seu elemento definidor do haikai: o “kigo”.

Kigo quer dizer palavra associada a uma estação. Ou seja, indica uma interpretação comunitária de um fenômeno humano ou natural. Isso permite ao haikai uma grande economia: basta enunciar um “lugar-comum” para dispor imediatamente de um pano de fundo coletivo, contra o qual se situará a percepção individual. 

O kigo é tão relevante no haikai japonês que muitas “palavras de estação” se cristalizaram, sozinhas ou com um expletivo, como sequências de 5 sílabas, o que faz com que aproximadamente um terço do haikai (nesses casos) seja ocupado pelo kigo: aki no kure, samidare ya, samusa kana etc.

O lugar-comum, porém, pode facilmente tornar-se um obstáculo ao bom haikai. Ou melhor, um obstáculo ao haikai tal como visto por Blyth, e tal como eu mesmo o pude valorizar a partir da leitura complementar dos livros canônicos da escola de Bashô. Isso porque seu peso convencional ameaça o que me parecem ser os traços mais marcantes do haikai, decorrentes do primado da objetividade: sua radicação na sensação e sua recusa à elaboração conceitual. 

O haikai, assim, se equilibra entre dois perigos: por um lado, esgotar-se na glosa do lugar-comum, fazendo com que o poema seja apenas a realização plana do convencional; por outro, perder o sentido amplo do lugar-comum, agredindo o entendimento tradicional do estado de espírito associado a um dado sazonal. Ou seja, num caso, afastando-se da experiência imediata, apagando-a no sentido coletivo associado ao kigo; no outro, não vinculando de alguma forma a experiência imediata ao saber tradicional, e assim desprezando a carga afetiva que a dinamizaria e lhe atribuiria relevância.

Ao lermos um haikai, portanto, temos de avaliar a sua objetividade, a sua verdade; e ver como essa observação objetiva se relaciona com o lugar-comum do kigo. Isso se dá positivamente de vários modos, que não vem ao caso expor aqui. Mas também pode se dar de modo extremado, negativo, pela renúncia a dizer o que é esperado (como no haikai de Bashô que louva quem não diz algo sobre como a vida passa, ao ver um relâmpago), ou simples recusa de dizer qualquer coisa, como naquele haikai em que alguém vai ver as cerejeiras mais louvadas do Japão e escreve um haikai que diz apenas “Isso! Isso!”. 

De modo geral, podemos dizer que, por conta da necessidade de “verdade” da notação, há sempre alguma tensão entre o kigo e o restante do haikai. Por conta disso, na intepretação e valoração do haikai tem relevância o contexto, a situação em que foi composto. Por isso o poema não costumava vir sozinho, nos tempos clássicos. Ou era acompanhado de um desenho, ou rodeado de um texto em prosa ou de outros versos, numa sessão coletiva de poesia. Quando não, isto é, quando apresentado sozinho, a leitura tradicional japonesa consistia em criar um contexto, imaginar a partir de testemunhos ou do próprio kigo, a situação em que o haikai foi sentido ou escrito. Tomemos como exemplo um de Shiki, o reformador que buscou tornar o haikai um poema autônomo. O texto diz “depois de examinar três mil haikus, dois caquis”. Ora, isso é quase ininteligível, a menos que saibamos que Shiki adorava caquis, estava doente e que depois de um grande trabalho de avaliação de haikais para publicação, ele se daria o luxo de comer caquis. Ou podemos entender que ele, tendo de fazer um trabalho exaustivo, motivou-se com a promessa de ter como prêmio as duas frutas. De qualquer forma, temos de saber da paixão pela fruta e também que Shiki era o mentor da revista Hototogisu, para a qual selecionava os haikais enviados para publicação.

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Parte 3/5

 

 

No que diz respeito à importância do contexto, vejamos um exemplo. Este poema de Bashô:

 

Akebono ya shirauo shiroki koto issun” 

 

Alvorada — peixe[s] branco[s] coisa[s] branca[s] de uma polegada

 

Coloquei entre colchetes os “s” porque em japonês não temos marcação de plural nos substantivos ou verbos.

 

Haroldo de Campos propôs duas traduções desse poema:

 

“alvorada 

            peixe alvo

            uma

                   polegada de alvura

 

 

manhã branca

                        peixe branco

                                               uma

                                                           polegada branca”

 

Nos seus comentários, fica claro como ele entendeu o poema:

 

“É a primeira luz da manhã, transitando para o branco mínimo do peixe branco, divisado através da cristalinidade da água, elemento que não é mencionado mas está virtualmente presente neste haicai”

 

Ele o imaginou, portanto, como produto de uma contemplação, ou observação atenta, de um pequeno peixe entrevisto na água. 

Construiu assim uma cena delicada, na qual tem lugar o haikai. A ideia de cristalinidade da água atribui um caráter algo intimista à cena, como se a contemplação se desse em um aquário ou um tanque.

 

Entretanto, esse haicai comparece num diário de Bashô, o Nozarashi Kikô, nesta passagem:

 

“Cansado de dormir sobre um travesseiro de ervas, fui para a praia quando ainda escuro, antes do nascer do sol”

 

A expressão “travesseiro de ervas” pode ser lida num sentido literal, mas designa usualmente o ato de dormir em viagem, na estrada. 

 

Temos uma marinha, portanto.

 

Orientado não só por esse trecho do diário, mas também pelos comentários tradicionais, Blyth traduziu assim:

 

 

                    Akebono ya

shirauo shiroki

                    koto issun

 

                    In the morning twilight

The lancelets,

                    Inch-long white things.

 

 

Aqui temos plural e não singular. A sugestão é de movimento, de grupo. Temos agora um cardume ou um grupo de peixes e não mais um indivíduo solitário.

 

A explicação para a opção de Blyth pelo plural vem no seu comentário, que é este:

 

On the way to Nagoya, near Kuwana, Bashō went down to the sea-shore in the early morning, before it was still properly light. Fisherman were at work there, and he saw something white gleaming on the sand. Going closer, this mass of translucent whiteness, reflecting the eastern skies, resolved itself into small fishes, each of about an inch in length.

 

 

Temos agora o seguinte: o poeta vê algo na praia, uma mancha branca que espelha a alvorada. Quando se aproxima, vê que eram pequenos peixes brancos, que os pescadores tinham apanhado. A beleza do reflexo do céu iluminado ser resolve agora na agonia dos peixes, se debatendo na areia. O que ressalta o lado piedoso da poética de Bashô.

A interpretação destaca ainda, embora Blyth não o mencione, o possível intertexto que tantos apontam desse hokku com um poema de Du Fu, o de número 17-67. “Apenas um pouco de branco, mas aqui também está a vida –  um peixe de duas polegadas”.

 

Por outro lado, temos o relato de Bokuin sobre as condições em que foi escrito o hokku: ele teria acompanhado Bashô até a praia, onde mariscaram, e depois foram, em um bote, pescar shirauos (os peixes brancos).

 

A leitura do hokku fica agora bem diversa. Nem temos o pequeno peixe solitário nadando em água límpida ao nascer do dia, nem um cardume agonizando na rede ou na areia. Ou o poeta os vê desde o bote, ou os contempla já pescados.

 

Aprendemos também no Sanzôshi que na primeira versão do hokku o verso inicial era “Neve fina”. Um comentarista observa que a forma revisada sugere que o poema foi escrito logo cedo, mas que na realidade ele parece ter sido escrito depois do retorno da coleta dos pequenos peixes.

 

Blyth certamente conhecia o relato de Bokuin, mas preferiu uma das leituras tradicionais, que reconstrói o contexto da forma como ele o reproduziu. Por que o fez? 

 

A explicação mais convincente é que ele seguiu o que parece ter sido a intenção de Bashô, ao alterar o primeiro verso e ao narrar de modo tão sumário o contexto da produção. E confesso que nunca mais li esse hokku da mesma forma depois de o ter lido no Blyth, embora meu primeiro contato com ele fosse via Haroldo de Campos. Talvez porque aquele incômodo com a cena de japonnaiserie do poeta contemplando o peixinho translúcido sob a água clara se tenha rapidamente eclipsado quando li o diário pela primeira vez, o comentário do Blyth tenha parecido tão convincente. E talvez por ele ter parecido assim convincente, e por Bashô não ter inserido no diário nada que sugerisse uma atividade prática em busca de um petisco famoso e delicioso (ainda mais delicioso quando, no começo da primavera os alevinos ainda não tenham sequer chegado ao tamanho de duas polegadas), fiquei sempre com aquela cena na cabeça: o poeta acordando de madrugada e indo para a paria onde brilhavam, na luz da aurora, os pequenos peixes brancos.

 

Mas não deixa de ser interessante tentar pensar de outra forma, como nesta imagem que retirei da internet. Nesse caso, o pequeno peixe branco seria apenas o café da manhã de Bashô...




 

Enfim, creio que me distanciei do objetivo destas memórias, que era narrar as razões do meu interesse pelo haikai. Ou não: porque uma das características sedutoras no haikai é, como disse, a relação entre o texto e seu entorno, dado por uma situação, um diário ou um desenho. O vazio que constitui esse tipo de poema, usualmente composto pela justaposição de dois elementos, sendo que a relação entre eles deve ser “descoberta” ou proposta pelo leitor, se amplifica quando percebemos que o sentido do próprio haikai muitas vezes nos escapa, sem que o situemos num quadro mais amplo. Ou seja, quando nos damos conta de que o haikai clássico é quase sempre aquilo que já descrevi como “três linhas em busca de um contexto”.

Claro que aquilo que atraiu a atenção de Haroldo de Campos é outra coisa. Mas é algo que a mim interessa menos. Principalmente porque não vejo essa proeminência do ideograma na poesia de haikai. No renga, os versos são *ditos* pelos participantes, e a forma da grafia é decidida pelo encarregado do registro escrito. Já nos haicais escritos em desenhos, é o ritmo da escrita, nos caracteres “desmanchados”, que conta mais, bem como a decisão de usar letras chinesas ou silabário, de acordo com o objetivo e situação de cada palavra.

 

Enfim, não parece, afinal, que tenha me afastado tanto do objetivo...

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Parte 4/5

 

Vejo agora que eu poderia ficar escrevendo infinitamente, durante este período de recolhimento forçado, sobre o haikai, sobre as suas características mais marcantes, que o tornaram um assunto e uma atitude centrais na minha vida. Mas para não me alongar muito, já que no Facebook estes textos se perdem na linha do tempo, vou tentar terminar aqui.

 

E queria terminar com duas citações que me orientaram, desde que as li, pois resumem o que de mais interessante eu pude encontrar no haikai.

 

Mas antes uma observação que simplifica as coisas. Fazer haikai, colocar-se em “estado de haikai” me parece algo semelhante a sair com uma câmera fotográfica. É certo que o celular hoje em dia é uma boa câmera, mas é diferente sair com um celular no bolso e com uma câmera. Com a câmera, a disposição do espírito é diferente: você está ali para tirar fotos, ou seja, em busca de recortes interessantes. Seu olhar muda, sua forma de caminhar muda, assim como sua atenção ao entorno e, eu diria, a si mesmo. Da mesma forma, sair com uma caderneta e um lápis para um passeio no bairro ou uma expedição pelos arredores da cidade, ou ainda a um trecho de mata, cria uma dada disposição, um jeito de olhar e estar no mundo. Por isso mesmo não gosto de fazer haikai em gabinete, a não ser quando a memória de algum momento marcante é tão forte que o torna outra vez presente.

 

E agora as citações.

 

A primeira é esta, de Tôhô, que vale tanto para o haikai quanto para, mantendo-se o símile, o tipo de expedição fotográfica que busquei definir acima:

 

Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência.

 

Aqui está bem definida a atitude, a disposição. E o que sempre busquei no haikai, tanto ao escrevê-lo, quanto ao lê-lo e avaliá-lo. 

Há aqui, nessa formulação, algo que se aproxima do que T. S. Eliot propôs ao escrever que o  “correlato objetivo” é a única forma (creio que é assim mesmo que ele diz) de transmitir emoção em arte (ideia, aliás, que lhe pode ter vindo da poesia japonesa, como já se disse). 

Por esse termo, Eliot significava uma cena ou um conjunto de elementos  “objetivos” que pudessem despertar ou produzir no leitor um tipo de emoção. Ou melhor, a emoção que, naquele trecho, o poeta buscava produzir. 

Quando lemos The Waste Land, por exemplo, a impressão que nos ocorre é que o poeta modula, como numa composição musical, a nossa emoção por meio de fragmentos que vai juntando em sequência. Não há um enredo, nem mesmo uma voz lírica em que se apresente o poeta, como no lirismo de extração romântica. 

A forma de transmitir, ou melhor, produzir a emoção em arte, para simplificar muito os seus termos, não é expressando-a, confessando-a ou descrevendo-a. É buscando algo objetivo que seja capaz de despertá-la no leitor. 

Também poderíamos tentar aproximar o objetivo de evitar a visão própria à noção de despersonalização, tal como a encontramos em “Tradição e o talento individual”. Mas creio que aí há diferenças importantes, bem mais relevantes do que eventuais semelhanças. 

No caso do haikai, a “visão própria” é basicamente a intenção. Veja-se:

 

Os versos de alguns, porque eles querem atribuir-lhes brilho, carecem precisamente de brilho (en). O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza (shiori). É porque eles querem atribuir-lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito. [as referências dessas citações podem ser encontradas no livro Haikai – antologia e história]

 

 

Esta citação também permite ver algo muito interessante, relevante para o haikai conforme definido por Bashô e sua escola: a aversão aos “artifícios de palavras”, que vai junto com o elogio da espontaneidade. Mas uma espontaneidade especial, obtida com um rigoroso treinamento, que dela elimina justamente a “visão própria”. 

 

Outro ponto que me parece distintivo do haikai é que esse tipo de poesia, tal como proposto ali, é sempre feita “em situação”. Ou seja, o espírito seleciona – digamos assim – in loco os elementos da realidade objetiva, de acordo com a sua correspondência. E a segunda parte daquela primeira citação retorna ao ponto há pouco destacado, que é a apresentação do haikai como um caminho de aprimoramento espiritual:

 

Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.

 

O tipo de despersonalização implicado pelo haikai é, portanto, muito particular, pois não se trata aqui apenas de uma arte. É certo que isso se poderia, com algum esforço, dizer de qualquer arte. Mas o que é distintivo do haikai é a insistência, a partir de Bashô, nesse caráter de exercício espiritual. De ser um a busca da verdade, assim como sucede com outras artes tradicionais, por exemplo, o Ikebana ou o chá. Por isso mesmo, o valor de um haikai produzido na escola de Bashô não se esgota na sua forma ou beleza abstrata, mas é relativizado (como vemos nos livros canônicos) em função do estágio do aprendiz no caminho.

 

Ia terminar aqui a exposição, mas acho que preciso ainda de um ou dois parágrafos.

 

Então seguirei com mais dois ou três parágrafos e depois, oportunamente, relei tudo isto e disporei estes textos no blog...

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Parte 5/5

 

 

Em certo ponto da minha vida, depois de muito lidar com poesia contemporânea, dei conta de que simpatizava bastante com algumas passagens do célebre texto de Gombrowicz, “Contra os poetas”. 

 

Por exemplo, com esta:

 

“Por mais que se diga que a arte é uma espécie de chave, que a arte da poesia consiste precisamente em alcançar uma infinidade de matizes com poucos elementos, tais e parecidos argumentos não ocultam o primordial fenômeno de que com a máquina do verbo poético ocorreu o mesmo que com todas as demais máquinas, pois em vez de servir a seu dono se converteu em um fim em si; e, francamente, uma reação contra esse estado de coisas parece ainda mais justificada aqui do que em outros campos porque aqui estamos no terreno do humanismo par excellence.” [Utilizo aqui a tradução disponível em https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2015/06/cad17.pdf]

 

Ou com esta:

 

“Mas a poesia pura, além de constituir um estilo hermético e unilateral, constitui também um mundo hermético. E suas debilidades aparecem ainda mais cruas quando se contempla o mundo dos poetas em seu aspecto social. Os poetas escrevem para os poetas. São os poetas que prestam homenagens ao seu próprio trabalho e todo esse mundo se parece bastante com qualquer outro dos tantos e tantos mundos especializados e herméticos que dividem a sociedade contemporânea. Os enxadristas consideram o xadrez como o ápice da criação humana, tem suas hierarquias, falam de Casablanca como os poetas falam de Mallarmé e, mutuamente, prestam-se todas as homenagens. Mas o xadrez é um jogo, enquanto que a poesia é algo mais sério, e aquilo que resulta simpático nos enxadristas, nos poetas é sinal de uma mesquinhez imperdoável. A primeira consequência desse isolamento social dos poetas é que o mundo poético todo se infla, e mesmo os criadores medíocres alcançam dimensões apocalípticas e, pelo mesmo motivo, problemas de pouca importância ganham uma transcendência que assusta.” 

É verdade que só li o ensaio depois deter estudado seriamente e praticado o melhor que pude o haikai. Mas creio que esse sentimento, que respondeu depois pela minha simpatia pelas formulações de Gombrowicz, deve ter sido um dos vetores de minha paixão pelo haikai e um dos motivos da busca que por ele empreendi. Afinal, não é de Bashô (segundo Kyorai) a afirmação de que um camponês iletrado ou uma criança poderiam eventualmente compor um bom poema à sua maneira, o que era impossível para os letrados de outras escolas?

 

Isso não quer dizer que eu tenha por um instante deixado de lado meus poetas modernos preferidos (Eliot, por exemplo). Nem que eu não tenha tido outros motivos, provavelmente até mais fortes, literários e pessoais, para me dedicar bastante ao estudo e à prática do haikai. Entretanto, não tenho dúvida de que também contou para esse interesse o fato de o haikai me parecer, em algum momento, um bom antídoto contra o tipo de atitude que Gombrowicz descreve no seu tempo e que me parece ainda muito presente, quase sufocante, na poesia brasileira do final do século XX e nestas primeiras décadas do XXI.

Por outro lado, é certo que o haikai que me atraiu e que procurei tornar acessível e atraente por meio da redação da longa apresentação do “Haikai – antologia e história”, da criação da lista Haikai-L e de tantos textos publicados em jornais ou no meu blog, não foi o que mais interessou, nem o que foi mais estudado ou praticado entre nós. Em vez disso, o haikai se tornou ou continuou a ser, em grande parte, o produto da aplicação de um conjunto de normas simples, dando origem em muitos casos a uma espécie de passatempo de salão. O que não é ruim em si mesmo, está claro, pois um dos aspectos relevantes do haikai, como tentei mostrar, é o seu caráter de atividade, de prática coletiva. O que quero dizer é que o lado que me pareceu e parece mais interessante e motivador no haikai, que é a sua concepção como caminho e exercício espiritual, tende entre nós a se apagar perante o apelo da prática mais fácil.

Provavelmente venha daí o afastamento regular e talvez salutar que eu mantenha em relação ao haikai, embora de tempos em tempos, como nestes, de novo se avive a paixão e a esperança.