OLIVEIRA MARTINS, FERNANDO PESSOA E A FIGURA DO HERÓI EM
MENSAGEM
Anais do XXIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa -
http://www.abraplip.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Anais-XXIII-Congresso-2011.pdf ]
A História de Portugal e a História
da civilização ibérica são livros que marcaram profundamente o imaginário
português dos últimos anos do século XIX e das primeiras décadas do XX. A
partir desses livros, e dos que se seguiram na pena de seu autor, ganha corpo
e expressão uma espécie de “complexo nacional” frente ao qual (em apoio ou
contraposição) se vai situar a inteligência portuguesa contemporânea e subsequente.
Antero, Eça e Junqueiro, no momento, António Sérgio, Jaime Cortesão e Fernando
Pessoa, posteriormente, são apenas os nomes mais notáveis que tratarão de
incorporar, combater ou transformar as principais teses e conclusões surgidas
nesses trabalhos.
A maior parte do primeiro
livro gira à volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio
depois de 1580 é visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutilmente
um indivíduo condenado, seguido da decomposição do corpo social já sem vida
própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, longos trechos dos capítulos trazem
prefigurações da desgraça, de que Alcácer-Quibir é apenas o desenlace
formidável.
Como já tentei mostrar
em outra parte, o procedimento básico e recorrente ao longo da obra histórica
de Oliveira Martins consiste em descrever e analisar acontecimentos
particulares como símbolos das grandes tendências ou transformações de um
universo mais amplo, classista ou nacional. [i] Todo o
seu livro da História de Portugal é
montado sobre esse procedimento. O terremoto de Lisboa são as reformas do Marquês
de Pombal. Cabral e o Gama são a exploração material e pérfida da Índia.
Albuquerque e D. João de Castro, a sua face genial e correta, embora inadaptada
à realidade do tempo. E D. João VI, “sujo, gorduroso, feio e obeso”, é o
emblema de 200 anos de decadência praticamente ininterrupta, “representante
quase póstumo de uma dinastia (...) de reis doidos ou ineptamente maus”.[ii] O
segundo é a recorrente explicação da decadência como expiação dos crimes
anteriormente cometidos.[iii] É certo que coexiste em Oliveira Martins pelo menos mais uma
interpretação da necessidade da decadência em Portugal, mas, no mecanismo
narrativo da História, a expiação é o
que mais impressiona. A outra interpretação da decadência, que com essa faz pendant, se encontra na História da Civilização Ibérica. E é
esta:
Caímos, passamos, porque é da
natureza de todas as cousas vivas – e uma sociedade é um organismo – nascer,
crescer e morrer.[iv]
No texto há pouco
referido, tratei também dos desdobramentos da metáfora organicista no
pensamento de Martins e, sobretudo, na organização da sua narrativa. Assim, não
vou abordar agora um dos seus mais notáveis desdobramentos, que é a oposição
entre nação e nacionalidade, embora tenha sem dúvida interesse para a
compreensão de Mensagem. Aqui, o foco
estará na constituição da figura do herói.
Essa é uma denominação
curiosa, na História de Portugal. Por exemplo, Afonso Henriques é sem
dúvida um herói, a quem cabe um papel central. Mas um papel que cumpre apesar
de si mesmo: “Afonso Henriques foi quem verdadeiramente consumou a separação de
Portugal, não pelos méritos próprios apenas, mas porque a direção política do
reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos fatos no sentido de definir
de um modo positivo a independência da nação”.[v] Quanto
aos méritos próprios, eis como o define o mesmo historiador: “valente,
medíocre, tenaz, brutal” e de “pérfido caráter” – quase um bandido, em suma.[vi] O outro
grande herói do período de formação é, para o historiador, Pedro I – que ele
descreve como louco, gago, furioso na aplicação de uma justiça passional. Todos
os demais reis são figuras pálidas, sem expressão frente a esses dois, que, em
suas próprias palavras, eram os “indivíduos tipos, os dois loucos – um,
frenético, brandindo o punhal mortífero; outro, carrancudo e fero, empunhando
o látego do algoz e a vara de juiz, ou risonho e folgazão, dançando e cantando
nas ruas no meio da sua família, como um pai”.
Mais do que
indivíduos, vê-se, são eles símbolos da construção de um organismo que os
transcende, de que eles são ao mesmo tempo os criadores e os instrumentos. Por
isso, por buscar nos heróis a encarnação de uma ideia coletiva, além desses
dois “loucos”, nenhum outro rei da casa de Borgonha merece maior atenção na História de Portugal. Nem mesmo D. Dinis
merece algum elogio muito maior do que “já não é analfabeto, e mede bem o
valor da ciência”. E se o fundador da Universidade recebe algum destaque na
dúzia e meia de linhas anódinas com que comparece na História é apenas porque Martins lhe reconhece “uma intuição dos
caracteres modernos das nações”. De modo geral, a atenção do historiador se
fixa apenas naquelas personalidades que fogem da mediocridade ou do esperado,
naqueles caracteres que funcionam como símbolos de uma ideia que ainda não cabe
neles, que não ascendeu ao nível da sua consciência e por isso se manifesta
neles sob o aspecto da loucura e do grotesco.
Para o historiador,
era bem determinado o momento em que se estabelece a consciência nacional e
começa a vida da nação como um indivíduo completo e equilibrado: a Revolução de
1383.
Na História e no Camões, a revolução equivale a uma metamorfose:
Na crise de 1383, Portugal
aparece outro. Fundidos e assimilados, os elementos constitutivos da nação
tinham adquirido já o poder de organização bastante para ganhar uma consciência;
e é por isso que o movimento fundador da segunda dinastia se nos apresenta
como um ato popular ou coletivo, uma expressão positiva da vontade nacional,
enquanto as agitações anteriores não passavam de atos pessoais ou de classe,
revoltas de indivíduos.[vii]
Aí temos a extensão máxima da metáfora organicista, dentro de uma
perspectiva evolucionista. E, para tornar mais claro o ponto, leia-se o que
escreveu na História da Civilização
Ibérica:
As nações são, com efeito, seres
coletivos, e o seu desenvolvimento é em tudo análogo ao dos seres individuais.
A biologia, ou ciência da vida, abraça também a história dos povos. Os órgãos
do corpo social apresentam‑se, primeiro, como esboços rudimentares: e o conjunto
possui apenas o caráter de agregação. À medida que a ação e reação dos diversos
elementos obriga cada um deles a definir‑se e a especializar‑se, vai
aparecendo o princípio de coordenação comum, espécie de princípio vital
social.[viii]
Ao que acrescenta:
Logo, porém, e à maneira como se
desenvolve e tende a atingir a perfeição típica, a sociedade gera em si um
pensamento que é ao mesmo tempo o norte que dirige e a mola interior que move
o ser orgânico no seu desenvolvimento e afirmação (...)
E, por fim:
Quando as nações, depois de uma
lenta e longa elaboração, atingem esse momento culminante em que todas as
forças do organismo coletivo se acham equilibradas e todos os homens compenetrados
por um pensamento, a que se pode e deve chamar alma nacional – porque o mesmo
caráter tem nos indivíduos aquilo a que chamamos alma – é então que se dá um
fenômeno a que também chamaremos síntese da energia coletiva. A nação aparece
como um ser não apenas mecânico, quais são as primeiras agregações; não
somente biológico, como nas épocas de mais complexa e adiantada organização;
mas sim humano – isto é, além de vivo, animado por uma ideia. Nestes momentos
sublimes em que a árvore nacional rebenta em frutos, o gênio coletivo já
definido nas consciências, realiza esse mistério que as religiões simbolizaram
na encarnação dos deuses. Encarna, desce ao seio dos indivíduos privilegiados;
e dessa forma, adquirindo o que quer que é de forte que só no coração dos
homens existe, atua de um modo decisivo e heroico.[ix]
Chegamos assim à
concepção básica do movimento da história e da função do historiador, segundo
Oliveira Martins:
Todas as grandes épocas das
nações se afirmam por uma plêiade de grandes homens em cujos atos e pensamento
o historiador encontra sempre o sistema das ideias nacionais, anteriormente
elaboradas de um modo coletivo, atualmente expressas de um modo individual. O
herói vale pela soma de espírito nacional ou coletivo que encarnou nele; e num
dado momento os heróis consubstanciam a totalidade desse espírito.
A ideia é clara e,
lendo isso, fica evidente que os heróis da história não têm, na composição de
Martins, apenas o estatuto de recurso dramático, como já se julgou.[x] Nem sua história é uma narração que se apoia nos heróis como
concessões ao didático ou ao exemplar. No
entender de Oliveira Martins, se é verdade que para conhecer a história de uma
nação é preciso acompanhar a história das suas condições geográficas e das
suas instituições e classes, isto é, a história material e anônima, é também
verdade que apenas no “sistema dessas manifestações individuais poderemos
encontrar o fio histórico. Tudo era anônimo: tudo agora é pessoal; e na
tragédia histórica, preludiada por coros numerosos, ouvem‑se já as vozes
das personagens”.[xi]
O papel das individualidades
heroicas que representam a vontade, o propósito social, precisa, para ser mais
bem compreendido, ser projetado contra o pano de fundo de uma outra questão
central na concepção de história de Oliveira Martins: que lugar tem o imprevisto,
o fortuito, na ordem e na determinação dos acontecimentos históricos? O que
implica uma discussão sobre a possibilidade de previsão dos rumos futuros de
uma dada sociedade. Uma discussão, portanto, em última instância, acerca do
caráter da historiografia enquanto ciência.
Numa época em que o
fortuito era ou uma manifestação indireta da vontade ou providência divina, ou
um “adjetivo inventado para consolar a vaidade humana de ignorar a cada passo a
genealogia dos fatos e dos acontecimentos”, como pensava Herculano, Martins vai
tentar afirmar simultaneamente o caráter científico da história e a existência
do casual, do imprevisto na determinação do devir histórico.[xii] Nesse ponto, percebe-se a importância que teve, para o seu pensamento
sobre a História, a leitura da obra de Antoine-Augustin Cournot (1801-1877), de
quem herda inclusive a concepção de que o final do século iniciava um novo
período na vida das sociedades humanas: a pós-história.[xiii]
Nessa linha de
reflexão, para Oliveira Martins não havia dúvida, já em 1878, de que a História
era uma disciplina científica, como a Biologia ou a Química. Sucedia que, por
ser uma ciência de categoria superior, o seu campo de trabalho recobria
fenômenos que pertenciam a múltiplas e variadas “séries” de desenvolvimentos.
Daí que a previsibilidade – que se apoia na distinção entre o que é acidental e
o que é necessário ao longo de um determinado processo – fosse menor na ciência
histórica do que nas ciências inferiores. Nas suas palavras:
...o fortuito (...) cresce em
razão direta da categoria ou complexidade das ciências, e é por isso maior na
história do que na biologia, na biologia do que na física.[xiv]
Logo a seguir, para
exemplificar como a interferência das séries dificulta a previsão histórica,
escreve, no mesmo texto:
O inverno excepcionalmente frio,
que gelou o exército de Napoleão na Rússia, sem ser um milagre, é, porém, um
caso fortuito que veio impor uma marcha diferente daquela que as previsões da
ciência histórica e militar tinham o direito de prescrever. (...) Nem só o
encontro inoportuno ou intempestivo de duas séries independentes se deve
considerar fortuito, porque a espécie de influência que esse encontro exerce
sobre a marcha normal das leis naturais não tem virtude para lhe alterar a natureza
de incidente. Os acontecimentos fortuitos tanto podem embaraçar como auxiliar
a história normal; e se o frio inverno de 1813, destruindo o exército de
Napoleão é um caso fortuito, igualmente fortuito seria um inverno excepcionalmente
temperado que o levasse a S. Petersburgo mais fácil e rapidamente do que fosse
lícito esperar da marcha ordinária de tais empresas. (...) Os casos fortuitos
são na história infinitamente mais numerosos do que em qualquer outra ciência,
porque o número de séries que independentemente se desenvolvem dentro do seu
domínio (e por isso seus encontros, cuja repetição é progressiva e não proporcional),
além de conter o das que se dão dentro das ciências inferiores, contém o das
que se dão próprias das raças, das sociedades e dos indivíduos como seres
morais e naturais.[xv]
A expressão “história
normal” decorre da postulação de que haja um vetor previsível de desenvolvimento
da história, cuja direção, em linhas gerais, é possível determinar com base em
considerações objetivas, tais como a determinação geográfica e rácica do grupo
social, o estágio evolutivo de sua economia, seu poderio bélico etc.
Já se escreveu
bastante sobre o hegelianismo de Martins, bem como sobre o seu proudhonismo. E
é certo que a sua postulação de um herói coletivo, que encarne e expresse a
vontade coletiva, é de matriz hegeliana. Seu
Júlio César, como observou A. J. Saraiva, é o de Hegel. No entanto, também se
percebem claramente outras influências, já igualmente identificadas pela crítica,
anteriores ao conhecimento do filósofo alemão, de que o pensamento de Spencer,
de onde tomou a analogia organicista, é das mais notáveis. Falta estabelecer as diferenças,
aquilo que parece específico ou central na estrutura do pensamento de Martins em
relação aos autores cujo pensamento incorporou e transformou ao longo dos seus
trabalhos.
Um dos pontos fulcrais
da obra martiniana, que lhe permite de alguma forma acomodar as várias e talvez
inconciliáveis fontes teóricas que orientam seu discurso, é o seu particular
conceito de heroísmo. Para ele, são insatisfatórias as duas concepções de
herói correntes no tempo: não aceita nem a ideia de que esses indivíduos sejam
“espontânea e natural emanação das condições da sua época, porque amiúde
encontramos exemplos do contrário”; “nem tampouco (...) a teoria oposta que vê
nos grandes homens individualidades inteiramente livres e independentes que
atuam subjetivamente na sociedade”.[xvi]
Na sua concepção, os
heróis podem ser basicamente de dois tipos, conforme se coloquem a favor ou de
algum modo contra a corrente do tempo. Os que se colocam a favor e resumem as
tendências da época – os conquistadores e os grandes estadistas – ficam sendo
emblemas do momento porque são intérpretes – conscientes ou não – da história.
Os exemplos mais típicos dessa categoria seriam César e Filipe. Por outro lado,
e aqui está o ponto, há personagens que têm outro estatuto: os inovadores e
revolucionários, que são marcados pela predominância do “espírito subjetivo”
e pela luta – nesse caso, haveria um choque entre a série em que esse tipo se
envolve e a série que domina a sociedade naquele momento. O exemplo que nos
fornece desse segundo tipo é o romano Graco. A individualidade de uma
personagem do primeiro tipo, diz Martins, “é, sob o ponto de vista das leis da
história, uma individualidade, se é lícito dizer assim, coletiva; porque a
sua ação não altera nem desvia o caminho necessário da história, e a esfera do
fortuito circunscreve‑se à maior ou menor rapidez com que o movimento se
efetua, e às condições especiais que o caracterizam e acompanham”.[xvii] Esses
heróis são “propriamente símbolos: e por isso tantas vezes a erudição tem
descoberto o pequeno valor pessoal daqueles a quem as circunstâncias tornaram
para o povo a encarnação do seu pensamento, e o instrumento inconsciente das
leis históricas”.[xviii]
Já a individualidade
do segundo tipo é sempre muito rica, tem “altos merecimentos individuais; e é
natural que seja assim, uma vez que só uma energia excepcional de pensamento
subjetivo é capaz de arrostar de frente contra o majestoso sistema do organismo
social”.[xix]
Desse quadro em que se
destacam, por um lado, a multiplicidade das séries implicadas no objeto da
história e, por outro, a necessidade de entender a que tendências pessoais ou
coletivas correspondem os heróis, resulta uma postulação de grande importância
para o método de Oliveira Martins: a de que o herói é praticamente o princípio
inteligível do desenvolvimento histórico, porque é do seu destino que se podem
deduzir com segurança as forças reais em ação numa dada sociedade. Daí que ao
historiador não bastem os procedimentos normais das ciências, a saber, e,
nas suas palavras, “a observação e o sistema classificador” – do mesmo modo,
à linguagem do historiador “não bastam a precisão e a clareza; é mister sentir
e adivinhar, e pôr no estilo a vida e calor próprios das causas morais e
animadas”.[xx]
Mais do que um observador isento ou um narrador imparcial, portanto, o
historiador é um escritor inspirado, que busca identificar os heróis e
transmitir ao seu leitor uma interpretação em certa medida pessoal do seu
objeto, pois se a valorização dos heróis triunfantes não oferece problemas, o
herói fracassado é em grande medida “descoberto” ou valorizado em função de um
julgamento da sua grandeza subjetiva – o que quer dizer moral.
Se há um traço
constante e dominante ao longo de toda a obra de Martins, creio que é esse de
apreciar os heróis como o princípio de inteligibilidade da história. E como os
heróis não estão apenas sujeitos às tendências triunfantes ou derrotadas no
percurso histórico, mas evoluem também e dramaticamente contra o pano de fundo
do fortuito e do imponderável, é a reflexão sobre o seu destino que permite
que o historiador não só afirme a necessidade do que foi, mas também especule,
ou mesmo se lamente, sobre o que poderia ter sido.[xxi]
Ou seja: utilizando
amplamente os recursos da alegoria e do emblema, Oliveira Martins consegue ler,
na trajetória da vida pública das suas personagens, uma dimensão cósmica.
Movem-se com elas muito mais do que os interesses de determinadas famílias,
grupos ou classes sociais: há um destino fatal, uma espécie de moira, pairando sobre as suas cabeças;
há um obscuro sentimento de que a justiça se cumpre, ao longo do tempo; e há
nos seus grandes heróis uma espécie de transe que preside as decisões e os atos
mais relevantes do ponto de vista coletivo. A história de Portugal adquire
assim uma dimensão cósmica, como antes só a tínhamos visto em Camões e que depois
reencontraremos na Mensagem de
Fernando Pessoa.
António José Saraiva
percebeu muito claramente essa dimensão da História
de Portugal e em seu último trabalho sobre Martins atribuiu a esse livro
“um caráter único que nós só podemos definir dizendo, paradoxalmente, que é
uma obra de introspecção”. Para
explicar o que fosse esse “retrato introspectivo de uma nação”, escreveu o
ensaísta:
Ele entendeu que a realidade se
processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que os historiadores
comuns, julgando-se cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual
na análise científica, mas afastando-se cada vez mais daquilo que pretendem
explicar. (...) É por isso que, em comparação com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como
sombras imperfeitas.[xxii]
A presença do
pensamento de Oliveira Martins na Mensagem,
de Fernando Pessoa, já foi apontada, entre outros, por Helder Macedo, numa
conferência pronunciada no centenário de Pessoa, na Unicamp.[xxiii] E alguns anos
depois, António José
Saraiva, em A tertúlia ocidental, escreveu: “os três grandes livros sobre
Portugal são Os Lusíadas de Luís de
Camões, a História de Portugal de
Oliveira Martins e Mensagem de
Fernando Pessoa”[xxiv] – ao
que acrescentou: “Quanto ao terceiro livro, a Mensagem, é a condensação em mitos da narrativa de Oliveira
Martins, principalmente. Não pertence ao gênero historiográfico como as outras
duas obras; é um conjunto de odes inspiradas por elas”.[xxv]
Nessa formulação radica-se a minha
hipótese de leitura: a de que o pensamento de Oliveira Martins está
profundamente entranhado na Mensagem,
não apenas lhes dando a conformação geral do tema e o desenho de cada personagem,
mas ainda (e nisso residirá, se tiver sucesso, a minha possível contribuição à
leitura) determinando a distribuição dessas personagens ao longo do poema, bem como
a constituição do discurso de cada uma das “odes”.
Antes de prosseguir,
porém, vejamos a estrutura básica do poema, no que diz respeito à escolha e à distribuição
das personagens da história nacional.
MENSAGEM
Primeira parte – BRASÃO
I. OS CAMPOS
1o Os Castelos
2o O das Quinas
II. OS CASTELOS
1o Ulisses (3)
2o Viriato (2) (?
-140 a.C.)
3o D. Henrique (2) (1057?-1112)
4o D. Tareja (2) (1091-1130)
5o D. Afonso Henriques (2) (1109?-1185)
6o D. Dinis (3) (1261-1325)
7o (I) D. João o Primeiro (2) (1357-1433)
7o (II) D. Filipa de
Lencastre (2) (1360-1415)
III. AS QUINAS
1o D. Duarte, Rei de
Portugal (1) (1391-1438)│
2o D. Fernando, Infante de
Portugal (1) (1402-1443)│
3o D. Pedro, Regente de
Portugal (1) (1392-1449)│
4o D. João, Infante de
Portugal (1) (1400-1442)│
5o D. Sebastião, Rei de
Portugal (1) (1554-1578)
IV. A COROA
Nun’Álvares Pereira (2) (1360?-1431)
V. O TIMBRE
A CABEÇA DO GRIFO
O Infante D. Henrique (3) (1394-1460)│
UMA ASA DO GRIFO
D. João o Segundo (3) (1455-1495)
A OUTRA ASA DO GRIFO
Afonso de Albuquerque (3) (1462?-1515)
Segunda parte – MAR PORTUGUÊS
I. O infante (2)
II. Horizonte
III. Padrão (1) Diogo Cão (séc. XV)
IV. O mostrengo (3)
V. Epitáfio de Bartolomeu
Dias (3) (?-1500)
VI. Os Colombos (1451?-1506)
VII. Ocidente (1500)
VIII. Fernão de Magalhães (3) (1480?-1521)
IX. Ascensão de Vasco da Gama (3) (1468?-1524)
X. Mar português
XI. A última nau (1578)
XII. Prece
Terceira parte – O ENCOBERTO
I. OS
SÍMBOLOS
1o D. Sebastião (1)
2o O Quinto Império
3o O Desejado
4o As Ilhas Afortunadas
5o O Encoberto
II. OS
AVISOS
1o O Bandarra (3) (1500-1556)
2o António Vieira (3) (1608-1697)
3o (1) (1888-1935)
III. OS
TEMPOS
1o Noite
2o Tormenta
3o Calma
4o Antemanhã
5o Nevoeiro
Como se pode constatar,
a ordem de apresentação das personagens históricas é, no geral, cronológica,
com duas alterações: o deslocamento de Nun’Álvares para depois dos filhos de D.
João I e a mais violenta infração da cronologia, que consiste na inclusão de D.
Sebastião junto aos príncipes da Ínclita Geração e no consequente deslocamento
do infante D. Henrique de junto dos seus irmãos.
Observa-se também,
quando se consideram as personagens e as datas, que a dinastia de Bragança está
praticamente ausente do poema. Nenhum príncipe, nenhum agente histórico que não
sejam os profetas da ressurreição nacional (o Bandarra e o Padre António
Vieira).
Por fim, observa-se uma
interessante forma de articular as “odes” nomeadas segundo os atores
históricos: dividem-se entre aquelas que trazem o discurso em primeira pessoa
(dizem “eu” as Quinas, Diogo Cão, D. Sebastião – que aparece duas vezes no
poema – e o 3o Aviso) e as que trazem o discurso em terceira
ou segunda pessoa. Mais especificamente, entre aquelas em que a personagem
histórica assume o discurso e explicita o seu papel na história ou a sua
consciência da implicação dos seus atos, e aquelas em que a personagem é
descrita de fora ou interpelada pela voz poética.
Minha percepção é que a forma da distribuição
das personagens e, principalmente, a forma de articulação do seu discurso têm
relação íntima com a teoria do herói de Oliveira Martins. Como na obra de Martins, são aqui os heróis o princípio de
inteligibilidade da história. E, como lá, há os que triunfam e os que
fracassam.[xxvi]
É certo que a leitura de Mensagem não pode ignorar o paradigma crístico, definido pelo poema
que diz:
Foi com desgraça e
com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
Ou seja, não se pode
ignorar o modelo sacrificial na escolha da forma do discurso: as personagens
das Quinas são mártires e, portanto, conscientes do seu destino. Consciência
esta que as torna verdadeiramente mártires (isto é: testemunhas) e não apenas
vítimas. É a consciência que
distingue, por exemplo, D. Fernando, o Infante Santo, do animal que vai para o
sacrifício pagão, aludido no ato de dourar a fronte:
Pôs-me as mãos sobre
os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
A fronte com o olhar;
Mas uma observação atenta do destino
histórico das personagens que se expressam em primeira pessoa mostra que são os
desgraçados ou fracassados que assim o fazem. São os que foram pagos como preço
da glória, e também o que teve nele uma certeza que o transcendia.[xxvii]
Já entre os que não se expressam em primeira pessoa, há dois tipos: aqueles
cujo sentido na história o poeta expõe e aqueles para os quais o poeta desvela
o sentido da ação ou invoca como figuras tutelares da obra de ressurreição
nacional, cuja hora o poema anuncia. Trata-se, na verdade, de importante
modalização, pois os que são descritos em terceira pessoa têm uma interpretação
comum, pacífica – tal como foram fixados pela tradição histórica (e, no caso,
não só na História de Martins); já os
que são interpelados em segunda pessoa são redimensionados, no poema de Pessoa,
que lhes desvela o sentido oculto ou iniciático da presença e da ação.
Portanto, se Pessoa aproveita de
Martins a teoria do herói – dividido entre o fracassado de grandes merecimentos
individuais e o triunfante, que é encarnação das forças sociais majoritárias –,
ao mesmo tempo promove uma subdivisão na tipologia do herói triunfante, que lhe
permite reinterpretá-los (contra, por exemplo, a leitura camoniana e martiniana,
no caso de D. Tareja) em função de uma leitura iniciática da história, na qual
ela aparece como a matriz carnal e instintiva (“nela o sensual era maior”,
disse Camões) do reino que depois se transformará em império, cuja madrinha já
será D. Felipa.
Essa leitura iniciática também parece
responder pela diferente seleção das personagens, em relação à História de Portugal. D. Pedro I, por
exemplo, está ausente do poema. Como o destino histórico da nação, segundo
Pessoa, está no descobrimento, no desvendamento – na decifração do mundo,
primeiro materialmente e depois espiritualmente, conforme se lê já no texto de A Águia[xxviii]
– e não na celebração do amor ou na aplicação da justiça, está ausente esse
rei que, segundo Martins, tão bem resumia os primeiros tempos da nação.
E é a essa leitura iniciática que se
deve a enorme valorização de D. Dinis – destoante seja em relação ao lugar que
ele ocupa em Os Lusíadas, em que
aparece achatado pela ausência de feitos guerreiros, seja em relação à História de Portugal, onde aparece como
vimos. Aqui, D. Dinis, embora triunfante e descrito desde fora, exibe a
consciência do seu papel histórico, de fundador da língua e do corpo das
navegações: o rei lavrador transforma-se no plantador do futuro trigo do
Império.
Ao mesmo tempo, a inclusão de D.
Felipa de Lencastre nos castelos, por meio do artifício do desdobramento do
sétimo, é um momento de confluência entre a perspectiva iniciática de Pessoa e
a narrativa histórica do nascimento da consciência portuguesa, tal como a
descreveu Oliveira Martins, pois foi este que praticamente a definiu como
madrinha de Portugal, em Os Filhos de D.
João I, ao propô-la como elemento
de ligação entre a tradição da cavalaria inglesa e o heroísmo português. Como
se vê nestas passagens, a segunda das quais ecoará ainda no famoso artigo de A Águia:
Foi o seu último filho. D. Filipa
acabou por gerar um santo, ela em cujo ventre se formara a semente de tão
grandes homens. Quinze anos (1387 a 1402) de um procriar incessante: abençoadas
entranhas! E durante este período, no vigor da vida, entre os trinta e os
quarenta e cinco, o rei não teve um bastardo. Que singular mudança houvera nos
costumes da corte: dessa corte que vinte anos antes aclamara Leonor Teles.[xxix]
O espírito generoso da cavalaria,
importado de fora, toma entre nós feições e objetos indígenas. A empresa
consiste num franco navegar para o bem, com as velas cheias pela viração da
ciência e da fé, que ainda sopravam acordes.[xxx]
A moda das divisas e motos,
introduzida, com outros inglesismos, pelo casamento de D. João I (...) essa
moda importava pouco em si, mas significa muito porque as divisas da família de
Avis exprimem todas a nova ordem de ideias que a corte respirava e de que
vivia. Fato é, porém, que o formalismo ritual da cavalaria veio dar corpo, e
portanto consciência e consistência, aos sentimentos de galhardia e lealdade
portuguesas, expressos em numerosas lendas históricas, e encarnados no vulto
épico do condestável (...) O mestre de Avis, todavia, primeiro rei estrangeiro
que entrou na “santa confraria da Garrotea”, abriu um lugar à fidalguia
nacional nas legiões da cavalaria europeia.[xxxi]
Finalmente, cumpre aplicar a
hipótese ao terceiro aviso, costumeiramente identificado à figura do poeta. Ele
fala em primeira pessoa, e é, portanto, dentro das coordenadas que vimos
traçando um herói fracassado. O que não quer dizer, no caso, que já tenha
fracassado: é apenas alguém que tem, nos termos de Martins, acima transcritos, “energia excepcional de pensamento subjetivo [e] é capaz de arrostar de
frente contra o majestoso sistema do organismo social”. A voz dissonante do
presente, cujo destino se decidirá no atendimento à sua mensagem, isto é, à
convocação para a virada, com a qual saúda os possíveis irmãos.
E com isto se fecha
esta comunicação. Não posso ir aqui mais longe no comentário do poema,
enfatizando a relação que outros elementos seus mantêm com o pensamento e a
obra de Oliveira Martins. Mas espero, com estas breves indicações, ter sugerido
com alguma coerência que se trata de uma impregnação muito mais ampla e muito
mais profunda do que se tem até aqui considerado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, Isabel de Faria e. “Introdução” à
edição crítica da História de Portugal.
Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988
ANDERSON, Perry. O fim da história – de Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1992.
CARVALHO, Paulo Archer de. “Herculano: da
história do poder ao poder da história”. Revista
de História das Ideias, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias,
1992, vol. 14.
CARVALHO, Paulo Archer de. “Herculano: da
história do poder ao poder da história”. Revista
de História das Ideias, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias,
1992, vol. 14, p. 508
COURNOT, J. A. Essai sur les fondements de nos conaissances
et sur les caractères de la critique philosophique. Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin, 1975.
COURNOT, J. A. Traité de l'enchaînement des idées
fondamentales dans les sciences et dans l’Histoire, Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin., 1982.
FRANCHETTI,
Paulo . No centenário de morte de Oliveira Martins. In: Beatriz Berrini; Paulo
Franchetti. (Org.). Correspondência de
Eça de Queirós e Oliveira Martins. 1a ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 1995, v., p. 9-50.
GODINHO, Vitorino de Magalhães. “Alexandre
Herculano”. In: Ciclo de Conferências , p. 75. Apud Paulo Archer de
Carvalho (1992).
HERCULANO, Alexandre. Cartas. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, tomo I, s/d.
MACEDO,
Helder. “A ‘Mensagem’ e as mensagens de Oliveira Martins e de Junqueiro”. Revista
Colóquio/Letras. Número 103, maio 1988.
MARTINS,
J. P. de Oliveira. História da Civilização Ibérica. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1909
MARTINS,
J. P. de Oliveira. História de Portugal.
Lisboa: Guimarães Editores, 1991.
MARTINS,
J. P. de Oliveira. O helenismo e a civilização cristã. Lisboa, Parceria A. M. Pereira,
1928.
MARTINS,
J. P. de Oliveira. Os Filhos de D. João I.
Lisboa: Guimarães Editores, 1958.
PESSOA,
Fernando. “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”. In: A Águia, no
12, II série, 1912.
SARAIVA,
Antonio José. A tertúlia ocidental.
Lisboa: Gradiva, 1995.
SÉRGIO,
Antonio. “Oliveira Martins – impressões
sobre o significado político de sua obra”.
Ensaios V. Castelo Branco: Sá
da Costa, 1973.
[i]
Franchetti, 1995.
[ii] Martins,
1991, p. 411.
[iv]
Martins, 1909, p. 43.
[v] Martins,
1991, p. 61.
[vi] Martins,
1991, p. 67: “A separação de Portugal foi um fato consumado, graças ao valente,
medíocre, tenaz, brutal e pérfido caráter de Afonso Henriques”.
[x] Cf. António Sérgio, 1973. O estudo de Sérgio se
constrói sobre o estabelecimento de cisões dicotômicas na obra de Martins,
segundo o mesmo esquema com que o ensaísta abordara a de Antero. Também Martins
teria uma “alma essencialmente mórbida e contraditória”. De um lado, republicana
e antimonarquista; de outro, cesarista; no plano da escrita, uma face da moeda
seria o artista e a outra, o historiador. A predominância do artista sobre o
historiador faria com que, no quadro da História
de Portugal, como nem sempre a personagem mais adequada ao estilo (isto é,
a mais dramática) fosse a mais típica ou a mais importante de um dado período,
a verdade fatual do texto histórico ficasse prejudicada.
[xii] A frase de Herculano se encontra na carta a OM
datada de 25 de dezembro de 1872, repr. in: Herculano, s/d. Na sequência do
texto, Herculano discute exatamente o caso do inverno russo de 1812, que
comparece na passagem adiante citada de Oliveira Martins. A propósito desta
passagem, escreve Vitorino de Magalhães Godinho: “ele não via, como viu um
Oliveira Martins, que o encontro de duas séries deterministas é que não é
determinado, porque dependem de sistemas e referências diferentes” (apud
Carvalho, 1992, p. 508).
[xiii] Quanto às ideias de Cournot, ver: Cournot, 1975,
pp. 33-45 e Cournot, 1982. Há uma interessante introdução às ideias de Cournot
e das suas implicações para a teoria da história em Anderson, 1992, capítulo 2,
pp. 28-48. Quanto à concepção martiniana de que se aproximava o fim da história,
ver a “Advertência” de 1891 a Martins, 1958:
“Não existe matéria de história, quando não há caracteres acentuados: assim
sucede nos tempos obscuramente primitivos das civilizações, e também nas épocas
não mais claramente coletivas dos nossos dias, em que tudo volta a ser anônimo,
como no princípio. Há então apenas fatos e matéria própria para escritos
didáticos, análogos aos referentes à natureza inorgânica ou animal (...)” (p.
2).
[xv]
Martins, 1928, p. xiii e p. xiv.
[xvi] Martins,
1928, p. xv.
[xvii]
Martins, 1928, p. xvi.
[xviii]
Martins, 1928, p. xvi.
[xix]
Martins, 1928, p. xvi.
[xx]
Martins, 1928, p. xv.
[xxiii]
Trata-se de Macedo, 1988.
[xxv] Saraiva,
1995, p. 103.
[xxvi] É
essa, do ponto de vista que ensaiamos aqui, a explicação para o deslocamento do
Navegador para depois dos seus irmãos. A propósito do D. Henrique, vale a pena
referir uma passagem de Os Filhos de D.
João I, na qual o caráter do herói como encarnação da vontade coletiva
aparece plenamente. Trata-se da reunião do conselho em que D. Henrique defendeu
e fez prevalecer a tese de que Tânger deveria ser tomada: “– Bem sei que a gente é pouca, mas
Deus ordena! Ainda que fosse menos, iria por diante. E saiu como um Fado,
automaticamente. Sempre que o Inconsciente, apossando‑se de um homem, faz dele
o veículo da alma de um povo, criando‑o herói, a humanidade que se compõe de
inteligência e amor sofre. D. Henrique era um destino: por isso era cego e
desapiedado” (Martins, 1958, p. 225).
[xxvii] De
fato, os presentes nas Quinas tiveram destino triste e sofrido. E Diogo Cão,
após a glória das primeiras descobertas, caiu em desgraça junto à corte.
[xxviii]
Pessoa, 1912.
[xxix] Martins,
1958, p. 15.
[xxx] Martins,
1958, p. 23.