quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Camilo Pessanha, atirador civil

 

Em breve será lançada em russo, pela editora Dilúvio Editora, uma edição que preparei da poesia de Camilo Pessanha. Logo mais, o mesmo livro será publicado apenas em português.

 

O que há nele de novidade, além de eu ter optado por dispor de modo original a sequência dos poemas, são dois textos em que enfatizo um aspecto pouco trabalhado (ou mesmo ignorado) pela crítica. 

 

Em linhas gerais, tanto no esboço biográfico quanto no ensaio interpretativo, desmonto mais uma vez a persistente legenda de que o poeta foi um desinteressado da vida prática e política. 

 

Pelo contrário, como é fácil ver pela sua biografia documentada, o poeta se envolveu ativamente na propaganda republicana em Macau. Foi amigo de Sun Yat-Sen, o revolucionário chinês que liderou a implantação da república no seu país. Por fim, disposto à ação concreta naqueles tempos tumultuosos, o suposto “abúlico” foi, em 1911, um dos fundadores (sua ficha de sócio é a de número 2) da Associação de Atiradores Civis de Macau, destinada a defender a soberania portuguesa no território.

 

Ao longo do seu tempo na China, o poeta dedicou-se a colecionar arte chinesa, construindo uma coleção notável, que doou ao Estado português, e a estudar seriamente a língua e a literatura chinesa. Segundo depoimento de um amigo certo, Carlos Amaro, Pessanha traduziu profusamente do chinês, num caderno que chegou a levar a Portugal, mas que infelizmente se perdeu após seu falecimento.

 

No que toca à poesia, o que fiz foi mostrar como não é possível continuar a ler a poesia de Camilo Pessanha somente na clave da desistência e da atitude nefelibata. Pelo contrário: no pequeno conjunto de poemas que nos restaram dele, mais de 10% são textos em que a nação e o indivíduo, o destino de uma e o destino do outro, são – por assim dizer – intercambiáveis. Como digo lá, basta ler com olhos livres para constatar que “sua poesia entrelaça indivíduo e nação, em relações que ora podem ser compreendidas como causalidade, ora como pura tradução simbólica, na qual os sentimentos individuais encontram um adequado arsenal metafórico de alcance coletivo.”

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

haicai haikai haiku

 Acabo de ler na página Kakinet, do Facebook, um belo estudo de Edson Iura sobre os nomes “haicai”, “haikai” e “haiku”.

Nele, Edson expõe o motivo da singularidade brasileira de adotar haicai como nome geral para o poema de dezessete sons, tal como definido por Shiki no século XIX.

Corretamente, explica que isso provém do fato de que o nome nos chegou por via francesa, numa época em que a forma era lá denominada, como no livro de Couchoud, *Haïkaï”.

No mundo todo, a forma acabou por ser denominada *haiku*, que – como ele também nota – não é eufônica em português. E eu penso que é principalmente por isso que não nos convertemos à palavra moderna.

Entretanto, vale um registro curioso. O de que a primeira definição em língua ocidental desse particular modo de proceder à arte da poesia encadeada (o haikai-renga) foi escrita em português.

Ou seja, a palavra haikai é muito antiga em nossa língua. Ou melhor a transliteração de haikai, cujo h aspirado o padre optou por representar com a letra F:

E foi assim: em 1604, antes portanto, da expulsão dos jesuítas e do fechamento do Japão ao resto do mundo, na Era Tokugawa, o padre João Rodrigues publicou a sua gramática denominada “Arte da língua do Japão”, na qual encontramos esta definição muito precisa:

"Ha hua sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai, de estillo mais baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & este modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu, & continuar com cinco sete cinco."

Quem tiver interesse no assunto pode encontrar uma edição moderna desse livro pioneiro:

João Rodrigues, Arte da lingoa de Iapam. Nagasaqui, Collegio de Iapam da Companhia de Iesu, 1604 – reprodução fac-símile: Tóquio, Hakubunsha, 1969.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Poesia da natureza – a aclimatação do haiku tradicional no Brasil

          

            O haicai é uma das formas mais populares de poesia no Brasil hoje. A partir de um núcleo formado por imigrantes e descendentes diretos de imigrantes, localizado em São Paulo, muitos outros foram se constituindo. Seguindo a denominação da célula-mater, o Grêmio Haicai Ipê, denominam-se também grêmios. 

           Nasceram esses grêmios principalmente da ação, por assim dizer, evangelizadora, desenvolvida por Teruko Oda, que deu oficinas pelo país afora e estimulou a continuidade do trabalho de seus alunos mediante a formação dessas agremiações.

            Teruko Oda é uma excelente poeta. Quem quiser conhecer a sua produção pode ver uma amostra muito significativa num livro publicado pela editora Escrituras, intitulado Furusato-no-Uta/Canção da terra natal. Trata-se de um texto misto de poesia e prosa, nos moldes dos diários poéticos japoneses, que faz retornar o haicai a uma de suas origens, a obra de Matsuo Bashô.

            Teruko é nissei e tem, com o haicai, uma ligação pessoal importante: é sobrinha e discípula de Goga Masuda (1911-2008-), que foi um dos idealizadores e principais orientadores do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 1987.

            Masuda, por sua vez, foi discípulo de Nenpuku Sato (1898-1979).

            E aqui vale uma nota histórica e genealógica.

            No Japão, a partir da restauração Meiji, a influência ocidental se espalhou de forma avassaladora na literatura e nas artes em geral. 

            Para fazer frente ao que consideravam uma ameaça à nacionalidade e uma perda da identidade cultural, alguns escritores e artistas se empenharam na preservação das artes japonesas tradicionais. 

            Um deles foi Masaoka Shiki (1867-1902), poeta que se dedicou a promover a prática de um tipo de poesia até então denominada hokku, ou haikai-hokku. Por esse termo se designava uma composição de dezessete sons, de caráter objetivo, estruturada por justaposição de elementos e centrada numa palavra que faz referência unívoca a um determinado momento no suceder das estações do ano. Esse pequeno poema normalmente era parte de uma composição maior, coletiva, ou vinha acompanhado de um desenho.

O grupo reunido à volta de Shiki, sua escola, terminou por ser referido pelo nome da revista em que divulgava a sua produção, Hototogisu (nome japonês do pássaro cuco). 

Fundada em 1897, a Hototogisu existe até hoje e foi responsável pelo renascimento do haicai japonês em novas bases. 

Por iniciativa do mestre, a forma poética passou a ser denominada “haiku” – nome que ele criou pela contração de haikai-hokku – reforçando assim uma das bases da sua ação: afirmar o terceto como obra independente da prosa ou do desenho com que tradicionalmente fazia conjunto, ou seja, afirmá-lo como forma poética esteticamente autônoma, capaz de concorrer com as recentes formas importadas do Ocidente.

Um dos expoentes da Hototogisu foi Takahama Kyoshi (1874-1959), que sucedeu Shiki na liderança do grupo, aumentando o número de seguidores.

E aqui reatamos o fio da nossa história, pois foi através de um dos discípulos de Kyoshi, Mizuho Nakata (1893-1975), que Nenpuku Sato se iniciou no haicai da Hototogisu.

Em 1927, Nenpuku tomou um navio para o Brasil. Tinha 29 anos de idade e já era bem conceituado na arte do haiku. Vinha tentar a sorte na agricultura, no interior de São Paulo e ao partir ouviu de seu mestre: "Vá e semeie o haiku na nova terra".

Nenpuku empenhou-se a vida toda nessa missão. Divulgou o haicai por quatro estados brasileiros e ao longo dos anos granjeou cerca de 6000 discípulos que, como ele, escreveram no idioma japonês. 

Essa produção, que foi ampla, pujante e de grande relevância para a colônia, infelizmente é até hoje desconhecida dos brasileiros que não dominam o idioma japonês. Também é quase desconhecida dos japoneses e seus descendentes no Brasil, pois não foi  estudada sistematicamente na universidade, nem recolhida em volume, restando dispersa em jornais e arquivos particulares. 

Ainda na década de 1970, muitos seguidores de Nenpuku Sato eram vivos e no aniversário de 20 anos da sua morte e 40 do falecimento de Takahama Kyoshi, 100 dos remanescentes se reuniram no bairro da Liberdade para uma sessão de composição de haicais. 

O principal problema enfrentado por Nenpuku Sato e seu grupo, na aclimatação do haiku ao Brasil, foi como vincular a observação pontual objetiva, que caracteriza o haiku, a um determinado momento na sucessão das estações do ano. 

Diferentemente do Japão, onde as atividades humanas e os fenômenos meteorológicos estavam codificados e sedimentados pela prática poética secular e eram, portanto, de alcance geral para todas as regiões do pequeno arquipélago, aqui a extensão do país gerava experiências muito diversas. 

O haiku brasileiro (designemos assim o poema composto em japonês, nos moldes da Hototogisu) teve como primeira tarefa de aclimatação a necessidade de escolher e fixar termos relacionados à sazonalidade brasileira e à cultura do país: os kigos (palavras de estação). 

Sendo uma arte que tinha no registro objetivo uma das pedras de toque, não fazia sentido utilizar os kigos japoneses. Era preciso não só descobrir os kigos brasileiros, mas ainda fixá-los nas bases métricas tradicionais, o que trazia uma dificuldade a mais, pois era preciso encontrar uma forma convincente e conveniente de grafar, em japonês, as palavras brasileiras ou latinas que designavam elementos botânicos e meteorológicos, bem como os feriados religiosos e as datas nacionais. Mesmo objetos de uso comum precisavam de transliteração, como, por exemplo, o lampião, que vi referido num haiku como “aradin” – ou seja, Aladdin, que era a marca mais conhecida.

Nenpuku enfrentou com muito sucesso essas dificuldades, mas lhe faltou um último passo para semear o haiku no Brasil: escrever em português. Com o envelhecimento da população imigrante e o desinteresse dos jovens nas práticas tradicionais, essa seria a única maneira efetiva de radicar o poema japonês na sua nova terra.

Essa missão vai ser assumida por Masuda Goga, que juntamente com Teruko Oda trabalhou em duas frentes: na criação de um agrupamento poético dedicado à prática do haiku em português e na elaboração de um catálogo de “kigos” brasileiros. 

Aqui cabe uma nota terminológica: se é conveniente e correto utilizar o nome haiku para designar o poema composto em japonês no Brasil, segundo os ditames de Shiki, é também conveniente e correto utilizar o nome haicai para nomear as várias formas de apropriação do haiku no Brasil, a começar por Guilherme de Almeida e incluindo todas as demais formas, inclusive a tradicional, representada pelo grupo de Masuda Goga.

Retomando agora a nossa história, vejamos em que consistiu o trabalho de Goga.

O primeiro ponto a considerar é que a criação de um agrupamento – no caso do Grêmio Haicai Ipê – é essencial para restaurar um aspecto do haicai tradicional: a sua composição sob a supervisão de um mestre, um orientador. Os grêmios funcionaram e funcionam aqui nos moldes japoneses: estabelece-se um tema (no caso, um kigo); os integrantes escrevem; os haicais são lidos sem indicação de autoria e os membros vão escolhendo os que mais lhes agradam; escolhidos os mais interessantes, o mestre ou orientador os comenta, valorizando os aspectos que julgar adequados, e apontando soluções outras para eventuais problemas.

Para que a prática seja uniforme e conforme à tradição, estabelecem-se critérios formais. No caso, à duração das sílabas japonesas substituiu-se a sílaba poética contada à nossa maneira, e aos cortes da forma justapositiva original se fez equivaler o verso, espacialmente definido – do que resulta um terceto imparissilábico de 5-7-5 sílabas poéticas contadas até a última tônica de cada verso. E torna-se obrigatório que o tema (o kigo) indicado para a composição compareça explicitamente no terceto.

Daí a importância de haver uma listagem de kigos e – como não é nossa tradição associar sistematicamente estados de espírito a fenômenos sazonais – a necessidade de definir não só a sua ocorrência e enquadramento sazonal, mas ainda o “clima”, o “mood” associado a cada um.

Nesse ponto, creio que vale a pena esclarecer a importância do kigo para o haicai tradicional. 

O kigo – a palavra de estação  - tem duas funções principais: uma função “temática” e uma função “técnica”. 

Tematicamente, o kigo vincula o poema a um momento preciso na sucessão das estações, por meio do registro objetivo. Nesse sentido, o haicai é poesia da natureza. 

Tecnicamente, o kigo responde pela eficácia do breve poema, pois permite conotar um estado de espírito de modo muito econômico. Por exemplo, “flores” é um kigo em japonês, porque em poesia designa uma flor específica, a de cerejeira, que representa o esplendor da primavera. Sua simples menção evoca a contemplação da florada em atividades diurnas e noturnas e conota a ideia de transitoriedade, porque a observação da florada de cerejeira é também a observação do seu despetalar. Da mesma forma, a palavra “lua”, sem qualificativos, refere a lua cheia de outono. O campo seco, as primeiras chuvas de primavera, o capim alto, as primeiras neves – cada uma dessas locuções conota um preciso momento sazonal e um determinado estado de espírito, materializado em práticas culturais específicas.

            Assim, o poeta de haicai, com uma pincelada, estabelece o mood de base tradicional, que nas duas pinceladas restantes tratará de acentuar, modalizar ou mesmo contradizer.

            A importação dessa técnica, já se vê, não tem sido tarefa simples nem fácil. Não só porque a nossa tradição poética não enfatiza tanto a notação dos fenômenos naturais, mas também porque não temos associações imediatas com eventos sazonais, a não ser alguns poucos, derivados principalmente das festas e feriados religiosos.

            No Brasil, o kigo é ainda dificultado pela enorme variação longitudinal e latitudinal. O inverno, por exemplo, é uma coisa para o habitante das serras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e outra para o habitante da Amazônia ou dos cerrados do Centro Oeste. O regime dos ventos varia igualmente, assim como o das águas da chuva e o das tempestades.

            Um problema enfrentado por um praticante do haicai tradicional é, portanto, a falta de conhecimento dos fenômenos sazonais de uma região por habitantes de outras. A dificuldade mais relevante, porém, é o fato de não estarmos acostumados a conhecer e usar muitos nomes de plantas e animais. Diferentemente da cultura japonesa, que se esforça para nomear e descrever cada flor, árvore ou arbusto – por menos importantes que sejam –, para o brasileiro médio o que não é flor é mato. E soam tão estranhas num poema as designações regionais de plantas e animais, quanto seus nomes científicos. Por exemplo, neoglazióvia, espatódea, muirapitanga ou mesmo sibipiruna. 

Além disso, não associamos nenhum estado de espírito a nomes comuns de plantas ornamentais, como ciclâmen, antúrio, samambaia, avenca ou crisântemo. O mesmo sucede no reino animal. Além dos domésticos, poucos são conhecidos e observados em base cotidiana. Por isso, os bichos, quando não são apenas bichos, parecem conformar-se em poucas categorias e entre os citadinos a desorientação é geral. Por exemplo, Paulo Leminski e Carlos Verçosa confundem (talvez por amor ao som e à paronomásia) a rã com o sapo. Para um japonês é claro que quem pula na água ao menor ruído é a rã, e que o sapo é um animal terrestre, em poucas ocasiões retornando à água de onde veio. E mesmo os fenômenos migratórios, tão importantes para a poesia do hemisfério norte ocidental e oriental, têm para nós – salvo algumas exceções – pouca ressonância literária.

Conscientes disso tudo, Teruko e Goga se dedicaram por anos a coletar e exercitar em haicais os kigos brasileiros de todas as regiões do país. Desse trabalho nasceu a primeira (e única) kigologia brasileira, publicada em volume quase dez anos após a formação do Grêmio Haicai Ipê, em 1996: Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

Composto de três partes, o livro traz primeiramente um estudo e uma catalogação dos kigos brasileiros, ou seja, inúmeras palavras relativas às especificidades de cada estação em todas as regiões do país: animais, festas populares e religiosas, flores e vegetais vários, comidas sazonais, fenômenos climáticos. 

A especificidade desse livro brasileiro em relação aos catálogos japoneses, é que lá os catálogos são sistematizações de algo que se definiu na prática, ao longo de séculos. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. 

Daí que a segunda parte da kigologia brasileira seja uma antologia, na qual vários desses kigos talvez compareçam utilizados pela primeira vez, em haicais escritos pela organizadora, com o fim expresso e exclusivo de exemplificar o texto descritivo. 

Aqui, portanto, evidencia-se a grande dificuldade dessa empresa e desse livro: uma enorme porcentagem das expressões alinhadas como kigo não se sedimentou a partir da prática poética – como no Japão –, mas nasceu de um esforço racional de identificação ou mesmo de criação dos kigos regionais e nacionais. Por conta disso, muitas dessas expressões correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e o lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô.

É possível que a prática dos grêmios espalhados pelo Brasil, orientada pelo catálogo dos kigos brasílicos, termine por incorporar à linguagem poética comum os muitos termos sazonais que por ora parecem exóticos ou pouco coloquiais. Mas também é possível que, pelo contrário, se crie uma espécie de dialeto, que faça sentido apenas para o grupo dos praticantes.

A trajetória do haicai brasileiro tradicional ainda é muito breve e está, por assim dizer, em sua terceira geração. É difícil fazer uma previsão de qual será o seu futuro. Entretanto, uma coisa já é certa e constitui conquista singular: os muitos grupos de haicai espalhados pelo país e a divulgação do haicai tradicional por meio das mídias sociais já produziram e produzem um amplo, verdadeiro e literal (por conta das reuniões, concursos e eventos presenciais de âmbito estadual e nacional)  movimento poético. 

Se desse grande conjunto de agremiações e poetas não resultar uma produção poética significativa no quadro geral da literatura contemporânea brasileira, em termos qualitativos, ao menos já se construiu aqui uma animada forma de produção e sociabilidade poética, à volta do que podemos denominar “poesia do kigo”. 

Essa foi a principal conquista até agora na aclimatação do haicai à língua portuguesa no Brasil: mantê-lo, tal como no Japão, como prática social coletiva de observação e registro dos ciclos sazonais. Resta agora aguardar para ver que frutos produzirá esse notável e consistente esforço de construção de uma nova “poesia da natureza” brasileira.




[Texto lido no congresso Nature and narrative. Approaches to a Brazilian landscape -  Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 13 de janeiro de 2025.]

sábado, 4 de janeiro de 2025

Droga de prosa, droga de poesia

Minha postagem de ontem sobre o artigo provocativo do Alcir falava do vício da leitura. Tomei o cuidado de me declarar não tão viciado quanto ele, de modo a ter uma prudente distância analítica do fenômeno. Depois, porém, me pus a pensar em algo inesperado. Ainda no domínio do vício. É que essa compulsão pela próxima dose, essa imagem do leitor insaciável, voraz (sempre me impressionou, desde que a ouvi pela primeira vez, na juventude, utilizada como elogio de um professor a outro), do leitor que fica em síndrome de abstinência se confinado num espaço sem livros – essa compulsão viciosa, dizia, parece acometer um tipo específico de leitor literário: o leitor de prosa, e, mais especificamente, o leitor de romances. O leitor literário que se dedica a outro gênero parece ter comportamento diferente. Refiro-me ao leitor de poesia. Não conheço nenhum que se lance infinita e imediatamente de um livro de poesia a outro, que leia sofregamente (outra imagem comum) um poeta após o outro. Os leitores contumazes de poesia que eu conheço são poucos e alguns deles exibem uma característica inesperada: se aborrecem facilmente com o objeto do desejo. Talvez isso tenha a ver com o fato de que os leitores fanáticos por poesia são também, na maior parte, praticantes da arte. Alcir disse que até uma droga de livro de ficção pode satisfazer a sede da droga literária. E eu sei que é verdade por experiência própria adolescente. E sei também, por experiência e leituras, que é possível ter enorme satisfação fora do ringue da assim chamada alta literatura. Se não erra a memória, Fernando Pessoa dizia que poucos prazeres se equivalem a um livro com as aventuras de Sherlock Holmes, acompanhado de um bom café e fumo forte. Mesmo histórias de detetive de segunda classe já me deram bastante prazer, assim como aqueles livrinhos de espionagem que eram vendidos em bancas de jornal. Já com a poesia isso seguramente não acontece. Um livro de má poesia é, para o leitor fissurado no gênero, algo da ordem do repulsivo, exceto se for de lavra própria. Então me pus a pensar. Ou a poesia não é literatura, como propunham – cada qual à sua maneira – Verlaine e Pound; ou a poesia é uma droga muito mais poderosa, cujo efeito dura demais e cujo ponto de não retorno por overdose é mais facilmente atingido. Talvez seja por isso que às vezes duas ou três linhas de palavras me fazem fechar um livro e me afastar dele momentaneamente ou para sempre, conforme sejam muito ruins ou muito boas. Alguns versos, quando li pela primeira vez, ficaram como uma pedra de maravilha no estômago. Uma pedra que precisou se dissolver aos poucos, até que eu pudesse voltar à página e ir adiante, sentindo-me capaz de assimilar o golpe. Outros versos, mesmo se lidos uma vez só, me surgiram no meio do dia ou no meio da noite, de repente, recortando ou iluminando uma situação ou cena, dando-lhe forma e às vezes sentido. É certo que na prosa há também essas pedrinhas, que a gente pode destacar ou não consegue esquecer. O que só reforça a hipótese de que a poesia é uma droga concentrada, de alto grau de pureza: uma bomba que abala de golpe o cerebelo ou qualquer outra parte mais poética da caixa do crânio. Por isso mesmo a má poesia tende a ser insuportável. É como droga diluída ou falsificada, farinha em vez de pó de dar barato, ou, para encerrar com uma imagem rude, cocô de vaca seco em vez de erva da boa.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Sobre o gosto da literatura segundo Alcir Pécora

 

Meu amigo Alcir Pécora acaba de  publicar no “Rascunho” um artigo terrível. Um daqueles textos aos quais não se pode ficar indiferente.

Não sei se o título foi escolhido por ele ou pelo editor: “O gosto da literatura”. Mas é bem ajustado ao que vem a seguir. Assim também a linha fina, aquela chamada sob o título, que é um resumo brutal ou um apontar de dedo para o miolo, foi bem escolhida: “Leitores de literatura não estão interessados em adquirir mais conhecimento sobre qualquer outra coisa.” 

Estamos ainda no nariz do texto, que não é de cera, e provavelmente o leitor de boa intenção está já no inferno: primeiro porque a linha fina mostra que no título não se anuncia nenhuma defesa do gosto, da necessidade de construção do gosto. Muito menos elogio do bom-gosto. Se o leitor que lê literatura não está interessado em nada além dela, então o gosto do título se afirma como prazer, como gozo – ou, para provocar um pouco mais, gostosura.

Mas no artigo em breve o gozo, o prazer da literatura, será descrito em registro mais baixo do que o implicado no uso de uma palavra  como fruição. Diz ele: “O leitor habitual de literatura simplesmente deseja, a cada vez, com nuances próprias, a dose suficiente de prazer para fazê-lo retornar à cena de origem: a biblioteca, a livraria, ou onde esteja a fonte dos livros, para que possa escolher um outro livro para ler.” 

É, portanto, de uma peculiar drogadição que se trata. E mesmo uma droga de um livro, para continuar na clave, é capaz de cumprir a mesma função que um sorvo de alta literatura. “até literatura ruim é suscetível de leitura boa e prazerosa”; “qualquer livrinho, qualquer ficção servem para dar algum barato.”

            No horizonte do escândalo estão situadas, como adversários fantasmais,  figuras que brandem boas bandeiras. Os profissionais das letras, em primeiro lugar. Aqueles que, segundo Alcir, afirmam que “literatura é uma forma de conhecimento, e até uma forma “superior” de conhecimento”, os que creem que o estudo da forma literária permite discernir a forma de algo mais além da projeção do conhecimento pré-formado com que se atiram ao literário.

Em coro essa gente entoa aquilo que o nosso autor denomina “o mantra edificante do conhecimento”, que serve a vários bons propósitos, inclusive o não muito edificante de justificar o próprio emprego.

Se esses são os antagonistas, o herói (com ou sem caráter) é o leitor de literatura que não quer saber de nada disso, que não está interessado em aprender nada, que lê porque sente compulsão de ler. E Alcir não se furta à expressão crua. Pelo contrário, regozija com ela: “Enfim, quem é viciado em literatura tem o mesmo tipo de fixação e dependência de qualquer outro viciado: o que eles querem é a droga, no caso, a literatura. Querem o prazer de continuar lendo”. 

            Sei do que ele está falando e  tendo a concordar de fato com tudo que diz, se penso nesse leitor viciado e não me sinto sob o jugo de alguma síndrome humanista. 

Na verdade, gosto de seguir o raciocínio, mas, quando o faço, na minha frente se posta sempre a fatídica pergunta: se a literatura não traz nenhum tipo de conhecimento específico, por que o Estado deveria continuar fazendo um investimento tão pesado na educação literária escolar? 

Algum desesperado antagonista do elogio do vício, algum apologista da instituição, poderia vir dizer que a literatura promove o aprimoramento moral. Coisa de que o Alcir não tratou. E fez bem. 

O ditado que diz que o homem que lê vale mais deve ter sido forjado num tempo em que pouca gente podia ou sabia ler. Porque basta ter vivido num departamento de leitores profissionais de literatura para constatar que ali nada se passa de modo diverso do foguetório de vaidades e festival de rasteiras que existem em qualquer departamento de qualquer outra área do conhecimento, ou mesmo em muitos ambientes de desconhecimento generalizado. Minha experiência tampouco me autoriza a afirmar que leitores profissionais e professorais tenham melhor ou mais amplo ou mais aprofundado conhecimento da vida, da psicologia, da sociedade ou do país. Nada acima da média das pessoas instruídas, eu diria.

Ia por esse caminho, quando percebi que ele talvez tenha uma falha de princípio, porque é verdade sabida e experienciada que nesses departamentos se encontram apenas alguns poucos drogaditos literários: a maioria está longe disso, bem cauterizada e protegida contra o vício.

Ao ler e reler o artigo do Alcir, por fim, me vi recordando meus próprios esforços, em alguns momentos, de responder a esta difícil questão: estudar literatura para quê? Mas não derivei para as perguntas de por que deveríamos estudar tantas outras coisas, como os dinossauros ou a teoria musical. Apenas me perguntei sobre o porquê de a literatura exigir um lugar tão destacado nos currículos escolares e outras formas (artísticas) de drogadição, não. Por fim, embatuquei num desafio íntimo: eu estaria disposto a fazer como ele? A fundir numa pequena crônica o elogio desbragado do prazer e  a negação terminante das funções transitivas da leitura literária? Talvez não, porque talvez eu não seja, afinal, um viciado como ele.