Quando vim para o IEL como docente, em março de 1986, passei a dividir uma sala com Alexandre Eulálio. Ele já era professor ali desde 1979. Mas por essa época eu já não frequentava o Instituto, a não ser para os trâmites finais da minha dissertação, defendida em 1981. Com ele convivi pouco, porém. Em meados de 1988, faleceu.
Até sermos colegas, o que eu sabia dele era que tinha sido diretor da Revista do Livro e que era mineiro. O que não era verdade. Alexandre Eulálio era carioca, mas com tanta paixão por Minas que um colega dizia que ele conseguia fazer de um pano de boca de um teatro da província o objeto de uma explanação erudita e sedutora da qual nunca suspeitaríamos. Soube depois que não só não nascera em Minas, e sim no Rio, onde estudou e amadureceu, mas ainda que fora batizado não como Alexandre Eulálio Pimenta da Cunha e sim Alexandre Magitot Pimenta da Cunha. É provável que Eulálio lhe tivesse parecido mais mineiro do que Magitot, embora em matéria de mineirice um certo sobrenome nada vernáculo encontrasse poucos rivais.
A sala que dividíamos era, na verdade, uma meia sala, pois tínhamos uma janela compartilhada com a vizinha. E era espartana: duas mesas de fórmica, um armário deserto e paredes de blocos de concreto mal pintados de branco. O único adorno era um pôster, no qual D. Pedro II se exibia em traje de gala.
Alexandre era monarquista convicto. Mais do que isso, tinha amizades antigas na família imperial e participava de cerimônias, a convite dos nobres, em Petrópolis. Ouvi dizer que consumira uma aula dupla na descrição e análise do pôster da nossa sala, mas pode ser apenas exagero.
Costumo pensar que tenho boa memória. Lembro-me, com frequência, até de frases ditas numa fatídica reunião ou aula feliz de há décadas. Sei que aprendi muito com Alexandre, não tenho dúvida disso. Mas não me lembro bem o quê. Certamente não foi que “Dona Guidinha do Poço” é um dos maiores romances brasileiros. Nem que o regime monárquico é superior ao republicano. Que ele me ensinou muito, isso ensinou, porque podia discorrer por horas, talvez por dias, sobre qualquer assunto que lhe despertasse a paixão. A coisa podia começar como um fio d’água. Logo ganhava um pouco de corpo, ramificava-se, enfrentava obstáculos, que arrastava ou rodeava, descobrindo um caminho insuspeitado; logo afluía para um curso maior, e quando a gente menos percebia já tudo vinha aos borbotões, em cachoeira. Mas não tinha foz esse caudal. Pelo contrário, podia voltar a um dos pontos de afluência, pegar um igarapé, um rio da mesma bacia ou, de um salto, atravessar uma fronteira, para depois, em outro susto e maravilhamento, cruzar o oceano. Ou então, pelo contrário, empacar num veio extinto perto de Vila Rica, que logo vicejava como testemunho fluente de corredeiras e correrias de outro tempo.
De Alexandre, além dessas conversas, tenho apenas três lembranças precisas.
A primeira é de algo que ocorreu semanas depois de eu ser contratado. Eu voltava do almoço, pouco antes das aulas da tarde. Mal nos conhecíamos. Encontrei-o em alvoroço. Lembro-me sobretudo do modo como esfregava as mãos e passava a palma de uma sobre o dorso da outra. Daria a primeira aula do semestre no curso de graduação e confessou estar em pânico. Eu lhe assegurei que comigo era o mesmo, que a primeira aula era sempre um momento tenso, mas ele me fez ver que não era por ser a primeira. Eram todas. E então me disse algo que me esforcei para levar a sério: que ele era diferente de nós, não tinha formação, era um autodidata, um leitor sobretudo, sem treinamento, nem preparo etc. Não sei o que lhe respondi. Provavelmente alguma banalidade tranquilizadora, pois me parecia absurdo, descabido, o que ele confessava. Nos outros dias de aula, pude ver que não era exagero o que me dissera sobre a tensão de cada vez. Mas encontramos então uma forma de lidar com aquilo, por meio de perguntas irônicas sobre o estado de espírito de cada um, na hora mais terrível. E não poucas vezes fomos rindo daquelas piadas a caminho das salas de aula.
A segunda foi assim: eu dirigia, Alcir ia ao meu lado e Alexandre atrás, mas inclinado para a frente, bem no meio de nós. Era um Fusca. Tínhamos passado um dia muito agradável na casa de campo de um colega e voltávamos tarde. Alexandre mencionou um velório a que tinha ido ou tinha de ir. Então, de súbito, nos perguntou o que achávamos: haveria algo após a morte, ou tudo terminava ali mesmo? Mas não perguntou de passagem: insistiu no assunto, e num tom que fez com que Alcir e eu terminássemos por ficar um pouco perturbados.
A última lembrança é de algo que ocorreu pouco antes de ele morrer. Maria Eugenia me ligou, disse que vinha com o Alexandre, perguntou se eu estava em casa e se queria almoçar com eles. Encontrei-os na frente da igreja do Cambuí. Alexandre estava mais magro, mas de muito bom humor. Fez questão de visitar a construção de estilo meio mexicano. Contou que conheceu o arquiteto já velhinho, discorreu sobre as características de cada parte, relacionou essa igreja com alguma outra.
Fomos a uma churrascaria bem ao lado. Ele precisava comer carne, me disse. Estava muito anêmico. Almoçamos ali, de onde se podia ver ainda o flanco da igrejinha, rindo em boa disposição. Abraçou-me ao partirem.
Ao dar-me a notícia da sua morte, Maria Eugenia contou-me que a visita ao Cambuí tinha sido parte do périplo de despedida das pessoas de que ele gostava.
Alcir e eu fomos vê-lo pela última vez. E voltamos, no mesmo Fusca, lembrando daquela pergunta insistente que ele nos fizera poucos meses antes.
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