O Mandarim
[prefácio a uma edição escolar
do livro, de 1998]
Eça de Queirós vem referido, nos manuais
escolares, como introdutor e maior expoente do Naturalismo português. É
verdade. Mas também é verdade que Eça não permanceu fiel a vida toda aos
princípios definidores daquele movimento de idéias. De fato, se por Naturalismo
entendermos o romance de análise e crítica social, baseado na investigação das
determinações que o meio físico, os costumes e a herança genética impõem às
personagens, apenas poderão ser denominadas naturalistas duas novelas queirosianas:
O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Suas outras obras pouco
ou nada têm a ver com o Naturalismo, como podemos ver no rápido esboço da sua
evolução literária, que apresentamos a seguir.
Seus primeiros textos, escritos por volta de
1865 e só reunidos postumamente sob o título de Prosas Bárbaras, são
narrativas breves, marcadas pela influência de nomes emblemáticos da
literatura fantástica – Nerval, Poe, Hoffman, Heine -- e sobretudo pelo
espiritualismo de Vítor Hugo. Impregnadas de um forte sentimento panteísta, nem
nos temas nem na forma trazem essas Prosas qualquer indicação de
que o seu autor será, passados uns poucos anos, o convicto defensor do
Naturalismo artístico.
Entretanto, já em 1871, na famosa conferência
do Casino Lisbonense, Eça vai renegar conjuntamente a prosa fantástica e o
romance histórico, e proclamar que o requisito básico da literatura moderna era
a verdade; seu método, a análise; e seu objetivo, a melhora da sociedade por
meio da crítica e da denúncia dos costumes. Era o triunfo da perspectiva
naturalista, que logo produzirá os dois romances que nomeamos há pouco.
Mas seria rápido esse intermezzo
programático. Em 1880, apenas dois anos depois de O Primo Basílio, Eça
vai dar a público O Mandarim – uma novela fantástica, em cujo enredo tem
participação decisiva uma figura declaradamente romântica: o Diabo.
Numa carta ao editor da Revue Universelle,
que serviu de prefácio à publicação francesa da novela, Eça se mostrava bem
consciente da singularidade do livro face à tendência estética dominante:
“tendes aqui, meu Senhor, uma obra bem modesta e que se afasta
consideravelmente da corrente moderna da nossa literatura, que se tornou,
nestes últimos anos, analista e experimental”. Isso porque O Mandarim
era “um conto fantasista e fantástico, onde se vê ainda, como nos bons velhos
tempos, aparecer o diabo, embora vestindo sobrecasaca, e onde há ainda
fantasmas, embora com ótimas intenções psicológicas”. A percepção do escritor é
claríssima: apesar da atualização do ambiente da trama, o enredo fabuloso, o
gosto pronunciado do exotismo, a ausência de interesse nos vários
condicionalismos que determinam a ação dos indivíduos e a intervenção do
sobrenatural configuram uma narrativa de molde romântico, ou neorromântico.
Nessa mesma carta, prosseguia Eça de Queirós
com uma frase que vale a pena transcrever: “entretanto, justamente porque esta
obra pertence ao sonho e não à realidade, porque ela é inventada e não fruto da
observação, ela caracteriza fielmente, ao que me parece, a tendência mais
natural, mais espontânea do espírito português.” Pode ser que a frase se
aplique também ao espírito português, mas o que realmente importa é observar
que se aplica perfeitamente ao espírito do próprio Eça, que, a partir de O
Mandarim, vai abandonar progressivamente os caminhos do Naturalismo e
retomar algumas características que já se encontravam nos seus primeiros
textos: o gosto pelo exotismo das paisagens e civilizações e o pendor alegórico
e moralizante. São essas características – centrais no texto de O Mandarim
– que no final da vida de Eça de Queirós irão dar origem às impressionantes
vidas de santos.
Do ponto de vista da evolução literária de Eça
de Queirós O Mandarim representa, portanto, um momento de virada: aquele
em que o escritor abandona a “preocupação naturalista”, que, segundo o próprio
Eça, embora tivesse servido para lhe disciplinar o espírito, também “o
condenara a reprimir, muitas vezes sem vantagem, os seus ímpetos de verdadeiro
romântico que no fundo era”.
Determinado seu lugar na produção queirosiana,
observemos rapidamente essa obra singular. O Mandarim é antes um conto
que uma novela, pois sua trama se concentra à volta de uma só personagem e a
ação se reduz a um único acontecimento central, que implica todos os
desenvolvimentos posteriores. O registro genérico é o da farsa moralizante, e o
ponto de partida é um problema moral que era conhecido, no século passado, como
o “paradoxo do mandarim”. Formulado em 1802 por Chateaubriand, consistia numa
pergunta: se você pudesse, com um simples desejo, matar um homem na China e
herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém
descobriria, você formularia esse desejo? Vários autores glosaram esse tema ao
longo do século passado, e o texto de Eça é talvez o seu último e mais literal
desenvolvimento.
Do ponto de vista da crítica moral, lendo O
Mandarim percebemos que há duas linhas independentes de desenvolvimento. A
primeira é a mais simples. Mostrando-nos que todos o tratam de acordo com o
dinheiro que possui, Teodoro nos vai apontar a hipocrisia que domina as
relações pessoais e sociais. A segunda é a mais complexa, porque envolve a
auto-representação do narrador. A ideia geral é a de que o crime não compensa,
independentemente de qualquer outra consideração. Como ilustração desse
princípio é que Teodoro narra aos seus leitores o seu caso exemplar: ao longo
do tempo, após o crime que lhe propicia a riqueza, foi-se tornando infeliz, a
tal ponto que o retorno à vida rotineira e medíocre de hóspede pobre da pensão chega
a parecer-lhe uma forma de conseguir alguma paz de espírito.
Do ponto de vista da estruturação da narrativa,
há igualmente duas observações a fazer. No que diz respeito à história da obra queirosiana,
talvez valha a pena lembrar que O Mandarim é a primeira obra
relativamente extensa escrita em primeira pessoa. Essa observação pode
reforçar o argumento, desenvolvido acima, de que o conto representa um momento
de rejeição do modelo naturalista, que propunha a narrativa em terceira pessoa,
mais adequada à análise objetiva. Já no que diz respeito à história do
tratamento literário do paradoxo, a novidade do texto de Eça é a viagem à
China. No seu texto, a China não é apenas o lugar abstrato, incógnito e remoto,
onde vive um homem desconhecido cuja vida é destruída por um ocidental. Pelo
contrário, ganha concretude e responde por cerca de metade do número de páginas
da história. Da mesma forma que o Médio-Oriente em A Relíquia, a China é
praticamente tudo em O Mandarim. Mas a diferença é que, enquanto em A
Relíquia Eça descreve um ambiente e civilização que observara pessoalmente,
em O Mandarim nos apresenta um lugar construído a partir de relatos de
terceiros, de leituras e, principalmente, pela livre imaginação. Daí,
justamente, o interesse da viagem de Teodoro, que nos conduz a uma China
colorida, mirífica, bastante bizarra, em que encontramos uma espécie de súmula
da visão europeia do que fosse o Extremo-Oriente.
Para o leitor de hoje, como para o de ontem,
sem dúvida a parte mais atraente de O Mandarim continua a ser a viagem
chinesa. O resto do conto tem um sabor conhecido e um registro genérico em que
o desfecho é bastante previsível. Assim, é mesmo a fantástica viagem ao Império
do Meio o que constitui o núcleo do texto e o mantém vivo e interessante. É
também a viagem que singulariza esse texto na literatura portuguesa do final do
século, fazendo dele um delicioso capítulo na história do exotismo orientalista
que percorreu toda a cultura europeia da segunda metade do século passado.
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