Nessas provocações que tenho feito quanto à capacidade da IA de fazer poesia, há um ponto que tenho achado interessante considerar. É que a maior parte de nós boa parte do tempo faz pastiche, assim como a máquina. Vamos lendo, acumulando ideias, procedimentos, imagens, imitando e tentado nos livrar da “influência”, dando um uso criativo a essa dinâmica etc. E nesse arranjo, quando conseguimos, inserimos a nossa nota pessoal, original ou o que seja. Mas penso que duas coisas entram em ação para confundir o debate quando falamos de IA. Primeiro, a ideia romântica do gênio, da individualidade capaz de radical originalidade. Depois, a ideia, que ora é antagônica, ora é complementar a essa, da autonomia do objeto estético. Com o New Criticism e com o Estruturalismo aprendemos na escola que o texto deve falar por si, que vale pela sua estrutura, pela sua concretude, independente de intenção ou propósito do autor. A história da poesia (e da literatura, claro) poderia ser contada como uma história de evolução das formas, quase ou totalmente apagando os autores. Mas essa sim parece uma falácia, em muitos sentidos. Porque talvez haja mais entre um texto e seu autor do que supõe a vã visada autonomista. Esse mais é algo que eu tenderia a chamar de personalidade ou mesmo de biografia literária. Que é diferente da biografia no sentido estrito. Principalmente da personalidade, num sentido psicológico. É uma imagem autoral que permite dinamizar o texto, interpretá-lo e reconhecer nele qualidades estéticas que, sem ela, não teriam a mesma força ou o mesmo sentido. Um bom exemplo é Manuel Bandeira. Sem a sua imagem autoral, sem a sua – por assim dizer – biografia pública, literária, gostaríamos do seu porquinho da Índia? Da sua Irene no céu? Da sua andorinha, andorinha? Dos seus cachorrinhos bebendo água? Escrito por um autor do qual nada soubéssemos, o porquinho não seria terrivelmente piegas? Se assinado por um estudante e entregue a um professor, que seria do poema da Irene ou da conversa com a andorinha? Além disso, há o estilo. Seria imaginável qualquer um desses três poemas saindo das famosas dores de cabeça do João Cabral? Portanto, a questão que me parece interessante no caso da IA é: um texto poético muito bem escrito e estruturado, incluindo ainda originalidade no tratamento do tema (porque pode-se programar a aparição do inesperado e aleatório – é só questão de tempo) poderá ser recebido e lido como boa poesia? Penso que essa questão é importante principalmente porque nos mostra a expectativa que temos com relação à poesia. Talvez com relação à música esse problema não se apresente com a mesma complexidade. Com o design industrial certamente não. E com a arquitetura, o que seria? Ou seja, as provocações visam a escarafunchar um pouco a nossa expectativa frente a um texto que identificamos como poesia. Apenas isso.