segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Poesia da natureza – a aclimatação do haiku tradicional no Brasil

    

O haicai é uma das formas mais populares de poesia no Brasil hoje. A partir de um núcleo formado por imigrantes e descendentes diretos de imigrantes, localizado em São Paulo, muitos outros foram se constituindo pelo país afora. Seguindo a denominação da célula-mater, o Grêmio Haicai Ipê, denominam-se também grêmios. 

            Nasceram esses grêmios principalmente da ação, por assim dizer, evangelizadora, desenvolvida por Teruko Oda, que deu oficinas pelo país a fora e estimulou a continuidade do trabalho de seus alunos mediante a formação dessas agremiações.

            Teruko Oda é uma excelente poeta. Quem quiser conhecer a sua produção pode ver uma amostra muito significativa num livro publicado pela editora Escrituras, intitulado Furusato-no-Uta/Canção da terra natal. Trata-se de um texto misto de poesia e prosa, nos moldes dos diários poéticos japoneses, que faz retornar o haicai a uma de suas origens, a obra de Matsuo Bashô.

            Teruko é nissei e tem, com o haicai, uma ligação pessoal importante: é sobrinha e discípula de Goga Masuda (1911-2008-), que foi um dos idealizadores e principais orientadores do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 1987.

            Masuda, por sua vez, foi discípulo de Nenpuku Sato (1898-1979).

            E aqui vale uma nota histórica e genealógica.

            No Japão, a partir da restauração Meiji, a influência ocidental se espalhou de forma avassaladora na literatura e nas artes em geral. 

Para fazer frente ao que consideravam uma ameaça à nacionalidade e uma perda da identidade cultural, alguns escritores e artistas se empenharam na preservação das artes japonesas tradicionais. 

Um deles foi Masaoka Shiki (1867-1902), poeta que se dedicou a promover a prática de um tipo de poesia até então denominada hokku, ou haikai-hokku. Por esse termo se designava uma composição de dezessete sons, de caráter objetivo, estruturada por justaposição de elementos e centrada numa palavra que faz referência unívoca a um determinado momento no suceder das estações do ano. Esse pequeno poema normalmente era parte de uma composição maior, coletiva, ou vinha acompanhado de um desenho.

O grupo reunido à volta de Shiki, sua escola, terminou por ser referido pelo nome da revista em que divulgava a sua produção, Hototogisu (nome japonês do pássaro cuco). 

Fundada em 1897, a Hototogisu existe até hoje e foi responsável pelo renascimento do haicai japonês em novas bases. 

Por iniciativa do mestre, a forma poética passou a ser denominada “haiku” – nome que ele criou pela contração de haikai-hokku – reforçando assim uma das bases da sua ação: afirmar o terceto como obra independente da prosa ou do desenho com que tradicionalmente fazia conjunto, ou seja, afirmá-lo como forma poética esteticamente autônoma, capaz de concorrer com as recentes formas importadas do Ocidente.

Um dos expoentes da Hototogisu foi Takahama Kyoshi (1874-1959), que sucedeu Shiki na liderança do grupo, aumentando o número de seguidores.

E aqui reatamos o fio da nossa história, pois foi através de um dos discípulos de Kyoshi, Mizuho Nakata (1893-1975), que Nenpuku Sato se iniciou no haicai da Hototogisu.

Em 1927, Nenpuku tomou um navio para o Brasil. Tinha 29 anos de idade e já era bem conceituado na arte do haiku. Vinha tentar a sorte na agricultura, no interior de São Paulo e ao partir ouviu de seu mestre: "Vá e semeie o haiku na nova terra".

Nenpuku empenhou-se a vida toda nessa missão. Divulgou o haicai por quatro estados brasileiros e ao longo dos anos granjeou cerca de 6000 discípulos que, como ele, escreveram no idioma japonês. 

Essa produção, que foi ampla, pujante e de grande relevância para a colônia, infelizmente é até hoje desconhecida dos brasileiros que não dominam o idioma japonês. Também é quase desconhecida dos japoneses e seus descendentes no Brasil, pois não foi  estudada sistematicamente na universidade, nem recolhida em volume, restando dispersa em jornais e arquivos particulares. 

Ainda na década de 1970, muitos seguidores de Nenpuku Sato eram vivos e no aniversário de 20 anos da sua morte e 40 do falecimento de Takahama Kyoshi, 100 dos remanescentes se reuniram no bairro da Liberdade para uma sessão de composição de haicais. 

O principal problema enfrentado por Nenpuku Sato e seu grupo, na aclimatação do haiku ao Brasil, foi como vincular a observação pontual objetiva, que caracteriza o haiku, a um determinado momento na sucessão das estações do ano. 

Diferentemente do Japão, onde as atividades humanas e os fenômenos meteorológicos estavam codificados e sedimentados pela prática poética secular e eram, portanto, de alcance geral para todas as regiões do pequeno arquipélago, aqui a extensão do país gerava experiências muito diversas. 

O haiku brasileiro (designemos assim o poema composto em japonês, nos moldes da Hototogisu) teve como primeira tarefa de aclimatação a necessidade de escolher e fixar termos relacionados à sazonalidade brasileira e à cultura do país: os kigos (palavras de estação). 

Sendo uma arte que tinha no registro objetivo uma das pedras de toque, não fazia sentido utilizar os kigos japoneses. Era preciso não só descobrir os kigos brasileiros, mas ainda fixá-los nas bases métricas tradicionais, o que trazia uma dificuldade a mais, pois era preciso encontrar uma forma convincente e conveniente de grafar, em japonês, as palavras brasileiras ou latinas que designavam elementos botânicos e meteorológicos, bem como os feriados religiosos e as datas nacionais. Mesmo objetos de uso comum precisavam de transliteração, como, por exemplo, o lampião, que vi referido num haiku como “aradin” – ou seja, Aladdin, que era a marca mais conhecida.

Nenpuku enfrentou com muito sucesso essas dificuldades, mas lhe faltou um último passo para semear o haiku no Brasil: escrever em português. Com o envelhecimento da população imigrante e o desinteresse dos jovens nas práticas tradicionais, essa seria a única maneira efetiva de radicar o poema japonês na sua nova terra.

Essa missão vai ser assumida por Masuda Goga, que juntamente com Teruko Oda trabalhou em duas frentes: na criação de um agrupamento poético dedicado à prática do haiku em português e na elaboração de um catálogo de “kigos” brasileiros. 

Aqui cabe uma nota terminológica: se é conveniente e correto utilizar o nome haiku para designar o poema composto em japonês no Brasil, segundo os ditames de Shiki, é também conveniente e correto utilizar o nome haicai para nomear as várias formas de apropriação do haiku no Brasil, a começar por Guilherme de Almeida e incluindo todas as demais formas, inclusive a tradicional, representada pelo grupo de Masuda Goga.

Retomando agora a nossa história, vejamos em que consistiu o trabalho de Goga.

O primeiro ponto a considerar é que a criação de um agrupamento – no caso do Grêmio Haicai Ipê – é essencial para restaurar um aspecto do haicai tradicional: a sua composição sob a supervisão de um mestre, um orientador. Os grêmios funcionaram e funcionam aqui nos moldes japoneses: estabelece-se um tema (no caso, um kigo); os integrantes escrevem; os haicais são lidos sem indicação de autoria e os membros vão escolhendo os que mais lhes agradam; escolhidos os mais interessantes, o mestre ou orientador os comenta, valorizando os aspectos que julgar adequados, e apontando soluções outras para eventuais problemas.

Para que a prática seja uniforme e conforme à tradição, estabelecem-se critérios formais. No caso, à duração das sílabas japonesas substituiu-se a sílaba poética contada à nossa maneira, e aos cortes da forma justapositiva original se fez equivaler o verso, espacialmente definido – do que resulta um terceto imparissilábico de 5-7-5 sílabas poéticas contadas até a última tônica de cada verso. E torna-se obrigatório que o tema (o kigo) indicado para a composição compareça explicitamente no terceto.

Daí a importância de haver uma listagem de kigos e – como não é nossa tradição associar sistematicamente estados de espírito a fenômenos sazonais – a necessidade de definir não só a sua ocorrência e enquadramento sazonal, mas ainda o “clima”, o “mood” associado a cada um.

Nesse ponto, creio que vale a pena esclarecer a importância do kigo para o haicai tradicional. 

O kigo – a palavra de estação  - tem duas funções principais: uma função “temática” e uma função “técnica”. 

Tematicamente, o kigo vincula o poema a um momento preciso na sucessão das estações, por meio do registro objetivo. Nesse sentido, o haicai é poesia da natureza. 

Tecnicamente, o kigo responde pela eficácia do breve poema, pois permite conotar um estado de espírito de modo muito econômico. Por exemplo, “flores” é um kigo em japonês, porque em poesia designa uma flor específica, a de cerejeira, que representa o esplendor da primavera. Sua simples menção evoca a contemplação da florada em atividades diurnas e noturnas e conota a ideia de transitoriedade, porque a observação da florada de cerejeira é também a observação do seu despetalar. Da mesma forma, a palavra “lua”, sem qualificativos, refere a lua cheia de outono. O campo seco, as primeiras chuvas de primavera, o capim alto, as primeiras neves – cada uma dessas locuções conota um preciso momento sazonal e um determinado estado de espírito, materializado em práticas culturais específicas.

            Assim, o poeta de haicai, com uma pincelada, estabelece o mood de base tradicional, que nas duas pinceladas restantes tratará de acentuar, modalizar ou mesmo contradizer.

            A importação dessa técnica, já se vê, não tem sido tarefa simples nem fácil. Não só porque a nossa tradição poética não enfatiza tanto a notação dos fenômenos naturais, mas também porque não temos associações imediatas com eventos sazonais, a não ser alguns poucos, derivados principalmente das festas e feriados religiosos.

            No Brasil, o kigo é ainda dificultado pela enorme variação longitudinal e latitudinal. O inverno, por exemplo, é uma coisa para o habitante das serras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e outra para o habitante da Amazônia ou dos cerrados do Centro Oeste. O regime dos ventos varia igualmente, assim como o das águas da chuva e o das tempestades.

            Um problema enfrentado por um praticante do haicai tradicional é, portanto, a falta de conhecimento dos fenômenos sazonais de uma região por habitantes de outras. A dificuldade mais relevante, porém, é o fato de não estarmos acostumados a conhecer e usar muitos nomes de plantas e animais. Diferentemente da cultura japonesa, que se esforça para nomear e descrever cada flor, árvore ou arbusto – por menos importantes que sejam –, para o brasileiro médio o que não é flor é mato. E soam tão estranhas num poema as designações regionais de plantas e animais, quanto seus nomes científicos. Por exemplo, neoglazióvia, espatódea, muirapitanga ou mesmo sibipiruna. 

Além disso, não associamos nenhum estado de espírito a nomes comuns de plantas ornamentais, como ciclâmen, antúrio, samambaia, avenca ou crisântemo. O mesmo sucede no reino animal. Além dos domésticos, poucos são conhecidos e observados em base cotidiana. Por isso, os bichos, quando não são apenas bichos, parecem conformar-se em poucas categorias e entre os citadinos a desorientação é geral. Por exemplo, Paulo Leminski e Carlos Verçosa confundem (talvez por amor ao som e à paronomásia) a rã com o sapo. Para um japonês é claro que quem pula na água ao menor ruído é a rã, e que o sapo é um animal terrestre, em poucas ocasiões retornando à água de onde veio. E mesmo os fenômenos migratórios, tão importantes para a poesia do hemisfério norte ocidental e oriental, têm para nós – salvo algumas exceções – pouca ressonância literária.

Conscientes disso tudo, Teruko e Goga se dedicaram por anos a coletar e exercitar em haicais os kigos brasileiros de todas as regiões do país. Desse trabalho nasceu a primeira (e única) kigologia brasileira, publicada em volume quase dez anos após a formação do Grêmio Haicai Ipê, em 1996: Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

Composto de três partes, o livro traz primeiramente um estudo e uma catalogação dos kigos brasileiros, ou seja, inúmeras palavras relativas às especificidades de cada estação em todas as regiões do país: animais, festas populares e religiosas, flores e vegetais vários, comidas sazonais, fenômenos climáticos. 

A especificidade desse livro brasileiro em relação aos catálogos japoneses, é que lá os catálogos são sistematizações de algo que se definiu na prática, ao longo de séculos. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. 

Daí que a segunda parte da kigologia brasileira seja uma antologia, na qual vários desses kigos talvez compareçam utilizados pela primeira vez, em haicais escritos pela organizadora, com o fim expresso e exclusivo de exemplificar o texto descritivo. 

Aqui, portanto, evidencia-se a grande dificuldade dessa empresa e desse livro: uma enorme porcentagem das expressões alinhadas como kigo não se sedimentou a partir da prática poética – como no Japão –, mas nasceu de um esforço racional de identificação ou mesmo de criação dos kigos regionais e nacionais. Por conta disso, muitas dessas expressões correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e o lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô.

É possível que a prática dos grêmios espalhados pelo Brasil, orientada pelo catálogo dos kigos brasílicos, termine por incorporar à linguagem poética comum os muitos termos sazonais que por ora parecem exóticos ou pouco coloquiais. Mas também é possível que, pelo contrário, se crie uma espécie de dialeto, que faça sentido apenas para o grupo dos praticantes.

A trajetória do haicai brasileiro tradicional ainda é muito breve e está, por assim dizer, em sua terceira geração. É difícil fazer uma previsão de qual será o seu futuro. Entretanto, uma coisa já é certa e constitui conquista singular: os muitos grupos de haicai espalhados pelo país e a divulgação do haicai tradicional por meio das mídias sociais já produziram e produzem um amplo, verdadeiro e literal (por conta das reuniões, concursos e eventos presenciais de âmbito estadual e nacional)  movimento poético. 

Se desse grande conjunto de agremiações e poetas não resultar uma produção poética significativa no quadro geral da literatura contemporânea brasileira, em termos qualitativos, ao menos já se construiu aqui uma animada forma de produção e sociabilidade poética, à volta do que podemos denominar “poesia do kigo”. 

Essa foi a principal conquista até agora na aclimatação do haicai à língua portuguesa no Brasil: mantê-lo, tal como no Japão, como prática social coletiva de observação e registro dos ciclos sazonais. Resta agora aguardar para ver que frutos produzirá esse notável e consistente esforço de construção de uma nova “poesia da natureza” brasileira.

3 comentários:

  1. Texto obrigatório não só para conhecer e entender a trajetória do haiku e o haicai brasileiro até o presente, mas para refletir sobre seu futuro entre nós!

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  2. Esta providencial reflexão contribui para alertar cada praticante e cada grupo de praticantes de haicai quanto a sua responsabilidade na continuidade e no desenvolvimento no Brasil desta secular modalidade da rica poesia de origem japonesa.

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  3. Que texto, professor Paulo Franchetti! Imprescindível a todos que se aventuram na prática maravilhosa do haicai. Muito obrigada por compartilhar, contribuindo para o nosso aprendizado e reflexão sobre o assunto. Já impresso e à mão...sempre!

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