Entrevista
[a Marco Lucchesi, publicada com o título "Campos de
algodão sob o sol da tarde", na revista Comunità
Italiana, em dezembro de 2004]
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Caro Franchetti: Gostaria de saber de sua origem italiana, de alguma
influência, nostalgia e paixão, desde o quotidiano às leituras e o mundo.
Minha tia Ana, cujos olhos azuis eram tão intensos
quanto o seu sotaque, pode sintetizar a parte mais sensível do lado italiano da
minha vida: emoção à flor da pele, nostalgia da pátria que deixou ainda criança
e que, por isso, se apresentava mais como conceito e forma interna de sentir,
do que como realidade perdida ou a reconquistar. Depois, o orgulho familiar da
origem e do sobrenome, o apego à tradição e à cultura. Outra imagem recorrente:
meu avô, colono, reunindo os camponeses iletrados para ler-lhes, junto aos
filhos, romances de cordel.
Depois, em minha casa, a bela edição da Comédia,
ilustrada por Doré, que dividia a estima paterna com os grandes poetas
românticos brasileiros elegantemente encadernados; o hábito da disciplina
intelectual, do amor ao trabalho e da observância da mais estrita frugalidade,
compensada pelo derramamento sentimental e culinário dos domingos e dias
santos. Até a minha adolescência, esse foi o sabor da vida. Um sabor muito
italiano, mas tão entranhado, na pequena cidade de Matão, no ambiente da
família, que só quando de lá saí para começar a vida adulta pude perceber que
era uma particular herança e um jeito muito especial de estar no mundo.
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Sendo você um dos grandes ensaístas brasileiros, com uma vasta erudição
e uma fina sensibilidade, como se processou a sua formação e a sede de conhecer
as coisas com essa intensidade e descortínio?
Minha
primeira juventude, para o bem e para o mal, foi pautada pelo anseio de
completude renascentista, que sempre foi o de meu pai. O gosto pela literatura,
a valorização extrema do conhecimento prático, o gosto da especulação
filosófica, o fascínio pelo método científico, o estudo da história religiosa,
o valor da educação matemática, o amor da correção lingüística: foram esses os
valores e ideais que, dentro das possibilidades, pautaram a minha formação
familiar. Nas condições precárias de uma vida passada quase toda em pequenas
cidades do interior do Brasil, as muitas enciclopédias, os vários livros de
divulgação científica, as obras completas de escritores brasileiros e
portugueses vendidos de porta em porta, bem como a velha Coleção Saraiva e toda
a coleção do Clube do Livro foram as peças do mosaico que foi a minha formação.
O solo sobre o qual fui construindo como pude, até o período da faculdade, a
imagem do mundo e de mim mesmo. Na faculdade, a descoberta de uma imensa
biblioteca, na qual podia passar dias e dias, sem qualquer limite, foi
experiência de puro deslumbramento. A partir daí, com todo o risco da
dispersão, nunca mais deixei de seguir o impulso de leitura do momento.
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Por outro lado, a poesia parece ter aberto em você um sem-número de
portas e janelas, e de modo especialíssimo no campo do haicai, de que você se
tornou, além de crítico e historiador, um fino poeta e tradutor. Como se deu
esse percurso?
Também
o gosto pela poesia tem origens familiares. Meu pai escrevia sonetos e crônicas
em jornais. E muitos outros seus colegas também. Matão era uma cidade quase
inteiramente italiana, na qual a habilidade poética, a oratória, a demonstração
de cultura letrada de modo geral era algo muito valorizado.
O
interesse pelo haicai provém de um segundo momento. Daquela cidade, depois de
alguns anos, fomos para Guaíra, na fronteira com Minas Gerais. De uma cidade
italiana para uma cidade de intensa colonização japonesa. Quase todos os meus
amigos e amigas eram japoneses. As festas de colheita e casamento, o contato
com os pais das namoradas, que mal falavam português (ou não falavam), os
bailes no clube da colônia, tudo isso gerou, eu creio, uma simpatia que pôde,
muitos anos depois, quando me dediquei seriamente ao estudo do japonês,
abrir-me algumas portas para a compreensão dessa forma de poesia tão delicada e
tradicional, à qual dediquei bons anos de vida. O haicai foi, para mim, mais ou
menos como uma busca nostálgica de um período no qual a vida tinha o dourado
das espigas maduras de arroz e o brilho dos campos de algodão sob o sol da
tarde.
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Camilo Pessanha. Antonio Nobre. Eça de Queiroz. Três nomes, dentre
outros, de sua predileção, sobre os quais você vem dedicando boa parte de sua
vida. Em que medida a literatura portuguesa também é uma de suas capitais
afetivas...
Eça de Queirós era um dos autores da infância. Numa
edição em três volumes, da Lello, a sua obra completa acompanhou a minha vida,
na estante paterna, e ainda acompanha, agora na minha própria estante.
Camilo Pessanha, cujos versos difíceis e belos foram
uma obsessão desde os primeiros anos de faculdade, atraiu-me também pela vida
no Oriente, pelos escritos sobre a China e pelas especulações sobre a escrita
ideográfica.
Se a porta de entrada na literatura portuguesa foi
Eça de Queirós, Camilo Pessanha foi a torre desde a qual fui descobrindo outros
pontos de interesse, com ele relacionados de alguma forma: Wenceslau de Moraes,
o cronista do Japão, Antonio Nobre, Antonio Patrício, Eugênio de Castro e
tantos outros.
Eça de Queirós também me conduziu ao encontro de
outra paixão portuguesa, à qual dediquei vários anos de estudo: a imensa e
magnífica obra do historiador Oliveira Martins.
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Mas vejo, em sua obra, a
recuperação de monumentos e documentos. Por exemplo, um nome pouco lembrado, o
de B. Lopes, a quem você dedica um belo artigo, e o evoca na condição de dândi
mulato...
Quando, no começo da minha carreira na Unicamp,
retomei sistematicamente a leitura da infância, a dos poetas românticos
brasileiros, deparei-me com um veio novo, ainda não descrito nem analisado: a
poesia pornográfica, satírica e de nonsense da segunda geração
romântica. Descrevi, num artigo que prezo muito, o maravilhamento pela pujança
criativa de autores que, não fosse essa produção, seriam apenas medíocres: Bernardo
Guimarães, Getulino e José Bonifácio, o Moço. Desse ponto de partida decorreu o
meu interesse por todos os poetas de gosto irônico ou satírico, esquecidos nas
histórias literárias mais conhecidas. Prosseguindo na pesquisa, deparei com B.
Lopes, que é um gênio, um poeta de grande interesse, mal lido e pior avaliado.
E como ele há outros, fora dos enredos principais das histórias nacionalistas,
que aguardam um olhar aberto e desarmado.
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É inevitável ouvir – ainda que
em breves palavras - o que você definiu
como sendo compaixão e nostalgia em certa prosa lusitana...
Quando
me dediquei a estudar a obra de Camilo Pessanha, eu o fiz orientado pela
leitura dos textos de Oliveira Martins, que pertenceu à geração anterior à sua
e cuja visão da história de Portugal marcou profundamente os autores dos anos
de 1890. Pessanha é já o nostálgico de lugar nenhum. A pátria, o espaço sagrado
da origem lhe aparece como um grande bem perdido. Ao mesmo tempo, esse lugar
perdido é um lugar idealmente construído a partir da distância, da percepção do
deslocamento físico, temporal e afetivo. Não há retorno possível. Há
idealização de retorno e há, constatada a sua impossibilidade, o exercício do
furor frio e desagregador da melancolia. No livro que dediquei à obra do poeta,
tentei verificar como essas duas atitudes líricas, a que chamei “poéticas” – a
nostalgia e a melancolia – organizam os temas e as palavras do eu que nos fala
nos poemas.
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O que mais impressiona em seu trabalho é a multiplicidade dos saberes.
Uma visão que se entende, ou que se busca, leonardiana, aberta, curiosa,
inquieta. Como você explicaria essa espécie de sentimento-idéia que o anima?
A
explicação, eu creio, está na formação familiar. Mas o que me alegra é poder
ter me dedicado a tantas coisas importantes para mim e para as pessoas que me
rodeavam. Nesse sentido, não sou, Marco, um acadêmico típico. Não passei a vida
aprofundando o conhecimento sobre um tema ou um autor, como fazem tantos
colegas eruditos que admiro muito. Fui mudando de objeto de estudo ao sabor da
curiosidade, da paixão, do gosto ou da obsessão por resolver um problema
cultural ou pessoal. O que não quer dizer que não me tenha dedicado
intensamente a cada um desses objetos. Respondida, porém, a questão que me
moveu ou esboçada de modo consistente a resposta que buscava, já me atraía um
tema ou problema correlato ou remotamente ligado ao que me havia absorvido até
ali. Se, do ponto de vista da academia, construí uma carreira que pode ser
vista como algo diletante, do ponto de vista do prazer do estudo e da
descoberta, que é o único que me importa, pude construir um percurso que esteve
sempre colado à minha própria vida e à pulsação dos meus interesses
intelectuais. É um privilégio, e creio que ter trabalhado esses anos todos numa
universidade tão flexível e desburocratizada quanto a Unicamp foi uma grande
sorte.
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Acha que a Universidade está mudando, ou buscando mais intensamente e
acolhendo esse caminho leonardiano, ou será preciso ter cuidado com as tenazes do específico e do ultraespecializado.
Ou as coisas devem e merecem coincidir?
Penso
que a universidade tem deixado de ser universidade. O que se vê hoje é um
processo perverso, que consiste em submeter todos os campos do saber às regras
do campo dos saberes tecnológicos. Exigir, por exemplo, que um aluno de 21 anos
faça uma tese de mestrado em literatura em 24 meses é um disparate. E fazer que
um aluno de qualquer ciência humana se torne doutor em 36 meses é uma
insanidade. Isso já produziu um rebaixamento notável da produção acadêmica em
ciências humanas. Da mesma forma, a avaliação dos professores se faz hoje
numericamente: quantos trabalhos publicados, quantos congressos, quantos
estudantes. O resultado imediato é a perda de consistência dos trabalhos em
ciências humanas. O resultado de médio prazo, que já é muito sensível, é a
perda de poder das disciplinas humanísticas no interior da universidade. Sem um
papel e um lugar predominante das ciências humanas não há universidades, há
escolas de tecnologia, centros de formação de técnicos. É isso que a
universidade está virando no Brasil. Para um professor que inicia hoje a vida
universitária, um caminho como o meu, de amadurecimento lento e de múltiplos
interesses, é a cada dia menos possível.
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Finalmente, no campo editorial, onde você milita há alguns anos,
gostaria de conhecer sua atual, à frente Editora da Universidade
de Campinas...
Há
dois anos fui designado para dirigir a Editora da Unicamp, que, depois de um
período bastante notável, passara por quatro anos de rápida decadência. Durante
esses anos dediquei todo o meu tempo à obra de reconstrução. Isso significou
ter de aprender princípios de administração, contabilidade e comércio, bem como
implicou um olhar por dentro do mercado editorial brasileiro. Se é verdade que
pude aprender muito, nesse período, também é verdade que jamais tinha pensado
em aprender tais coisas ou gerenciar os problemas que tive de gerenciar. Neste
momento, felizmente, a Editora começa a caminhar pelas próprias pernas e posso
gozar do que há de bom na atividade, que é o contato com os autores, a análise
das obras e o planejamento de ações culturais.
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