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segunda-feira, 28 de abril de 2025

Kigos brasileiros

 Carlos Martins publicou no grupo O Zen do Haicai um começo de catálogo de kigos, extraído das postagens de Edson Iura na coluna mensal Haicai Brasileiro, do portal Brasil Nikkei.


Todos os haicais que ilustram o kigo foram produzidos por imigrantes e traduzidos pelo Edson. Enquanto lia, fui anotando os haicais que me impressionaram, talvez porque neles o kigo me pareceu funcionar melhor, talvez simplesmente por me parecerem poemas melhores.

Para estimular o diálogo, reproduzo abaixo as anotações rápidas (e talvez ainda informes) que fiz sobre cada um.

Apressa a passagem
pela cancela do trem
Grito da araponga. (Ayako Nishi)

Este tem humor. O grito metálico da araponga parece um sino, um aviso. Há uma correspondência entre o trem e seu aparato metálico e o grito do pássaro, que funciona como uma campainha ou sinal de alarma.

Bolhas de sabão —
Quem sopra é uma pessoa
cansada deste mundo. (Tomoko Tanaka)

Este é comovente. As efêmeras bolhas de sabão não servem ao lamento pela brevidade da vida ou impermanência das coisas e afetos. A ligação entre o kigo e a segunda parte é por contraste agudo. Como se a pessoa ansiasse pelo fim. E as bolhas de sabão representam também o mundo do qual a pessoa está cansada.

Ganhei uma muda
sem ter um canto para plantar
Dia da Arvore. (Ryokufû Fujino)

Este tem wabi. A pessoa ganhou uma muda, mas não tem um quintal, nenhum lugar para plantar. Poderia ser interpretado também como: não sou digno da graça recebida.

Em meio à queimada
como se fosse um monstrengo
passa o trem noturno. (Sekijô Terada)

A pura notação sensorial é o ponto forte deste haicai. A imagem impacta a mente do leitor. Aos que são contra a comparação no haicai, este é um bom exemplo do contrário.

No espelho do lago
a figura refletida
do salgueiro verde. (Gôga Masuda)

Eu sabia que era do Goga antes de ler o nome do autor. Não sei bem explicar porqu6e. Talvez eu já o tivesse lido. Mas a pura objetividade me fez imaginar a autoria. Goga dizia, num documentário, ser um discípulo de Bashô. Mas como discípulo de Nenpuku Sato, que o era de Kyoshi Takahama, era, na verdade, um discípulo de Shiki (como, em medida variável, quase todos nós).

Talvez uma dúzia.
Debaixo do flamboyant
os bancos de pedra. (Gôga Masuda)

O ponto deste haicai, nesta tradução, é que não se sabe uma dúzia de que coisa: bancos de pedra ou pessoas nos bancos de pedra embaixo do flamboyant. É provável que sejam só bancos de pedra. A forma aqui é tudo.

Luz de vaga-lume —
Imigrante no Brasil
tudo o que me basta. (Nempuku Satô)

Forte haicai, com sabi e wabi. Há solidão e saboreio agradável do pouco e do pequeno. E, claro, a simbologia da luz encontrada na nova terra, além do eco algo irônico da imagem do sol nascente que caracteriza o país de origem na luzinha do pequeno inseto do país de adoção.

Cheiro de goiaba —
Não se fala de tristeza
entre as operárias. (Keizan Kayano)

Pura notação objetiva, em que o prazer simples e momentâneo afasta por instantes as duras condições da vida.

Mordo uma pera
enquanto o ônibus atravessa
as velhas ruínas. (Makkô Miyazaki)

Contraste entre a ação e o ambiente. A intenção pode ter sido de registrar dois prazeres concomitantes: a contemplação e a fruta. Mas o que predomina é o contraste, que me transmite um sentimento pouco piedoso. Por isso me impressionou.

Domingo de Ramos.
Aquele que vende palmas
também é engraxate. (Shûfûshi Ôkuma)

O tom do haicai é entre piedoso e irônico. Mais para o irônico.

A densa Via Láctea.
Veio da mãe o costume
de falar sozinha. (Kayoko Ono)

Em japonês não sei se havia ao final do primeiro verso uma partícula indicando que isso foi dito por alguém. Parece que esse é o sentido. A pessoa diz algo, percebe que falou sozinha e isso desperta a lembrança afetiva.

Planalto Central.
Aqui dá para pegar na mão
a Via Láctea. (Gôga Masuda)

Outro belo haicai que traz a marca do Goga. Observação objetiva, em que o sensório vem para primeiro plano.

O som da coruja —
Começou a resmungar
a velha senhora. (Tomiko Kusunoki)

Aqui também não sei se o primeiro verso traria a partícula que equivaleria às aspas. Mas não caberia o uso de aspas, pois a primeira frase tanto pode ter sido dita pela velha senhora resmungona, quanto pode ser lida como descrição da própria, que resmunga como uma coruja.

Deste dia curto
roubo tempo pra fazer
um aventalzinho. (Teijo Akagi)

Ecoa a ética do trabalho. O avental pequeno como o dia curto. O trabalho possível na condição oferecida.

A filha resoluta
no desejo de ser freira.
Rosa de inverno. (Sumiyo Hirano)

A rosa de inverno fenece rápido. É melancólica quase sempre a imagem, embora também possa ser um símbolo da graça recebida fora de hora. Aqui as duas coisas se misturam. A perda da filha, por um lado. A ideia de salvação ou de bênção por outro. Dado o caráter melancólico da imagem, a primeira ideia se impõe sobre a segunda e o haicai é pungente.

Pelos urubus —
Assim soubemos da morte
do cavalo velho. (Nansenshi Yuda)

É objetivo, realista, forte. O velho cavalo, a que provavelmente a família deve muito, morre ignorado e sua morte é anunciada pelos pássaros que vão devorar seu cadáver. De dar nó na garganta.