terça-feira, 15 de novembro de 2016

Carta

Escrevi há alguns dias esta carta a Pedro Marques.
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Mas depois pensei que talvez fosse uma carta que eu poderia endereçar a outras pessoas que estimo, embora não fossem previstas como participantes do nosso diálogo, que muito me honra e gratifica.
Então aqui está. Veremos...
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Meu caro Pedro,
Quando você me convidou para participar de um evento sobre poesia e me pediu um texto com antecedência de algumas semanas, logo pensei que não faria. Porque tenho escrito muito sobre poesia contemporânea e tenho insistido tanto em alguns pontos que me parecem importantes, que temi ser repetitivo, cansativo. Ou, na pior hipótese, confirmar minha cegueira quanto a outros pontos que, vistos de mais longe, podiam ser mais importantes.
Mas, pela estima que tenho por você, eu tentei escrever algo. Mesmo correndo o risco de ser repetitivo.
Entretanto, à medida que eu ia compondo o texto ia me irritando com o formato de artigo acadêmico. Até que desisti.
Pensei, porém, que lhe devia alguma satisfação. Por isso esta carta, na qual digo mais ou menos o que pensava dizer, se estivesse disposto a enfrentar a forma de escrita que chamamos de “artigo”.
Para ir logo ao ponto, a verdade é que nos últimos tempos tenho pensado a questão da poesia contemporânea brasileira a partir de uma experiência nova de leitura para mim: a leitura sem nenhum compromisso nem obrigação, a leitura não como meio para produzir algo, ou com objetivo de compor repertório – mas apenas como gosto, exercício livre de escolha do que fazer com o tempo e a energia de cada ocasião.
E assim tenho aberto e fechado livros.
Numa atitude talvez condenável, após algumas páginas ao acaso, avalio o que tenho em mãos pelo tempo decorrido entre essas duas ações.
Confesso que não me interessa descobrir o “projeto” de um livro, nem mesmo me interessa muito sua situação na obra do autor, muito menos avaliar o seu interesse a partir dessas questões. Leio – vamos dizer assim – selvagemente: em busca daquela emoção de impacto que faça dizer para mim mesmo “caramba! Ouça isto!”.
Talvez seja um defeito surgido com a aposentadoria e afastamento voluntário dos meios intelectuais, especialmente universitários. Mais ou menos como fez o ontem falecido Leonard Cohen quando se internou no mosteiro budista.
E assim como ele voltou depois a compor e a fazer shows, pode ser que eu ainda volte à universidade ou à atividade acadêmica. Mas, se isso ocorrer, com certeza voltarei muito diferente do que me fui moldando ali ao longo de tantas décadas.
Tudo isso para dizer que leio indiferentemente o de hoje e o de ontem. E procuro no de hoje alguma coisa semelhante ao que me sacode o espírito ao reler ainda uma vez a “Ode a uma urna grega” ou “A máquina do mundo” ou os “Quatro quartetos” ou ainda sonetos de Shakespeare ou Camões.
Mas a verdade é que encontro no presente muito pouca coisa em que me regozijar.
Evidentemente eu sei que olhar para um breve intervalo de tempo como o do presente de uma vida de leitura e buscar ali grandeza semelhante à peneirada pelos séculos todos é ingenuidade. Mas um ar de família é o que procuro. E raramente encontro, ainda que opaco.
Por isso me movo às vezes a refletir.
Por exemplo, lembro-me de uma passagem da Autobiografia precoce de Evgeni Evtuchenko. Ele era já um poeta de sucesso, quando numa livraria viu um leitor folhear o seu primeiro livro. Ficou envaidecido, mas o rapaz, depois de folheá-lo, disse à vendedora: “Não é isso que procuro. Tenho uma amiga, uma jovem muito simpática, que perdeu a confiança na vida. Queria achar algo que a ajudasse a reencontrar-se. Mas todos esses poemas nada dizem. São tambores sem ressonância: e nada têm a ver com a vida.” E me lembro também do soneto de Rilke ao torso de Apolo, de cuja contemplação ele extrai a frase que diz mais ou menos: você tem de mudar a sua vida. Para mim, a grande arte sempre nos diz exatamente alguma coisa relevante e nos diz isso mesmo que Rilke escreveu, de várias formas e em vários níveis.
Também me ocorrem algumas perguntas provocativas de Ezra Pound. Esta, sempre: “você se interessaria pela obra de homens cujas percepções gerais estão abaixo do nível comum?” E muito frequentemente me sinto disposto a fazer este exercício, sobre qualquer texto, adaptando o objetivo ao gênero: “Que o aluno examine um determinado texto, digamos, o editorial do dia em um jornal, para ver se o escritor está tentando ocultar alguma coisa; para ver se ele está ‘encobrindo o seu significado’; se está com medo de dizer o que pensa; ou se está tentando dar a impressão de que pensa sem estar pensando em coisa alguma.” Especialmente o último desafio.
Tudo isso para dizer, Pedro, que agora o que me move para a poesia é a busca de uma experiência significativa, de algo que eu olhe e me surpreenda e me ensine não pela técnica isolada e abstratamente considerada, mas pela técnica em ação (se é que me posso expressar assim). Quero dizer: a técnica nunca me pareceu razão suficiente para estimar ou mesmo me interessar por um poema. A não ser como exemplo didático, nos tempos mais formalistas. Porque de duas uma: ou a técnica produz algum efeito além da sua própria exibição, ou não produz e portanto se exibe como perícia vazia, sem objetivo outro que não seja a autocelebração narcisista.
Dizendo de outro modo: se um poema me causa impacto, me emociona ou me comove ou me deslumbra ou me faz perceber que ali está algo que não posso ainda compreender bem, esse poema me parece válido. Mais que válido: necessário! E eu posso, se quiser entender como aquilo me atingiu, ou se quiser compreender o que estava ali para poder incorporar à minha própria prática poética, descer à análise da técnica, dos meios pelo qual se produziu o efeito. Caso contrário, eu posso ter interesse lúdico na questão da técnica, olhar para aquilo e dizer algo sobre o modo de funcionamento. Mas o interesse morre nisso e se não houve um efeito, aquilo é mais ou menos como um esquema, uma equação, ou – na melhor hipótese – uma demonstração convincente de virtuosismo.
Acresce o problema o fato de que a técnica encontrada na maior parte da lírica contemporânea no Brasil é pífia: a impressão que se tem é que ou ao autor falta de fato capacidade de escrita (e eu conheço vários poetas que são poetas porque não conseguiriam escrever um bom texto em prosa) ou falta confiança no seu leitor imaginado, para que possa exercer a sua perícia até o limite e descoberta do novo.
Quanto a isso, um texto que sempre me acompanha como memória de leitura e critério para a vida é o ensaio de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida. Pode mesmo ser que, depois de tanto incorporá-lo, a minha leitura dele seja idiossincrática. Mas em várias ocasiões utilizei aquele conceito de “manual encarnado”, para descrever a produção poética que traz à tona o tempo todo uma consciência escolar do que terá sido ou deveria ter sido a evolução da poesia nacional ou universal, e indicações sobre a situação daquele poema ou mesmo daquele poeta na tradição de que se julga o herdeiro, mas é talvez apenas o escravo mal formado.
Por tudo isso, com essas referências de base, é claro que me sinto agora (quando elas me acompanham e frequentam até mais do que antes) um estranho no ninho da academia. Daí a dificuldade de redigir um texto no qual debata a poesia contemporânea: porque sou cada vez menos contemporâneo, cada vez (na verdade) menos interessado em ser contemporâneo. Ou talvez pudesse mesmo dizer: cada vez mais decidido a não ser contemporâneo.
Mas quando você me convidou e eu comecei a rabiscar um texto, comecei, como sempre, pelo mais óbvio. Pela pergunta que já me fiz em várias ocasiões e em vários artigos, a ponto de parecer tedioso: o que significa escrever hoje em linhas quebradas, que não vão até o final da página? Essa questão pode desdobrar-se facilmente em outra: se há significado nisso (e é de pressupor-se que haja), qual o critério para o corte das linhas?
Apresentada assim a questão pode parecer rasa ou banal. Mas eu não sinto que seja. Pelo contrário, acho que é a pergunta que todo poeta devia fazer a si mesmo. E que os críticos não deveriam deixar de lado na aproximação a um texto que interesse ou sobre o qual se sinta obrigado a falar.
E aqui volta a questão da técnica e do efeito: quando leio um poema contemporâneo, ele pode me emocionar ou não.
Se não me emociona, o que me resta além de ver que as linhas estão partidas e que isso indica verso e reclama uma disposição de leitura específica?
Se não me emocionou de imediato, posso considerá-lo objetivamente e “analisá-lo”, em busca da razão e da motivação para a sua existência e para a sua forma particular.
No caso da partição das linhas, por exemplo, posso pensar: ok, isto se apresenta como poema, pede uma leitura como poema, mas não me emociona – então vamos ver que mais descubro aqui, por que está assim, o que o poeta pode ter almejado e que não consegui repercutir? E se não consigo motivar as quebras, não consigo obter pela análise aquela emoção que não senti quando fui submetido à técnica sem olhar diretamente para ela, o que me resta fazer com esse poema, senão deixá-lo dormir no livro fechado?
Nesse ponto, já que isto é uma carta e não um artigo, posso fazer uma digressão. É que eu sempre comparo a leitura de poemas à audição de música – clássica ou popular, tanto faz. Quando ouço, por exemplo, Mozart ou Leonard Cohen, não me preocupo com questões de técnica. Deixo a música atuar sobre mim e sigo o fluxo da emoção. Somente depois, se aquilo me comoveu bastante, a audição repetida pode ensejar a análise, que é mais uma curiosidade intelectual para ver como se produziu a mágica ou então um meio de refinar a percepção, pela contemplação de eventos que tinham ficado por assim dizer submersos na massa sonora que me impressionou como um todo.
Quando, porém, leio poesia contemporânea raras vezes sinto significativa emoção estética. A maior parte dessa poesia parece girar à volta de si mesma, à volta da proclamação do seu poder ou da sua excelência ou da sua falência ou da sua função de resistência etc. Quando não gira à volta de outra coisa mais fácil, que é a proclamação da sua modernidade, da sua conformação ao que o poeta imagina ser o desenvolvimento da lírica ocidental, onde encaixa e justifica a sua prática e o seu estilo.
Muitas vezes me pergunto, Pedro, se em outros tempos eu teria sentido de forma diferente a poesia com que conviveria. Pode ser que seja ilusão, mas eu creio que sim, que até há algum tempo (digamos cerca de 60 ou 70 anos) a poesia podia ter ainda poucos leitores, mas sua importância social era maior. Um poeta não era apenas um fazedor de versos, mas alguém que tinha algo a dizer. Sobretudo, um poeta era alguém em quem valia a pena prestar atenção, porque mostrava alguma coisa com palavras. Alguma coisa que podia ser uma forma de ver o cotidiano banal (e redimido pela poesia), ou os grandes movimentos convulsivos da sociedade do tempo. Não é preciso recuar muito. Penso, por exemplo, em Neruda, em Pound e em Maiakovski. Em Drummond. Em Bandeira e mesmo Vinicius de Moraes.
É claro que imagino que essa forma de expor a questão da poesia contemporânea possa ser acusada de tardo-romântica. Ao expô-la, alguém poderia, por exemplo, dizer que ainda tenho por modelo Victor Hugo, o bardo; e não Mallarmé, o sacerdote segregado. E que minha escolha da tradição modernista continua esse modelo eletivo, na medida que meus poetas preferidos são os que desenvolveram uma poesia de intervenção ou de meditação sobre o mundo contemporâneo sub specie aeternitates.
Mas mesmo que seja isso, daí decorre uma pergunta legítima, que só pode ser realmente desqualificada por esprit de corps: qual o sentido de escrever poesia hoje? Ou: o que significa escrever poesia hoje? Sem contar com esta, mais simples: para quem escrever poesia hoje?
É claro que conheço as respostas usuais, a que já me referi, e que se baseiam ou no elogio da poesia como resistência, ou na celebração da comunidade dos eleitos. Mas elas não bastam. Para mim, não bastam, pois eu me pareço um pouco com aquele comprador do livro do Evtuchenko, com a diferença de que a amiga que perdeu a confiança na vida sou eu mesmo.
E por isso agora, livre das amarras do bem-pensar acadêmico, posso dar completa vazão ao que sempre julguei ser a questão realmente importante, decisiva para a continuidade da leitura, que é esta: o que este sujeito tem a me dizer? Do que ele fala? Por que ele julga que eu possa me interessar por isso a ponto de continuar a ler ou a comprar o seu livro? Qual o interesse da percepção de mundo dessa pessoa, para que eu a leia em verso? E claro: por que isso vem até mim em verso? O que significa vir em verso e não em prosa ficcional ou em esquema ou mesmo em prosa analítica didática?
Sobre isso poderíamos conversar. Mas é exatamente sobre isso que tenho escrito já várias vezes, de modo que me tornaria muito repetitivo. E cansativo, por certo.
Quanto a mim, porém, é a única questão quer realmente importa.
Por fim, valendo-me do fato de que numa carta pessoal não é preciso ter uma sequência ordenada de argumentos, queria terminar pela transcrição de um tratado de teatro japonês, escrito pelo grande Zeami.
Sobre o Nô, ele escreveu esta passagem espantosamente lúcida e precisa, que eu acho que se pode aplicar a toda arte:
No que se refere ao Nô, é preciso saber o que é substância [tai = corpo] e efeito imediato [yô = aparência]. A substância pode ser comparada à flor; o efeito, ao perfume. O mesmo com relação à lua e sua claridade. Quando tiveres assimilado perfeitamente a substância, o efeito se apresentará por si só. Ora, o conhecedor vê o Nô com o espírito; o não-conhecedor, com os olhos. O que se vê com o espírito é a substância. O que se vê com os olhos é o efeito. Assim, o estreante vê o efeito e o imita. Trata-se de uma imitação que desconhece o princípio do efeito. O efeito é por definição inimitável. Aquele que conhece o Nô imita sua substância, pois o vê com o espírito. A imitação correta da substância contém o efeito secundário. Quando o não-conhecedor imita o efeito, que ele imagina ser o estilo a tomar como modelo, ele ignora que, ao ser imitado, o efeito se torna substância. Como não se trata de substância autêntica, substância e efeito lhe escapam definitivamente e não subsiste aí nada do estilo [que o iniciante tomou por modelo]. Em tal caso se diz que se trata de Nô sem Lei nem Caminho.
E eu acredito, ainda, que essa passagem possa ser colocada ao lado da reflexão de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida – no que diz respeito aos “manuais encarnados”.
E agora, para encerrar esta longuíssima carta, Pedro, queria dizer que creio que boa parte do desinteresse que tem para mim a enorme maioria da poesia contemporânea venha de algo que pode ser compreendido a partir desse excerto do tratado de Zeami.
Portanto, como vê, eu não teria mesmo muita coisa para dizer sobre a poesia de hoje no Brasil. Ou talvez pudesse apenas fazer alguns exercícios sobre poemas publicados, indagando pela função do corte e do desenho dos versos, como já fiz, aliás, num texto que resultou um tanto antipático.
E por ser assim, em vez de redigir um artigo em grande parte repetitivo, optei por lhe agradecer a convocação e lhe escrever de modo solto as questões que, simultaneamente, me interessam muito e me fazem declinar do convite de redigir um paper para ser apresentado no congresso que organiza.
Um grande abraço,
Paulo

terça-feira, 24 de março de 2015

Notas soltas

24 de março de 2015

Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo “gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar, nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome “literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia, diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do procedimento associado ao registro, como no caso das linhas interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão, paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer. Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã, fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação da crença na perenidade da “literatura”.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Haiku & haikai - nota de apresentação



               Haiku & haikai – descobrindo a natureza é um livro comovente. Elaborado e publicado em edição particular por Akiko Kurihara neste ano de 2014, põe ao alcance dos que não têm acesso aos textos em japonês uma produção do maior interesse. Mais que isso: um conjunto de poemas que, delicadamente, deixa perceber as dificuldades, as agruras e as pequenas alegrias do período de adaptação dos imigrantes ao clima e à natureza brasileira.
                O título do livro revela seu duplo objetivo: contar a história – com exemplos – do haiku no Brasil (isto é, do haikai escrito aqui, mas em japonês) e completá-la com um apanhado das principais tendências do haikai (isto é, o poema em português, feito com inspiração no haiku).
                Embora o valor da segunda parte seja grande, é na primeira que reside o maior ganho do livro, pela sua singularidade. É que a história do haikai no Brasil tem sido contada, de várias perspectivas, nos últimos anos. Já a história do haiku tem muito menos fortuna crítica e, sobretudo, menos exemplos dos poemas produzidos pelos imigrantes e seus descendentes imediatos.
                Li o livro com prazer e emoção. Nele, além de muita informação e boa iconografia, há textos de vários tipos, escolas e qualidade.
                Não vou me alongar muito, pois meu objetivo aqui é fazer uns pequenos registros, que levem ao conhecimento dos eventuais leitores deste blog alguns haikus que me parecem muito dignos de registro. Todos transcritos diretamente do livro, em tradução da autora.
                E começo com este, que me parece bastante simbólico do que foi a história do haiku no Brasil, pois nele se anota uma das profundas diferenças culturais (aqui apenas mais sensível, porque dizendo respeito imediatamente ao corpo) entre o país de origem e o de destino, qual seja tocar a pessoa, nos cumprimentos, costume esse inexistente entre os japoneses:

Os imigrantes recém-chegados
Ofendidos com os tapinhas
De bom-dia.
                               (autor: Shuhei Uetsuda, 1876-1935)

                E se tivesse de escolher um haiku que pudesse fazer conjunto, pelo sentimento, com esse que acabo de transcrever, escolheria este, escrito por Gijindo Kurihara:

Montanhas ao longe,
A correnteza primaveril,
Tudo remete à terra natal.

             Também me comoveu este haiku de Keiseki Kimura, que resume uma vida de trabalho na sua recompensa frugal:

Cadeira reclinada de vime,
Descanso reconfortante
Sob o Cruzeiro do Sul.

              Assim como me chamaram muito a atenção os haikus que falam da integração difícil, porém inevitável:

Feijão com arroz,
Firma-se o propósito
Ao se naturalizar.
(Kenichi Takao)

Dia da saúde,
Cumprimenta-se com a mão
Calejada pela enxada.
(Tyomin Izuno)

Comemora-se o dia da imigração
Com vereador nissei
E prefeito sansei.
(Seiryushi Aoyagui)

Faz-se tofu
Com amendoim
Para ficar diferente.
(Tazuko Arata)

            Grande parte dos haikus recolhidos no livro traz a marca das adversidades enfrentadas pelos imigrantes, bem como o registro de alguns dos pequenos prazeres na vida de labuta. E mesmo no campo das adversidades, não falta muitas vezes um tom de divertida melancolia, que é característico do haiku clássico.

Cobertor
Mais leve do que o sonho
Do meu filho
(Mikio Higuchi)

Olhando o céu
Onde esvoaçam libélulas,
Fumo o cigarro.
(Idem)

Festival de verão,
A moça bonita de quimono
É a minha filha.
(Shunpu Mihara)

Dia em que tudo sai errado,
Ao ficar de guarda no chiqueiro,
As galinhas foram roubadas.
(Tonan Tanaka)

Outono quente
Só as tiriricas
Crescem como peste.
(Mika Iwaki)

           Vários outros mereceriam transcrição e comentário. E talvez volte a eles, em outro momento, depois de dada a notícia inicial.
            Por agora, queria encerrar esta breve apresentação do livro, com uma rápida incursão na sua segunda parte. Mais exatamente, no domínio dos descendentes que se dedicaram ao cultivo do haikai, isto é, do haiku produzido em português.
           E termino este breve relato com a transcrição de três haikais, um de cada um dos mais dedicados cultores e difusores da forma tradicional na nossa língua, pessoas a quem tive e tenho o prazer de conhecer pessoalmente e que admiro pelo belo trabalho pela difusão do haikai no Brasil.

Eis aqui:

À noite, sozinho,
Me deixa mais pensativo
O canto dos insetos.
(Masuda Goga)

Por longos quilômetros
Sob um céu azul profundo –
Milharal ao vento.
(Teruko Oda)

Este álbum de fotos –
Também as traças se nutrem
De velhas lembranças.
(Edson Kenji Iura)




Sphera - resenha

Sphera, de Marco Lucchesi

(resenha originalmente publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2003)



Escrever, para Marco Lucchesi, tem algo de conjura. Num dos poemas de Sphera (Record, 2003), lê-se: “a cada folha / em branco a cada / verso / inexistente / a baba do dragão / e o fero basilisco”. O disforme, o caráter desordenado e monstruoso do mundo sem a escrita é o que primeiro avulta neste pequeno poema em que se resume um dos principais movimentos do livro. O mítico basilisco, que envenena os lugares por onde passa, sendo morte física e emblema do diabo, é também dotado de um poder supremo: o de matar com o olhar. “Fero basilisco”, por isso, é a expressão com que é qualificada, no D. Quixote, uma pastora que, pela beleza, leva à morte um apaixonado não correspondido. O envenenamento pelo disforme e a sedução insuportável do muito belo são, portanto, os riscos, quando a poesia não ordena ao menos a superfície do mundo.
Ao longo do livro, esse é o movimento principal: “invoco / uma palavra / que me salve / dos extremos”. Mas tão eficaz é essa convocação das palavras (não uma palavra especial, um mantra ou fórmula de encantamento, mas a palavra em situação de poesia), que é em vão perguntar em que consistem esses extremos: onde é o céu, onde o inferno desta poesia? Onde o macho e a fêmea, o sol e a lua, a carne e o espírito, a dormência da morte e a vontade de viver? Onde o aqui e o além? Em nenhum momento do livro se apresentam imagens dos pólos em tensão. O transcendente não é um objeto de desejo. É antes um desejo de transcendência sem objeto. A conjura do verso é, por isso, desejo de apagamento e constatação de incomunicabilidade: “escrevo sem / deixar vestígios / enquanto busco teus / sinais / ambíguos”.
Perto do final, retornam o dragão e o basilisco, vestidos de nome moderno. Entre um evento de dimensões cósmicas e um ato quotidiano, a desordem é outra vez conjurada pelo rapto da palavra que os equaciona e, assim, reconhece e ordena por instantes: “a supernova / que brilha pouco acima // do horizonte e o café / que se resfria sobre / a mesa: assim // opera em todos / os quadrantes / a lei terrível da entropia”.
Esse equacionamento, essa reordenação se constata na forma de arranjo das palavras, no corte dos versos e estrofes, nas quais o vocabulário e as imagens equilibram o coloquial de hoje, o verbo imantado pela lírica camoniana e os rastros da simbologia alquímica.
Os poemas breves, de aparente ritmo sincopado, quando lidos em voz alta deixam sentir o alento da versificação tradicional, firmando a cadência antiga que os organiza. Este, por exemplo: “abeira-se / do abismo // com seus olhos / líquidos para saber / onde repousa // o nada // e sempre esse desvão / essa caçada // que o aprisiona em / quedas imortais”. Graficamente entrecortado, resolve-se em um alexandrino seguido de três decassílabos: “abeira-se do abismo com seus olhos líquidos, / para saber onde repousa o nada; / e sempre esse desvão, essa caçada / que o aprisiona em quedas imortais”.
Lucchesi compõe, assim, com fios minimalistas da tradição poética do ocidente, uma rede por onde escoa o fugidio, o inconstante, em busca das constelações possíveis de sentido. Como uma aranha, pronta a recompor a teia esgarçada, o poeta se apresenta como consciência expectante, no centro do livro, medindo e ponderando os abalos repetidos do desenho, enquanto contempla o vazio sobre o qual se sustenta a sua leve geometria.
Da sua maneira, é uma busca pelo Éden. Mas o que resulta é um “gélido jardim”. A fuga do disforme, do olhar paralisante do basilisco, dos pequenos poderes torturantes que habitam o presente, será apenas um entregar-se mais rápido ao deserto iluminado, cheio de olhos e de vozes que apenas assopram, por pouco tempo, a poeira informe.
A impressão final é a de que se trata de um livro no qual a totalidade se exibe aos pedaços. Melhor dizendo, é um livro em que o desejo de totalidade se apresenta como pedaços, como uma série de pequenos triunfos transitórios, cristalizados nos poemas. O voluntário aspecto de fragmento é, assim, antes um efeito, um recuo estratégico da voz que, melancólica, conforma o impossível nos ritmos antigos, do que uma confissão de incapacidade de apreender uma totalidade percebida como inapreensível.
Nesse sentido, a fisionomia resultante é clássica. O tom do livro é um estoicismo mitigado. E a erudição que o anima é o conforto possível: o da conversação inteligente, agradável, à margem do abismo, cuja presença ao mesmo tempo exige e rarefaz as palavras que são ditas.
A ossatura do livro não é dada tanto pelo arranjo dos poemas, quanto pela ocorrência, em intervalos bastante regulares, de cinco sonetos de rigoroso corte clássico que, em média a cada nove poemas, erguem-se, como colunas de apoio ou suma dos momentos que os precedem. Assinalam, em registro alto, a coleta das experiências e descrevem a progressão de uma obra alquímica que, aparentemente, não se realiza. Ou então se cumpre apenas como intenção e falência, pois, como se lê no último soneto do volume, a “palavra despojada e cristalina”, resultado da grande obra, se perde na corrente das águas que se afastam da fonte. Que a sua ausência seja tomada como testemunho da existência de um deus impossível de ser identificado ou compreendido diz muito sobre a teologia, ou sobre o anseio por sentido teológico, que anima este volume.
Lidos isoladamente, os sonetos não responderão talvez pelo há de melhor no livro. Marcando o ritmo das páginas, rodeados pelos textos breves, que fluem de uma página para a outra, eles funcionam como lugares de chegada. E, como pontos de chegada, são mais temáticos do que formais, menos simbólicos do que rítmicos. Mas com o seu ostensivo andamento tradicional e com o seu vocabulário em que há algo de cediço, retirando dos demais poemas a sua própria força, são eles, no final das contas, os pontos luminosos que definem o contorno possível dessa Sphera. Vista de fora, ela não espelha a vertigem frente à máquina do mundo, nem o pavor face ao desmedido das vastas esferas estreladas. Apenas revolve, sem muito alarde, fugazes constelações, nas quais operam e se refletem o acaso e a nostalgia da totalidade num mundo desabitado pelos deuses.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Leitura de um poema de Camilo Pessanha


Leitura de um poema de Camilo Pessanha  [1]



Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,
 
As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
 
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
 
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
 
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
 
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
 


 
               Clepsidra é o nome que tem sido dado às coleções possíveis de versos de Camilo Pessanha. Uma ordenação significativa autorizada pelo poeta parece ser algo irremediavelmente perdido, se é que alguma vez existiu. E se existiu, dificilmente terá sido integrada por todos os poemas que até hoje os vários editores foram reunindo sob o título emblemático do lugar de escoamento da água, imagem e medida do transcurso ininterrupto do tempo.
               Entretanto, do que talvez tivesse sido um desenho de conjunto, um projeto do livro dos versos de Pessanha, restam duas balizas: uma quadra em que um “eu” afirma o desejo de “no chão sumir-se, como faz um verme” e esta invocação dos estranhos interlocutores que só a voz do poeta constitui em existência. Quanto ao lugar inaugural da quadra denominada, por alguns, “Inscrição”, não há prova documental, apenas a tradição das várias edições e a coerência de lugar e de sentido. Já o presente poema foi identificado pelo próprio poeta, numa versão preliminar, como a “última página de um livro em tempos delineado”.
               Ganham, pois, os poemas com a leitura conjunta, que ressalta o desejo de trânsito entre superfície e profundeza, entre o interior e o exterior da terra. Na quadra, a languidez da alma produz o desejo de “deslizar sem ruído”, de desaparecer por meio de um mergulho regressivo, que supõe a perda das defesas e das características humanas. Neste, o movimento começa com o anseio das cores subterrâneas pelo batismo da luz que lhes dê existência – portanto, com o desejo de emergir da terra que as recobre – e prossegue com a apresentação/invocação de outros seres que ainda não chegaram a existir e que aparecem situados em graus crescentes de afastamento do solo: primeiro, os abortos nas prateleiras ou nas mesas dos museus; depois, os sonhos, à beira dos telhados.
               Ressalta também, da leitura conjunta, o lugar em que se situa a voz lírica, que é o lugar da consciência do desejo. Lugar analítico por excelência. No primeiro caso, o da quadra, o desejo é do próprio sujeito que o expressa: desejo de inconsciência, de alívio de uma situação que é sentida como destino, como efeito de uma circunstância de ordem mais ampla: “eu vi a luz em um país perdido”. No caso do poema final, o desejo é atribuído ao interlocutor. A voz lírica é o lugar da experiência que aconselha justamente a cessação do desejo. Este, por sua vez, tem um lugar aporético: é o desejo de existir, postulado como origem da frustração e da dor de seres ainda inexistentes, ou já não existentes.
               Na primeira estrofe, as cores virtuais, ao jazerem enterradas, forçam a percepção de que a base metafórica são os fenômenos da decomposição orgânica: a loucura produtora de alucinações coloridas, a expectoração dos tuberculosos e o fogo-fátuo. O procedimento lembra a morbidez irônica de outros versos. Aqueles nos quais as várias substâncias geradas pela putrefação dos cadáveres são objeto de contemplação, como produtoras de formas e de cores: “putrescina! – flor de lilás! / cadaverina! – branca flor do espinheiro!”. A possibilidade da leitura é reforçada pelo verso 4, que traz as imagens complementares do limbo e do batismo, em relação inversa. A decepção da esperança de fuga do lugar de inércia, por meio do ritual que se destina justamente a evitá-lo, contribui para o adensamento agônico da materialidade corporal das imagens, além de preparar a menção aos natimortos que comparecerão logo adiante no poema. O verso 5, destacado espacialmente dos anteriores, dos quais é entretanto a seqüência sintática, nos põe de súbito em face dos olhos dos enterrados, aos quais se aconselha que se fechem finalmente, sem esperança de término da vigília dolorosamente empreendida.
               Na estrofe seguinte, a apóstrofe se dirige aos que não nasceram, mas cujos corpos se preservam incompletos, intactos, modificados apenas na coloração. Habitantes de outro limbo, o asséptico dos museus, são explicitamente afastados, pela negação, de Deus. Seu mundo não é o da expansão das cores, mas o da concentração sonora. Não é o da terra, a que deve retornar o pó; mas o da água. E a força da estrofe provém em grande parte do contraste entre as duas imagens da água, uma explícita e outra implícita. Explícita é a água que corre na clepsidra: o tempo que flui. Implícita é a água parada, o líquido em que flutuam os corpos metidos nos frascos, na paralisação do fluxo vital interrompido. Embora sejam também figurações da impossibilidade de uma consciência sem vida, contrastam os abortos com as cores virtuais: sem ansiedade, sem esperança de redenção, ouvem resignados e talvez irônicos a passagem do tempo, a que já estão imunes. Ecoam, com o seu vago sorriso confinado nos invólucros de vidro, um outro poema de Pessanha, que também é estruturado sobre a imagem paradoxal do cadáver consciente e reflexivo: o morto que se ri do fato de que nada do que passa sobre a sua sepultura lhe dói minimamente. A esses a voz lírica aconselha a cessação da atenção e da busca de respostas.
               Neste momento do poema, as duas pontas do ser orgânico foram interpeladas: aquela em que a vida ainda não se realizou plenamente, imagem de um momento congelado, de promessa sem realização; e aquela em que o ser, já passado o momento da morte (no qual um outro seu texto via o surgimento de um aspecto de “imortal serenidade”), se desfaz na escuridão da tumba, esporadicamente cortada de clarões e cores sem esperança de redenção. Entre elas se deve situar logicamente o espaço da vida. Se assim for, ela aqui é identificada ao sonho, e seu grau de irrealidade e indefinição acaba por parecer maior do que o dos momentos terminais.
               No terceiro bloco, interpelam-se os “sonhos não sonhados”. Do ponto de vista da construção metafórica, completa-se o quadro lúgubre do poema, juntando a imagem das almas penadas à das aves noturnas que se ferem de morte contra os limites da casa, e encarnam mais explicitamente o anseio, já marcado de dor, pela existência. Noturna, não há nessa estrofe nenhuma menção de cor. Em compensação, é o mais sonoro dos três blocos em que se divide o poema. Não apenas porque refere o arrulhar, a expiração e os queixumes dos sonhos, ou bater das suas asas nas arestas dos telhados. Mas principalmente porque a estrofe toda se eriça de aliterações e assonâncias e, principalmente, porque uma mesma rima de grande sonoridade retoma e sistematiza o procedimento (inaugurado na primeira estrofe) de explorar a cesura do alexandrino: virtuais, esperais, (cerrai), errais, lacerais, expirais. Essas três últimas palavras, ecoando os seus “ais” na sexta sílaba de três versos seguidos, martelam a gradação das ações atribuídas aos sonhos, mostrando que mesmo aquilo que não chegou a existir (os sonhos que não foram sequer sonhados), aquilo que poderia ser descrito, portanto, como pura potência sem ato, tem um périplo de sofrimento e morte. Nesse sentido, o poema vai num crescendo: a relação desejo/dor vai sendo vazada em imagens de materialidade crescente. À medida que prossegue a leitura, mais intensa se torna a presença do desejo de vida e mais intensa parece a dor que surge associada a ele.
               Para essa percepção de intensidade contribui a leitura do verso final, que, diferentemente do padrão estabelecido nos blocos estróficos anteriores, não é sintaticamente bipartido, mas tripartido. Como os anteriores, abre-se com um imperativo afirmativo, a que se segue um negativo. A diferença é que há agora duas frases de ordem negativa, e que a sua forma de construção coloca em destaque – pela repetição do mesmo padrão métrico (o péon quarto), da estrutura sintática e da pontuação – a palavra de negação.
               A tripartição do verso final também encerra uma gradação de intensidade: o sono, a ausência de reação à dor, a parada da respiração. É a morte absoluta, afinal, o conselho que aqui se cristaliza, após ter sido preparado pelos versos isolados após cada quarteto. E o que a morte absoluta significa, neste quadro particular, em que os interlocutores não estão vivos, é a cessação do paradoxal desejo de existir.
               Os seres interpelados nos três blocos do poema ocupam espaços simbólicos diferentes e bem delimitados. Os primeiros se situam num espaço de exterioridade inominada, apenas referida metaforicamente como “limbo”, cujo elemento é a terra. Confinados, seu desejo de redenção se manifesta também como desejo de exteriorização, de subida em direção ao ar e à luz. Os terceiros, ao que parece, localizam-se no espaço privado da casa, do lar. Associados aos pombos que habitam os beirais, o limiar da exterioridade, seu desejo de serem sonhados é também o desejo de passarem à interioridade do espaço íntimo, e sua permanência na virtualidade é também a sua condenação à morte no espaço da exterioridade da noite e do vento.
               Já os segundos se situam no espaço social, público e controlado do museu. O elemento predominante na estrofe que os apresenta é a água. Mas neles mesmos não há movimento, nem anseio por movimento. Imagens da quietude desesperançada, os abortos comparecem como o momento do equilíbrio possível. Oferecendo-se quietamente como espetáculo visual, dotados da materialidade que falta aos outros interlocutores da voz lírica, os não-nascidos parecem imunes à esperança e à dor do anseio pela existência. Nesse sentido, são o equilíbrio possível no quadro do poema.
               Por uma carta juvenil, sabe-se que, em algum momento, Pessanha pensou em organizar o conjunto dos seus poemas segundo um desenho temático centrado no tema do desejo e do prazer (realização possível e destruição do desejo). A leitura seqüencial conduziria à constatação de que lutar pelo prazer é o mesmo que lutar pela extinção do desejo e pela morte. A vida, portanto, era identificada ao momento tenso, cheio de energia e de dor, no qual a carência move em direção a um objeto, cuja posse dissipa a tensão e é sempre deceptiva em si mesma. Talvez por isso a vontade de fixar, preservar ou celebrar o momento anterior à realização do desejo seja um dos motores da lírica de Pessanha, responsável por alguns dos seus poemas mais célebres. Uma das suas melhores concretizações é o soneto que começa “Depois da luta e depois da conquista”. Mas já neste poema final, escrito para encerrar o conjunto dos seus versos, o desejo em busca de realização é objeto apenas de piedade. Não se fixa heroicamente, como idealidade solar fadada ao obscurecimento e à decomposição; nem se celebra como furor, como febre que produz imagens irreais de integração, como no díptico iniciado pelo soneto “Desce em folhedos tenros a colina”. Pelo contrário, num poema em que o elemento ‘fogo’ é o grande ausente, o momento da luz possível entre as duas cenas noturnas de sofrimento desejante é o momento em que repousam, indiferentes ao correr do tempo, os abortos desprovidos de transcendência.
               Pessanha escreveu certa vez que, apesar do progresso da ciência, permanecerá intocado um espaço incognoscível, “da beira de cujo abismo as almas meditativas continuarão, por todo o sempre, a debruçar-se terrificadas e ansiosas”. Era uma frase que situava o espaço da poesia, indicando a condição da sua continuidade num mundo dominado pelo conhecimento positivo.
            Nesse quadro, se este poema foi escrito para encerrar o livro que reuniria os poemas de Camilo Pessanha, ressalta agora que a imagem da estrofe central pode ser lida como uma figuração irônica da própria condição do pensamento filosófico ou poético. Irônica não apenas porque todo o poema ecoa e enfeixa os fios principais da lírica de Pessanha e porque nessa estrofe particular comparece, pela única vez, a palavra que denominaria o conjunto dos seus versos, mas também porque reúne, no espaço da curiosidade científica e do didatismo, os temas constantes ao longo de alguns dos seus melhores versos: a construção da imagem do desejo congelado antes da realização, a cisma sobre o abismo do incognoscível e a descrença na transcendência, que permitiria fugir à fragmentação e redimir o desejo, apontando-lhe um fim que não fosse a própria e estéril extinção



[1] Este texto foi publicado no volume Século de Ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organizado por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e lançado pelas editoras Angelus Novus e Cotovia, em 2002.