terça-feira, 15 de novembro de 2022

Por que haikai?

 

Publiquei estes textos ao longo do mês de novembro (2022) na minha página do Facebook. Como lá a leitura sequencial termina por ser difícil, postei a sequência toda aqui.

 

 

Parte 1/5

 

Um amigo me sugere escrever aqui sobre a origem e o sentido do meu interesse persistente no haikai japonês. Creio que já escrevi sobre isso. Mas não faz mal. As horas de convalescença são longas. O esforço concentrado para um novo ensaio ainda é impossível. Mas expedição na memória é agradável, quando não é penosa. 

 

Os velhos devem ser exploradores / Aqui e ali não importa / Devemos estar parados e ainda em movimento / Em outra intensidade / Para uma nova união, uma comunhão mais profunda / Através da fria escuridão e da desolação vazia,/ A onda chora, o vento chora, as vastas águas/ Do petrel e do delfim./ No meu fim está o meu começo.

 

Assim escreveu Eliot num dos poemas de que mais gosto e que me ocorre agora, ao recordar os primeiros passos no caminho do haikai.

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No caldo contracultural dos anos de 1960, o haikai não era para mim haikai. Era algo que vinha em livrinhos como “A sabedoria do Oriente”, ou outros trabalhos do tipo. 

O Oriente, naquela época, atraía não só os jovens. Meu pai me deu, quando ainda menino, um livro em dois volumes, organizado por Lin Yutang: “A sabedoria da China e da Índia. Até hoje os tenho na estante, perfeitos nas suas capas duras que resistiram a leituras e mudanças, desde meados dos anos de 1960.

Ali pude ter o primeiro contato com o budismo e com aquilo que o título resume. Na sequência, fui descobrindo primeiro o lado “religioso”, em livros sobre taoísmo e budismo. Depois, o linguístico e o poético.

Ora, desde antes de começar os estudos de graduação me interessava a poesia, que praticava. Mas no começo dos anos de 1970 a leitura de uma antologia de Ezra Pound, bem como do livro de Haroldo de Campos, “A arte no horizonte do provável”, pôs-me em contato com um desafio sedutor: entender o que, afinal, era a escrita ideogramática numa língua em que ela era utilizada de modo geral. O haikai não era ainda um objetivo. Vinha no bojo de algo mais amplo.

 

Passou a ser um interesse central apenas quando Haquira Osakabe, sabendo do meu interesse pelo assunto, emprestou-me um livro em dois volumes: “A history of haiku”, de R. H. Blyth. Ali eu pude ver, além das versões para o inglês e de vasta exposição, a grafia original, com os ideogramas entremeados ao silabário.

Decidi-me, então, a compreender melhor tanto a escrita, quanto a poética.

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Em Campinas havia um templo budista ou taoísta (já não me lembro). E foi para lá que me dirigi, na intenção de estudar chinês. 

Não resisti a duas semanas de aulas. Eu queria entender o ideograma, mas me vi envolvido na confusão dos tantos tons, que me pareciam indecifráveis, e abandonei o estudo mal tendo aprendido a dizer “eu sou brasileiro” na língua de Yutang.

Foi então que me ocorreu estudar uma língua que me parecia mais simples: o japonês, que eu conhecia bem da juventude passada em Guaíra, onde havia uma enorme comunidade japonesa, e onde eu tinha ensaiado os primeiros diálogos, quando visitava a família de alguma namorada ou quase namorada.

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O estudo do japonês não prosperou muito na Aliança, em Campinas. Marília Maruyama era um amor de paciência. Mas eu tinha aulas com um grupo de crianças que falavam japonês. E nem sempre era divertido ser o grandão meio estúpido, quando alguém me pedia um ovo e eu identificava o kanji de elefante ou outro animal que, positivamente, não se parecia com um ovo. Mas persisti por um bom tempo e guardo ótimas recordações. Principalmente das leituras que Marília fez de haikais que lhe levei, extraídos do Blyth, e que gravei para tentar apreender o ritmo da elocução. E também das aulas de caligrafia com seu pai, Maruyama-san, nas quais pude ver em ação o famoso pincel e tentar escrever sem borrar. Mas, sobretudo, pude aprender os traços básicos da escrita, sem os quais é impossível consultar um dicionário, já que em ideogramas não há, evidentemente, como dispor nada em ordem alfabética.

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Foi então que pedi a Elza Doi, minha colega de Instituto, que me ensinasse japonês. Mas não a língua que me permitiria ler jornais ou conversar. A língua do haikai, que naquela altura eu já sabia ser algo diferente do japonês usual, também porque o que mais me interessava ali eram os haikais do século XVII e XVIII.

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Gosto da expressão “abriu-se o olho do haikai”, que encontrei num dos tratados da escola de Bashô. Porque foi exatamente isso que ocorreu em certo momento: passei a ver a poesia e, digamos assim, o mundo – a partir ou com a presença do haikai.

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Parte 2/5

 

O haikai é uma arte ou prática tradicional. O poeta de haikai se move num universo determinado por convenções fortes: tal flor ou tal ação humana, tal animal ou tal dado atmosférico conotam imediatamente um momento preciso do ciclo sazonal. Mais que isso, conotam um estado de espírito tradicionalmente associado ao fenômeno observado. 

Isso não é tão estranho para nós. Basta ler, por exemplo, o livro do Curtius sobre os lugares-comuns, ou topoi. Essa expressão, “lugar-comum”, aliás, ajuda a compreender um seu elemento definidor do haikai: o “kigo”.

Kigo quer dizer palavra associada a uma estação. Ou seja, indica uma interpretação comunitária de um fenômeno humano ou natural. Isso permite ao haikai uma grande economia: basta enunciar um “lugar-comum” para dispor imediatamente de um pano de fundo coletivo, contra o qual se situará a percepção individual. 

O kigo é tão relevante no haikai japonês que muitas “palavras de estação” se cristalizaram, sozinhas ou com um expletivo, como sequências de 5 sílabas, o que faz com que aproximadamente um terço do haikai (nesses casos) seja ocupado pelo kigo: aki no kure, samidare ya, samusa kana etc.

O lugar-comum, porém, pode facilmente tornar-se um obstáculo ao bom haikai. Ou melhor, um obstáculo ao haikai tal como visto por Blyth, e tal como eu mesmo o pude valorizar a partir da leitura complementar dos livros canônicos da escola de Bashô. Isso porque seu peso convencional ameaça o que me parecem ser os traços mais marcantes do haikai, decorrentes do primado da objetividade: sua radicação na sensação e sua recusa à elaboração conceitual. 

O haikai, assim, se equilibra entre dois perigos: por um lado, esgotar-se na glosa do lugar-comum, fazendo com que o poema seja apenas a realização plana do convencional; por outro, perder o sentido amplo do lugar-comum, agredindo o entendimento tradicional do estado de espírito associado a um dado sazonal. Ou seja, num caso, afastando-se da experiência imediata, apagando-a no sentido coletivo associado ao kigo; no outro, não vinculando de alguma forma a experiência imediata ao saber tradicional, e assim desprezando a carga afetiva que a dinamizaria e lhe atribuiria relevância.

Ao lermos um haikai, portanto, temos de avaliar a sua objetividade, a sua verdade; e ver como essa observação objetiva se relaciona com o lugar-comum do kigo. Isso se dá positivamente de vários modos, que não vem ao caso expor aqui. Mas também pode se dar de modo extremado, negativo, pela renúncia a dizer o que é esperado (como no haikai de Bashô que louva quem não diz algo sobre como a vida passa, ao ver um relâmpago), ou simples recusa de dizer qualquer coisa, como naquele haikai em que alguém vai ver as cerejeiras mais louvadas do Japão e escreve um haikai que diz apenas “Isso! Isso!”. 

De modo geral, podemos dizer que, por conta da necessidade de “verdade” da notação, há sempre alguma tensão entre o kigo e o restante do haikai. Por conta disso, na intepretação e valoração do haikai tem relevância o contexto, a situação em que foi composto. Por isso o poema não costumava vir sozinho, nos tempos clássicos. Ou era acompanhado de um desenho, ou rodeado de um texto em prosa ou de outros versos, numa sessão coletiva de poesia. Quando não, isto é, quando apresentado sozinho, a leitura tradicional japonesa consistia em criar um contexto, imaginar a partir de testemunhos ou do próprio kigo, a situação em que o haikai foi sentido ou escrito. Tomemos como exemplo um de Shiki, o reformador que buscou tornar o haikai um poema autônomo. O texto diz “depois de examinar três mil haikus, dois caquis”. Ora, isso é quase ininteligível, a menos que saibamos que Shiki adorava caquis, estava doente e que depois de um grande trabalho de avaliação de haikais para publicação, ele se daria o luxo de comer caquis. Ou podemos entender que ele, tendo de fazer um trabalho exaustivo, motivou-se com a promessa de ter como prêmio as duas frutas. De qualquer forma, temos de saber da paixão pela fruta e também que Shiki era o mentor da revista Hototogisu, para a qual selecionava os haikais enviados para publicação.

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Parte 3/5

 

 

No que diz respeito à importância do contexto, vejamos um exemplo. Este poema de Bashô:

 

Akebono ya shirauo shiroki koto issun” 

 

Alvorada — peixe[s] branco[s] coisa[s] branca[s] de uma polegada

 

Coloquei entre colchetes os “s” porque em japonês não temos marcação de plural nos substantivos ou verbos.

 

Haroldo de Campos propôs duas traduções desse poema:

 

“alvorada 

            peixe alvo

            uma

                   polegada de alvura

 

 

manhã branca

                        peixe branco

                                               uma

                                                           polegada branca”

 

Nos seus comentários, fica claro como ele entendeu o poema:

 

“É a primeira luz da manhã, transitando para o branco mínimo do peixe branco, divisado através da cristalinidade da água, elemento que não é mencionado mas está virtualmente presente neste haicai”

 

Ele o imaginou, portanto, como produto de uma contemplação, ou observação atenta, de um pequeno peixe entrevisto na água. 

Construiu assim uma cena delicada, na qual tem lugar o haikai. A ideia de cristalinidade da água atribui um caráter algo intimista à cena, como se a contemplação se desse em um aquário ou um tanque.

 

Entretanto, esse haicai comparece num diário de Bashô, o Nozarashi Kikô, nesta passagem:

 

“Cansado de dormir sobre um travesseiro de ervas, fui para a praia quando ainda escuro, antes do nascer do sol”

 

A expressão “travesseiro de ervas” pode ser lida num sentido literal, mas designa usualmente o ato de dormir em viagem, na estrada. 

 

Temos uma marinha, portanto.

 

Orientado não só por esse trecho do diário, mas também pelos comentários tradicionais, Blyth traduziu assim:

 

 

                    Akebono ya

shirauo shiroki

                    koto issun

 

                    In the morning twilight

The lancelets,

                    Inch-long white things.

 

 

Aqui temos plural e não singular. A sugestão é de movimento, de grupo. Temos agora um cardume ou um grupo de peixes e não mais um indivíduo solitário.

 

A explicação para a opção de Blyth pelo plural vem no seu comentário, que é este:

 

On the way to Nagoya, near Kuwana, Bashō went down to the sea-shore in the early morning, before it was still properly light. Fisherman were at work there, and he saw something white gleaming on the sand. Going closer, this mass of translucent whiteness, reflecting the eastern skies, resolved itself into small fishes, each of about an inch in length.

 

 

Temos agora o seguinte: o poeta vê algo na praia, uma mancha branca que espelha a alvorada. Quando se aproxima, vê que eram pequenos peixes brancos, que os pescadores tinham apanhado. A beleza do reflexo do céu iluminado ser resolve agora na agonia dos peixes, se debatendo na areia. O que ressalta o lado piedoso da poética de Bashô.

A interpretação destaca ainda, embora Blyth não o mencione, o possível intertexto que tantos apontam desse hokku com um poema de Du Fu, o de número 17-67. “Apenas um pouco de branco, mas aqui também está a vida –  um peixe de duas polegadas”.

 

Por outro lado, temos o relato de Bokuin sobre as condições em que foi escrito o hokku: ele teria acompanhado Bashô até a praia, onde mariscaram, e depois foram, em um bote, pescar shirauos (os peixes brancos).

 

A leitura do hokku fica agora bem diversa. Nem temos o pequeno peixe solitário nadando em água límpida ao nascer do dia, nem um cardume agonizando na rede ou na areia. Ou o poeta os vê desde o bote, ou os contempla já pescados.

 

Aprendemos também no Sanzôshi que na primeira versão do hokku o verso inicial era “Neve fina”. Um comentarista observa que a forma revisada sugere que o poema foi escrito logo cedo, mas que na realidade ele parece ter sido escrito depois do retorno da coleta dos pequenos peixes.

 

Blyth certamente conhecia o relato de Bokuin, mas preferiu uma das leituras tradicionais, que reconstrói o contexto da forma como ele o reproduziu. Por que o fez? 

 

A explicação mais convincente é que ele seguiu o que parece ter sido a intenção de Bashô, ao alterar o primeiro verso e ao narrar de modo tão sumário o contexto da produção. E confesso que nunca mais li esse hokku da mesma forma depois de o ter lido no Blyth, embora meu primeiro contato com ele fosse via Haroldo de Campos. Talvez porque aquele incômodo com a cena de japonnaiserie do poeta contemplando o peixinho translúcido sob a água clara se tenha rapidamente eclipsado quando li o diário pela primeira vez, o comentário do Blyth tenha parecido tão convincente. E talvez por ele ter parecido assim convincente, e por Bashô não ter inserido no diário nada que sugerisse uma atividade prática em busca de um petisco famoso e delicioso (ainda mais delicioso quando, no começo da primavera os alevinos ainda não tenham sequer chegado ao tamanho de duas polegadas), fiquei sempre com aquela cena na cabeça: o poeta acordando de madrugada e indo para a paria onde brilhavam, na luz da aurora, os pequenos peixes brancos.

 

Mas não deixa de ser interessante tentar pensar de outra forma, como nesta imagem que retirei da internet. Nesse caso, o pequeno peixe branco seria apenas o café da manhã de Bashô...




 

Enfim, creio que me distanciei do objetivo destas memórias, que era narrar as razões do meu interesse pelo haikai. Ou não: porque uma das características sedutoras no haikai é, como disse, a relação entre o texto e seu entorno, dado por uma situação, um diário ou um desenho. O vazio que constitui esse tipo de poema, usualmente composto pela justaposição de dois elementos, sendo que a relação entre eles deve ser “descoberta” ou proposta pelo leitor, se amplifica quando percebemos que o sentido do próprio haikai muitas vezes nos escapa, sem que o situemos num quadro mais amplo. Ou seja, quando nos damos conta de que o haikai clássico é quase sempre aquilo que já descrevi como “três linhas em busca de um contexto”.

Claro que aquilo que atraiu a atenção de Haroldo de Campos é outra coisa. Mas é algo que a mim interessa menos. Principalmente porque não vejo essa proeminência do ideograma na poesia de haikai. No renga, os versos são *ditos* pelos participantes, e a forma da grafia é decidida pelo encarregado do registro escrito. Já nos haicais escritos em desenhos, é o ritmo da escrita, nos caracteres “desmanchados”, que conta mais, bem como a decisão de usar letras chinesas ou silabário, de acordo com o objetivo e situação de cada palavra.

 

Enfim, não parece, afinal, que tenha me afastado tanto do objetivo...

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Parte 4/5

 

Vejo agora que eu poderia ficar escrevendo infinitamente, durante este período de recolhimento forçado, sobre o haikai, sobre as suas características mais marcantes, que o tornaram um assunto e uma atitude centrais na minha vida. Mas para não me alongar muito, já que no Facebook estes textos se perdem na linha do tempo, vou tentar terminar aqui.

 

E queria terminar com duas citações que me orientaram, desde que as li, pois resumem o que de mais interessante eu pude encontrar no haikai.

 

Mas antes uma observação que simplifica as coisas. Fazer haikai, colocar-se em “estado de haikai” me parece algo semelhante a sair com uma câmera fotográfica. É certo que o celular hoje em dia é uma boa câmera, mas é diferente sair com um celular no bolso e com uma câmera. Com a câmera, a disposição do espírito é diferente: você está ali para tirar fotos, ou seja, em busca de recortes interessantes. Seu olhar muda, sua forma de caminhar muda, assim como sua atenção ao entorno e, eu diria, a si mesmo. Da mesma forma, sair com uma caderneta e um lápis para um passeio no bairro ou uma expedição pelos arredores da cidade, ou ainda a um trecho de mata, cria uma dada disposição, um jeito de olhar e estar no mundo. Por isso mesmo não gosto de fazer haikai em gabinete, a não ser quando a memória de algum momento marcante é tão forte que o torna outra vez presente.

 

E agora as citações.

 

A primeira é esta, de Tôhô, que vale tanto para o haikai quanto para, mantendo-se o símile, o tipo de expedição fotográfica que busquei definir acima:

 

Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência.

 

Aqui está bem definida a atitude, a disposição. E o que sempre busquei no haikai, tanto ao escrevê-lo, quanto ao lê-lo e avaliá-lo. 

Há aqui, nessa formulação, algo que se aproxima do que T. S. Eliot propôs ao escrever que o  “correlato objetivo” é a única forma (creio que é assim mesmo que ele diz) de transmitir emoção em arte (ideia, aliás, que lhe pode ter vindo da poesia japonesa, como já se disse). 

Por esse termo, Eliot significava uma cena ou um conjunto de elementos  “objetivos” que pudessem despertar ou produzir no leitor um tipo de emoção. Ou melhor, a emoção que, naquele trecho, o poeta buscava produzir. 

Quando lemos The Waste Land, por exemplo, a impressão que nos ocorre é que o poeta modula, como numa composição musical, a nossa emoção por meio de fragmentos que vai juntando em sequência. Não há um enredo, nem mesmo uma voz lírica em que se apresente o poeta, como no lirismo de extração romântica. 

A forma de transmitir, ou melhor, produzir a emoção em arte, para simplificar muito os seus termos, não é expressando-a, confessando-a ou descrevendo-a. É buscando algo objetivo que seja capaz de despertá-la no leitor. 

Também poderíamos tentar aproximar o objetivo de evitar a visão própria à noção de despersonalização, tal como a encontramos em “Tradição e o talento individual”. Mas creio que aí há diferenças importantes, bem mais relevantes do que eventuais semelhanças. 

No caso do haikai, a “visão própria” é basicamente a intenção. Veja-se:

 

Os versos de alguns, porque eles querem atribuir-lhes brilho, carecem precisamente de brilho (en). O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza (shiori). É porque eles querem atribuir-lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito. [as referências dessas citações podem ser encontradas no livro Haikai – antologia e história]

 

 

Esta citação também permite ver algo muito interessante, relevante para o haikai conforme definido por Bashô e sua escola: a aversão aos “artifícios de palavras”, que vai junto com o elogio da espontaneidade. Mas uma espontaneidade especial, obtida com um rigoroso treinamento, que dela elimina justamente a “visão própria”. 

 

Outro ponto que me parece distintivo do haikai é que esse tipo de poesia, tal como proposto ali, é sempre feita “em situação”. Ou seja, o espírito seleciona – digamos assim – in loco os elementos da realidade objetiva, de acordo com a sua correspondência. E a segunda parte daquela primeira citação retorna ao ponto há pouco destacado, que é a apresentação do haikai como um caminho de aprimoramento espiritual:

 

Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.

 

O tipo de despersonalização implicado pelo haikai é, portanto, muito particular, pois não se trata aqui apenas de uma arte. É certo que isso se poderia, com algum esforço, dizer de qualquer arte. Mas o que é distintivo do haikai é a insistência, a partir de Bashô, nesse caráter de exercício espiritual. De ser um a busca da verdade, assim como sucede com outras artes tradicionais, por exemplo, o Ikebana ou o chá. Por isso mesmo, o valor de um haikai produzido na escola de Bashô não se esgota na sua forma ou beleza abstrata, mas é relativizado (como vemos nos livros canônicos) em função do estágio do aprendiz no caminho.

 

Ia terminar aqui a exposição, mas acho que preciso ainda de um ou dois parágrafos.

 

Então seguirei com mais dois ou três parágrafos e depois, oportunamente, relei tudo isto e disporei estes textos no blog...

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Parte 5/5

 

 

Em certo ponto da minha vida, depois de muito lidar com poesia contemporânea, dei conta de que simpatizava bastante com algumas passagens do célebre texto de Gombrowicz, “Contra os poetas”. 

 

Por exemplo, com esta:

 

“Por mais que se diga que a arte é uma espécie de chave, que a arte da poesia consiste precisamente em alcançar uma infinidade de matizes com poucos elementos, tais e parecidos argumentos não ocultam o primordial fenômeno de que com a máquina do verbo poético ocorreu o mesmo que com todas as demais máquinas, pois em vez de servir a seu dono se converteu em um fim em si; e, francamente, uma reação contra esse estado de coisas parece ainda mais justificada aqui do que em outros campos porque aqui estamos no terreno do humanismo par excellence.” [Utilizo aqui a tradução disponível em https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2015/06/cad17.pdf]

 

Ou com esta:

 

“Mas a poesia pura, além de constituir um estilo hermético e unilateral, constitui também um mundo hermético. E suas debilidades aparecem ainda mais cruas quando se contempla o mundo dos poetas em seu aspecto social. Os poetas escrevem para os poetas. São os poetas que prestam homenagens ao seu próprio trabalho e todo esse mundo se parece bastante com qualquer outro dos tantos e tantos mundos especializados e herméticos que dividem a sociedade contemporânea. Os enxadristas consideram o xadrez como o ápice da criação humana, tem suas hierarquias, falam de Casablanca como os poetas falam de Mallarmé e, mutuamente, prestam-se todas as homenagens. Mas o xadrez é um jogo, enquanto que a poesia é algo mais sério, e aquilo que resulta simpático nos enxadristas, nos poetas é sinal de uma mesquinhez imperdoável. A primeira consequência desse isolamento social dos poetas é que o mundo poético todo se infla, e mesmo os criadores medíocres alcançam dimensões apocalípticas e, pelo mesmo motivo, problemas de pouca importância ganham uma transcendência que assusta.” 

É verdade que só li o ensaio depois deter estudado seriamente e praticado o melhor que pude o haikai. Mas creio que esse sentimento, que respondeu depois pela minha simpatia pelas formulações de Gombrowicz, deve ter sido um dos vetores de minha paixão pelo haikai e um dos motivos da busca que por ele empreendi. Afinal, não é de Bashô (segundo Kyorai) a afirmação de que um camponês iletrado ou uma criança poderiam eventualmente compor um bom poema à sua maneira, o que era impossível para os letrados de outras escolas?

 

Isso não quer dizer que eu tenha por um instante deixado de lado meus poetas modernos preferidos (Eliot, por exemplo). Nem que eu não tenha tido outros motivos, provavelmente até mais fortes, literários e pessoais, para me dedicar bastante ao estudo e à prática do haikai. Entretanto, não tenho dúvida de que também contou para esse interesse o fato de o haikai me parecer, em algum momento, um bom antídoto contra o tipo de atitude que Gombrowicz descreve no seu tempo e que me parece ainda muito presente, quase sufocante, na poesia brasileira do final do século XX e nestas primeiras décadas do XXI.

Por outro lado, é certo que o haikai que me atraiu e que procurei tornar acessível e atraente por meio da redação da longa apresentação do “Haikai – antologia e história”, da criação da lista Haikai-L e de tantos textos publicados em jornais ou no meu blog, não foi o que mais interessou, nem o que foi mais estudado ou praticado entre nós. Em vez disso, o haikai se tornou ou continuou a ser, em grande parte, o produto da aplicação de um conjunto de normas simples, dando origem em muitos casos a uma espécie de passatempo de salão. O que não é ruim em si mesmo, está claro, pois um dos aspectos relevantes do haikai, como tentei mostrar, é o seu caráter de atividade, de prática coletiva. O que quero dizer é que o lado que me pareceu e parece mais interessante e motivador no haikai, que é a sua concepção como caminho e exercício espiritual, tende entre nós a se apagar perante o apelo da prática mais fácil.

Provavelmente venha daí o afastamento regular e talvez salutar que eu mantenha em relação ao haikai, embora de tempos em tempos, como nestes, de novo se avive a paixão e a esperança.

 

 

 

 

 

 

 

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