Os haikais de JS
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Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos.
Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por
ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer
ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
A questão não tem resposta simples.
Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e
da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum.
Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se
popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase
todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial
para a definição do gênero.
Ao vincular tais textos ao gênero haikai,
então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a
denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para
um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa. Essa
disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da
leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.
O efeito de sentido é complexo. Trata-se de
um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente
conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e
insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a
ele.
A forte personalidade do autor determina o
afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas
também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.
Para um leitor pouco familiarizado com o
haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o
leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição
de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por
Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma
extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o
texto mimetize a estrutura profunda do haikai.
Dos poemas do autor, o que mais pareceria,
pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto
caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como
haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de
tempo, nenhum kigo.
Já o que me parece ter mais espírito de
haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há
pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa,
muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro
sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e
indiscutível.
Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos
dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão
o quis fazer.
Como exercício, para mostrar as diferenças e
as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir,
mas dialogar divertidamente com o poeta.
No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:
Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.
Na noite do quintal,
O sapo canta.
No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:
O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.
O mar sereno
Parece mais longo.
Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu
creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente
poderiam ser assinados por ele.
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HAI-KAIS
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.
HAI-KAI
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.
11-12/1/1974
In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192
Publicado origalmente em Ler Jorge de Sena
http://lerjorgedesena.wordpress.com/2013/04/09/jorge-de-sena-e-os-haikais-2/
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