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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Recordando Goga



Arrumando os arquivos do computador, encontrei várias anotações sobre uma figura excepcional que tive o prazer de conhecer. Juntei alguma coisa, puxei pela memória e eis aqui:
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Conheci H. Masuda Goga logo depois do lançamento de “Haikai: antologia e história”. Foi assim: a Editora da Unicamp, que o publicara, participava da Bienal do Livro. No estande, fui procurado por um simpático senhor, que se apresentou: Douglas Eden Brotto. Falou-me então de um grupo que se dedicava à prática do haicai em São Paulo, na Aliança Cultural Brasil-Japão, e convidou-me para ir conhecê-lo. Creio que ele estava com mais alguém, mas não me recordo. Recordo-me, sim, que fui, no próximo sábado em que houve reunião. E foi lá que conheci Goga.
Goga praticara o haicai sob orientação de Sato Nenpuku, que liderava um amplo movimento de composição do haicai em japonês entre os imigrantes. Ao longo dos anos em que se dedicou a promover o haicai, Nenpuku teve cerca de 6000 mil discípulos. Mas nunca escreveu em português.
A produção de Nenpuku terminou por ser conhecida em nossa língua, traduzida, mas a enorme quantidade de haicais escrita em japonês, tendo como tema a natureza e a vida quotidiana no Brasil, parece esperar em vão por um trabalho sério e sistemático, que a reúna, estude e traduza, permitindo assim a sua divulgação mais ampla no país, bem como o conhecimento da língua dos imigrantes e alguns aspectos da sua adaptação ao clima, à flora e à fauna do Brasil.
Goga levou adiante o trabalho de Nenpuku, praticando o haicai na sua língua natal, mas dando um passo decisivo. Como foi amigo de Guilherme de Almeida e de Jorge Fonseca Júnior, empenhou-se na transposição do haicai tradicional para o português.
A tarefa não era fácil. O haicai não é somente uma forma fixa. Não é uma espécie de microssoneto, não é uma estrutura na qual se pode vazar qualquer conteúdo.
É certo que o “haicai” tem uma forma que, na vertente que é a de Goga, tradicionalista, exige um grande domínio da técnica e da língua literária. Mas antes de ser uma forma ou o produto de uma técnica, o haicai é um jeito de estar no mundo, uma maneira de olhar para as coisas. Um jeito de estar na linguagem, no sentido de que o estado de haicai pressupõe a contemplação, a experiência e a composição por impulso, segundo a impressão do momento. Mais ou menos como sair com uma câmera para fazer fotos pressupõe um jeito diferente de olhar para as coisas e de se acercar delas.
O primeiro problema que se apresentava, em meados do século XX, era compreender por que caminhos e com que sentidos o haicai tinha chegado ao Brasil. Não havia ainda nenhum trabalho sistemático sobre isso, nem em português, nem em japonês. Goga dedicou-se a recompor essa história, dando finalmente a público, em 1987, o volume O haicai no Brasil, publicado também em língua japonesa.
Nesse mesmo ano, junto com outros interessados, principalmente nisseis, fundou a primeira associação dedicada à prática de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, e logo depois, em 1993, o Grêmio Haicai Caleidoscópio, dedicado à produção de rengas (haicais encadeados) em língua portuguesa.
Foram anos de dedicação à tarefa. Goga, nascido em 1911, emigrou para o Brasil em 1929. Seu trabalho com o haicai em português se estende de 1936 até 1987, quando dá por encerrada a primeira parte do trabalho, com a publicação do livro e a fundação do Grêmio.
Ainda havia, entretanto, muito que trabalhar, para construir o haicai brasileiro em moldes japoneses. O próximo desafio era fazer a sistematização dos índices de estação no Brasil.
No Japão, a longa prática consolidou relações unívocas entre alguns fenômenos, animais, plantas e atos humanos, por um lado, e os vários momentos do ciclo das estações, por outro. A simples menção a um pássaro, por exemplo, já convoca para o poema associações que configuram não só uma estação específica, mas também um estado de espírito tradicionalmente associado a ela. A alma do haicai tradicional repousa nessas relações unívocas, pois elas fornecem a base para o desenvolvimento particular de cada poema, por meio da glosa do estado de espírito conotado, da sua contradição, da anotação de uma variante ou, em casos mais radicais, da sua negação pela ironia ou pela piada. No Japão, a codificação dessas relações é tão importante e clara que se organizam dicionários de “kigos”, isto é, palavras que remetem a um momento determinado na sucessão das estações.
No Brasil, país de vários climas e de estações menos definidas, o “kigo” sempre foi um problema. Sua sistematização, do ponto de vista do haicai tradicional, era urgente.
Com ajuda da haicaísta Teruko Oda, sua sobrinha, foi esse o próximo passo de Goga na construção do caminho do haicai brasileiro. Após muitos anos de trabalho, ambos publicaram finalmente o volume “Natureza – Berço do Haicai” (1996), o primeiro dicionário de “kigos” brasileiros.
Por conta desse trabalho, Masuda Goga recebeu, em 2004, do Japão, o “Masaoka Shiki International Haiku Grand Prize”, que é concedido a pessoas que tiveram grande destaque na difusão internacional do haicai.
Em 2008, ano em que se comemoravam os cem anos da imigração japonesa, esse homem que dedicou boa parte da vida a promover a imigração da forma do haicai tradicional nos deixou, no dia 28 de maio. Tinha 96 anos de idade.
Sua passagem foi consentânea com os ideais da poesia que praticou.
Naquele ano, ia ser lançado, pelos seus admiradores, um concurso de haicai com o seu nome, e seria realizada uma exposição de fotografias em sua homenagem. Ia também ser lançado o meu livro “Oeste/Nishi”, que Goga generosamente tinha traduzido para o japonês, completando assim um círculo: o haicai tradicional, praticado pela colônia sob a orientação de Nenpuku, aclimatado à língua portuguesa por Goga, voltava agora à língua japonesa pelas suas mãos. É certo que eu não pertencia ao Grêmio Ipê, mas também é certo que sempre tive por ele a maior simpatia. De modo que nesse sentido se pode dizer que o círculo se fechava.
Pois bem, foi quando viajava, em companhia do filho e da nora para São Paulo, vindo do interior de Minas Gerais, onde vivia seus últimos anos, que Masuda faleceu. Trazia, como sempre, a sua caderneta, onde escrevia tantos haicais. Em certo momento, olhando a paisagem, sentiu-se cansado. Disse à nora que descansaria um pouco no ombro dela. Recostou-se e adormeceu calmamente para sempre.
Na abertura dos eventos comemorativos, que incluíam o lançamento do livro, um seu retrato o representou: sorridente e feliz, como sempre o vimos e dele me lembro agora.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Um livro involuntário - #1


Quando me iniciava na prática do haicai, enviei a Masuda Goga, pedindo sua avaliação, um conjunto de tercetos. Algum tempo depois, surpreso, recebi em casa alguns exemplares de um livrinho em que eles se juntavam. Era um objeto bem bonito, pequeno, quase uma caderneta, medindo 19x10 cm, com 76 páginas. A capa era linda: trazia Sabará, numa pintura de Alberto da Veiga Guignard que, a um olhar mais rápido, até poderia passar por japonesa, ou chinesa. Intitulava-se simplesmente haicais'.
Massao Ohno ou alguém a quem ele atribuiu a tarefa escolheu para texto de orelha um artigo publicado num dos dois jornais de Campinas da época, o Diário do Povo. Intitulado “Haicai: de gênero poético a filosofia”, vem datado de 8 de agosto de 1992 e não traz assinatura.. Eu não sabia e não sei ainda quem o escreveu, nem como chegou ele ao editor que, provavelmente, achou que o autor teria sido eu mesmo.
Na verdade, como já deve ter ficado claro, eu não fazia sequer ideia de como tinha nascido aquele livro e só fui descobrir quando deparei com uma página prefacial em japonês, sem tradução, assinada por Masuda Goga, que mencionava o trabalho que fiz com Elza Doi, Haikai – antologia e história, de 1990, bem como o haicai com que eu tinha ganho um concurso, naquele mesmo ano, acrescentando gentilmente que, embora o haicai (aquele em que os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo) pudesse fazer pensar que eu era velho, isso não era verdade.
Uma curiosidade a mais: em certo ponto do livro intrometia-se um tanka algo desequilibrado e brincalhão, que eu enviara como piada, junto com os haicais, ao Goga. Diz assim:
o peixe nadava
em círculos no barril.
Issa lhe compôs
um haikai bem dolorido
e o comeu depois, cozido.
Não faço ideia de por que Goga resolveu incluí-lo no livro. Nem por que motivo ele veio onde deveria vir o título do conjunto de haicais que se seguem, que integravam um dos dois diários de viagem de que, junto com os avulsos, se compunha o conjunto do material que lhe enviara... Mas confesso que não desgostei.
Vários anos depois, Masuda me enviou outra surpresa: esses mesmos haicais traduzidos por ele para o japonês, na forma tradicional, acrescidos de alguns outros, que lhe tinha enviado depois – mas agora sem o tanka brincalhão. Foram esses que utilizei na publicação de Oeste/Nishi (2008) pela Editora Ateliê, do que resultou que nesse segundo livro se encontrassem repetidos todos os do primeiro.
O que é compreensível, e talvez desculpável, frente ao fato de que haicais, publicado pela Massao Ohno com a Aliança Cultural Brasil-Japão em 1994, foi um livro de cuja preparação não participei, nem tive notícia. Uma surpresa. Um presente inesperado.
Não terminavam aí, porém, as novidades. Ao abrir o livro, vi que Goga escolhera um haicai de Bashô para figurar como epígrafe. A tradução deve ser dele. Diz assim:
Nestes arredores,
a vista sempre descobre
ambientes frescos.
Gostei muito dessa escolha. Fui imediatamente procurar o original e encontrei isto: kono atari me ni miyuru mono wa mina suzushi.
Recebi-o como um gesto de gentileza, um cumprimento generoso, um aceno do velho mestre.
Na verdade, era sobre essa epígrafe que eu gostaria de falar, antes que a memória me levasse para longe dela. Então falarei depois.