Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Sobre o gosto da literatura segundo Alcir Pécora

 

Meu amigo Alcir Pécora acaba de  publicar no “Rascunho” um artigo terrível. Um daqueles textos aos quais não se pode ficar indiferente.

Não sei se o título foi escolhido por ele ou pelo editor: “O gosto da literatura”. Mas é bem ajustado ao que vem a seguir. Assim também a linha fina, aquela chamada sob o título, que é um resumo brutal ou um apontar de dedo para o miolo, foi bem escolhida: “Leitores de literatura não estão interessados em adquirir mais conhecimento sobre qualquer outra coisa.” 

Estamos ainda no nariz do texto, que não é de cera, e provavelmente o leitor de boa intenção está já no inferno: primeiro porque a linha fina mostra que no título não se anuncia nenhuma defesa do gosto, da necessidade de construção do gosto. Muito menos elogio do bom-gosto. Se o leitor que lê literatura não está interessado em nada além dela, então o gosto do título se afirma como prazer, como gozo – ou, para provocar um pouco mais, gostosura.

Mas no artigo em breve o gozo, o prazer da literatura, será descrito em registro mais baixo do que o implicado no uso de uma palavra  como fruição. Diz ele: “O leitor habitual de literatura simplesmente deseja, a cada vez, com nuances próprias, a dose suficiente de prazer para fazê-lo retornar à cena de origem: a biblioteca, a livraria, ou onde esteja a fonte dos livros, para que possa escolher um outro livro para ler.” 

É, portanto, de uma peculiar drogadição que se trata. E mesmo uma droga de um livro, para continuar na clave, é capaz de cumprir a mesma função que um sorvo de alta literatura. “até literatura ruim é suscetível de leitura boa e prazerosa”; “qualquer livrinho, qualquer ficção servem para dar algum barato.”

            No horizonte do escândalo estão situadas, como adversários fantasmais,  figuras que brandem boas bandeiras. Os profissionais das letras, em primeiro lugar. Aqueles que, segundo Alcir, afirmam que “literatura é uma forma de conhecimento, e até uma forma “superior” de conhecimento”, os que creem que o estudo da forma literária permite discernir a forma de algo mais além da projeção do conhecimento pré-formado com que se atiram ao literário.

Em coro essa gente entoa aquilo que o nosso autor denomina “o mantra edificante do conhecimento”, que serve a vários bons propósitos, inclusive o não muito edificante de justificar o próprio emprego.

Se esses são os antagonistas, o herói (com ou sem caráter) é o leitor de literatura que não quer saber de nada disso, que não está interessado em aprender nada, que lê porque sente compulsão de ler. E Alcir não se furta à expressão crua. Pelo contrário, regozija com ela: “Enfim, quem é viciado em literatura tem o mesmo tipo de fixação e dependência de qualquer outro viciado: o que eles querem é a droga, no caso, a literatura. Querem o prazer de continuar lendo”. 

            Sei do que ele está falando e  tendo a concordar de fato com tudo que diz, se penso nesse leitor viciado e não me sinto sob o jugo de alguma síndrome humanista. 

Na verdade, gosto de seguir o raciocínio, mas, quando o faço, na minha frente se posta sempre a fatídica pergunta: se a literatura não traz nenhum tipo de conhecimento específico, por que o Estado deveria continuar fazendo um investimento tão pesado na educação literária escolar? 

Algum desesperado antagonista do elogio do vício, algum apologista da instituição, poderia vir dizer que a literatura promove o aprimoramento moral. Coisa de que o Alcir não tratou. E fez bem. 

O ditado que diz que o homem que lê vale mais deve ter sido forjado num tempo em que pouca gente podia ou sabia ler. Porque basta ter vivido num departamento de leitores profissionais de literatura para constatar que ali nada se passa de modo diverso do foguetório de vaidades e festival de rasteiras que existem em qualquer departamento de qualquer outra área do conhecimento, ou mesmo em muitos ambientes de desconhecimento generalizado. Minha experiência tampouco me autoriza a afirmar que leitores profissionais e professorais tenham melhor ou mais amplo ou mais aprofundado conhecimento da vida, da psicologia, da sociedade ou do país. Nada acima da média das pessoas instruídas, eu diria.

Ia por esse caminho, quando percebi que ele talvez tenha uma falha de princípio, porque é verdade sabida e experienciada que nesses departamentos se encontram apenas alguns poucos drogaditos literários: a maioria está longe disso, bem cauterizada e protegida contra o vício.

Ao ler e reler o artigo do Alcir, por fim, me vi recordando meus próprios esforços, em alguns momentos, de responder a esta difícil questão: estudar literatura para quê? Mas não derivei para as perguntas de por que deveríamos estudar tantas outras coisas, como os dinossauros ou a teoria musical. Apenas me perguntei sobre o porquê de a literatura exigir um lugar tão destacado nos currículos escolares e outras formas (artísticas) de drogadição, não. Por fim, embatuquei num desafio íntimo: eu estaria disposto a fazer como ele? A fundir numa pequena crônica o elogio desbragado do prazer e  a negação terminante das funções transitivas da leitura literária? Talvez não, porque talvez eu não seja, afinal, um viciado como ele.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Digital e analógico

 Nesta era digital, fico pensando que poderia ser chocante, na poesia, um movimento semelhante ao que se vê na música: um recuo, uma volta ao analógico. O caminho da música gravada foi do gramofone ao disco, do disco ao cd, do cd à forma puramente digital. Mas agora são os velhos LPs os objetos do desejo. Também no tocante ao equipamento de reprodução, parece que se impõe a superioridade da válvula iluminada em relação ao transístor opaco. Fico pensando no que poderia ser um equivalente em poesia. Tenho um amigo que cada vez mais escreve tudo à mão, abandonando o computador. Outro, mais comedido, reserva o computador para o trabalho. Poesia, só à mão e a lápis. Quem sabe um dia ainda veremos poesia autógrafa, reproduzida em xerox, ou - como nos tempos da poesia marginal – em mimeógrafo a álcool... Poderia interessante esse retorno. Seria um contraponto à tendência do momento em que mesmo o livro digital em edição de autor busca todas as formas da mercadoria, como capa, prefácios, créditos, ficha catalográfica e ISBN. E um contraponto à crescente perda de corporeidade do texto, agora reduzido a dígitos transmitidos por wi-fi.

terça-feira, 24 de março de 2015

Notas soltas

24 de março de 2015

Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo “gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar, nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome “literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia, diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do procedimento associado ao registro, como no caso das linhas interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão, paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer. Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã, fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação da crença na perenidade da “literatura”.