Recebi por esses dias um livrinho interessante de uma coleção interessante de uma editora interessante.
Trata-se de “O tio da caminhonete”, de Pablo Simpson, publicado na Coleção Caravelas, da Editacuja Editora. Para completar a informação: São Paulo, 2021.
A arte visual é de Fernando Morato, desde a envolvente sobrecapa, até os desenhos ótimos, que batem papo com o texto ao longo das páginas.
Na ficha técnica encontro mais amigos, ex-alunos da Unicamp. Lá estão Pedro Marques, na curadoria da coleção, e Marcelo Beso, na revisão. E entre os autores já publicados, mais alguns: além do Pedro, o Marco Catalão, de quem já falei aqui, numa dessas crônicas de leitura, e Francine Ricieri, cujo “Eppur si muove” propus a mim mesmo comentar um dia desses e terminei por não o fazer.
O livro de Pablo vale a leitura. E os desenhos de Fernando, idem.
O que me agradou mais foi a mistura. Na caçamba dessa mítica caminhonete cabe de tudo. Cabe Alberto Caeiro, que está na epígrafe e é glosado nas primeiras linhas: “Eu nunca guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse” vira “Eu nunca dirigi uma caminhonete / Mas é como se dirigisse”. Cabem Ray Charles, Santa Teresa de Jesus e Raul Torres e Serrinha nas epígrafes, e cabe, no espírito, também o irmão – porque filho do mesmo pai – de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Esse, na verdade, o inconfessado guiador, porque também aqui o poeta é o tio que guia a caminhonete e é a própria caminhonete. Além disso, ajeita-se nessa caçamba um rolo farpado de alusões e citações, confessas ou disfarçadas.
Pode ser verdade que o tio que nos fala nunca tenha guiado uma caminhonete, mas é quase certo que o poeta, sim. Porque a celebrada D-20 surge muito técnica e sensualmente descrita, do alto dos seus trinta anos, na página final. Sua biografia minuciosa, junto com a de Alberto Caeiro, revela conhecimento íntimo, atesta manipulação amorosa e constante de ambos.
Mas voltando à estrada de Sintra, aqui transmutada, ao que parece, na Washington Luís entre Araraquara e São José do Rio Preto: graças a um código QR, que remete ao Spotify, sabemos que esse hipotético tiozão vai ouvindo uma verdadeira salada musical que junta um pouco de tudo, em justaposições inesperadas: Roberto Carlos, Jota Quest, Sérgio Reis, Johnny Cash, Mötley Crüe, forrozão...
Assim como a trilha sonora, a salada de gêneros e tonalidades afetivas é a tônica do poema. E nisso reside sua arte e interesse, porque nos meandros desse negaceio brotam trevos e carrapichos de lirismo.
Enquanto lia me lembrei de um belo poema de William Carlos Williams, “The right of way”. José Paulo Paes o traduziu. Começa assim:
O DIREITO DE PASSAGEM
Transitando com a ideia posta
em nada deste mundo
a não ser o direito de passagem
eu desfruto a estrada por
efeito de lei —
Direto de passagem não é boa tradução. É uma via preferencial, na qual o poeta pode dirigir sem se preocupar em parar nos cruzamentos e assim ir contando o que vê à margem da estrada.
No poema de Pablo não há direito de passagem, e o momento de autoestrada é breve: aqui não há narrativa de escopo realista, mas uma série de montagens paródicas e irônicas.
Talvez por isso mesmo me tenha lembrado também de um texto de Freud que me causou muita impressão quando o li na juventude.
Se me lembro bem, Freud dizia que quando um eu se abre com outro, se aproxima muito, o movimento do outro é de fechamento, de erguer barreiras, de se afastar. Freud então se pergunta por que e como a exposição de algo muito íntimo num poema ou numa obra de arte nos atinge, passa as barreiras, nos causa empatia, pode nos comover profundamente.
Talvez eu não tenha resumido bem, mas a ideia era essa, a pergunta era essa. E a resposta dele foi que a arte nos distrai. A forma nos ocupa, nos atrai a atenção. E o conteúdo psíquico nos atinge. Mais ou menos como um truque, uma espécie de prestidigitação psíquica.
(Este é um resumo bem condizente com esta manhã preguiçosa e calorenta de sábado, que me impede de ir buscar o texto e de o reler.)
Pois bem, esse texto de Freud me ocorreu porque nesse passeio com a velha caminhonete acontece algo semelhante: nessa bricolagem irônica, em que o poeta joga em todas as posições, de goleiro a centroavante, algo passa – ao gosto do freguês, podia talvez dizer, mas seria uma leitura simplista – algo passa de lirismo. Um lirismo que pede passagem, tropeça nos imaginados engradados de cerveja na caçamba, habita o lema machista do para-choque, às vezes surge numa frase, outra numa só palavra encaixada para o efeito, até que fecha o livro num haicai:
Noite e eu só sempre só
escovo os dentes ouço
um grilo na calçada.
É verdade que o fecho do livro – como acontece com os fechos todos, dos romances e das vidas – redimensiona o que veio antes dele, percorre-o como uma fagulha, iluminando retrospectivamente a vida ou o romance, com uma luz nova que destaca cenas e palavras que tinham ficado embaçadas ou nas quais tínhamos atentado pouco.
Seja como for, a releitura fragmentária pareceu-me tão interessante quanto a leitura. O que, para mim, é um tipo de, como se dizia antigamente, prova dos nove.