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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Haicai e zen

 Entre os muitos textos que fui postando no fórum que Edson Iura e eu criamos nos primórdios da internet, há alguns que me agradam ainda hoje.

Eles estavam escritos sem acentuação e sem cedilhas, com linhas meio aleatórias - enfiem: eram difíceis de ler.
Pedi à IA para os atualizar, e ela fez esse trabalho chatíssimo.
Aqui está um deles, animado por uma combatividade e um entusiasmo que leio com alguma simpatia.

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Entre os muitos textos que fui postando no fórum que Edson Iura e eu criamos nos primórdios da internet, há alguns que me agradam ainda hoje.
Eles estavam escritos sem acentuação e sem cedilhas, com linhas meio aleatórias - enfiem: eram difíceis de ler.
Pedi à IA para os atualizar, e ela fez esse trabalho chatíssimo.
Aqui está um deles, animado por uma combatividade e um entusiasmo que leio com alguma simpatia.

HAICAI E ZEN

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Texto de julho de 1996

Há algumas semanas, o Edson postou aqui um comentário sobre o zen no haicai, ou melhor, sobre o zen na crítica e no entendimento ocidentais do haicai. Depois, o Gabriel postou um texto que parecia uma contestação, meio oblíqua, ao Edson. E o assunto morreu. Por fora da lista, sei que há pelo menos mais uma pessoa que tem algo a dizer sobre o assunto, mas que não tem achado tempo de o fazer.

Assim, resolvi pôr a minha opinião para girar, enquanto outros não se pronunciam.

Pois bem. Acho que eu concordo e não concordo com o Edson. Concordo com ele e com o autor que citou no que diz respeito ao exagero zenista que assola o haicai fora do Japão. Tudo é zen, e fala-se indistintamente de haicai e de zen, ou de ikebana e zen, porque o que importa é esse indefinível e inatingível zen. Vi uma vez, em São Paulo, um conferencista que, depois de dizer que o zen é a base indefinível, passou a defini-lo nos termos mais bizarros: um mosquito é o zen, um beijo é o zen, o nada é o zen, isto aqui é o zen, a chuva, o sol, a poesia, o sexo, o amor, etc. Sei que alguns estão pensando que o homem era um iluminado e eu um boboca que não pude entender que o meu próprio umbigo também era o zen. Mas a minha reação foi de pasmo e depois um incontrolável ataque de riso que fez com que tivesse de sair, chorando e com dor de estômago, para gargalhar do lado de fora. E onde pensam vocês que se deu tal conferência? Num Encontro de Haicai, no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo. Era tudo por conta do haicai...

Quero dizer: já ouvi tanta bobagem sobre o zen quanto qualquer outro, e também me irrita essa coisa de meter a palavra em tudo. Nesse sentido, zen é, para os ouvidos, um termo pior do que "dialética", quero dizer: usado ainda mais confusa, vaga e indiscriminadamente. E obviamente tenho de concordar que é possível fazer bons haicais sem nunca ter queimado as pestanas sobre um texto de divulgação do que seja o "zen".

Também, é claro, fiquei já irritado com a identificação simplista de zen com imediatismo espontaneísta, ou com o irracionalismo.
Nesse aspecto, achei perfeito quando um monge da Terra Pura me disse, com um sorriso bastante irônico, que os homens do zen dizem que o melhor é o silêncio e que o zen não se pode definir, ao mesmo tempo em que escrevem rios de livros para dizer o que é e como é o zen.

Por outro lado, é preciso ver também que a palavra zen significa, nas várias línguas do Ocidente, alguma coisa muito diferente, muito especial.

Para nós, essa palavra tem uma história cheia de beleza. De minha parte, quando penso no zen, no conceito de zen ocidental, penso com respeito, e com emoção.

Pouco me importa, nesse nível, o que seja o zen no Oriente. Isto é, aquele particular ramo do Budismo, com tais e tais sutras como base e tais e tais patriarcas. O nosso zen é outra coisa. É aquilo que D. T. Suzuki nos ensinou? É, sem dúvida: seu Zen and Japanese Culture sempre será um livro admirável. É também aquilo que nos ensinaram todos aqueles chatos religiosos, como o intragável Taisen Deshimaru, que fez tantos prosélitos? É, sem dúvida. Isso não se discute.

Entretanto, o que me comove de verdade não é nenhum desses textos, nenhum desses missionários que vieram do Oriente para nos fazer ver o verdadeiro zen. O que me comove é o zen que foi refabricado no Ocidente, a partir das nossas necessidades e do nosso esforço de conquistar uma alteridade que nos conviesse. Estou falando, agora, de gente como Allan Watts, R. H. Blyth, E. Herrigel e tantos outros. O zen que conta para nós é o de Herrigel. Seu relato do aprendizado da arte do arco e flecha é uma maravilha. É o de Watts, esse gênio brilhante que era também um tanto charlatão e um escritor de primeira linha. Seus textos sobre o zen, bem como a sua biografia, ajudaram a moldar aquilo que depois chamamos de orientalização da contracultura. E é o de Blyth, que nos abriu os olhos para uma coisa que ele chamou de zen, mas que poderia ter chamado de qualquer outra coisa, pois a reconhecia tanto em Wordsworth quanto em Bashô; em Issa e em Shakespeare. Sua interpretação de haicais é às vezes desfocada? É, ao que dizem. Mas isso não tem importância real: em regra, seu comentário ilumina o verso que comenta e ilumina muito mais que ele: mostra a atitude que está na sua origem, defende um jeito de estar no mundo e de fazer e ler a poesia em geral.

Blyth, Watts e Herrigel chamaram de zen aquilo que encontraram ou julgaram encontrar no Oriente e que quiseram trazer para o nosso mundo. Eram educadores, reformadores. Nesse caso, a verdade do que foi o seu zen é garantida pela sua obra, pelo destino que tiveram os seus livros. Depois deles, o zen passou a fazer parte da nossa cultura, é o "nosso zen".

Aos eruditos acadêmicos, esses homens causam um esgar de desprezo. Mas quem aguenta os scholars budistas? Quem quiser tentar, assine a lista Buddha-L ou a Buddhism: ambas são de uma chatice, um pedantismo e um profissionalismo de matar. Fala-se ali de Budismo como se se falasse do cálculo de resistência de materiais. Isto é, academicamente, embalsamadamente. Para eles, é vital saber qual era o termo exato que compareceu na terceira tradução para o chinês de um dado texto sânscrito. E isso é realmente louvável, enquanto método e ciência acadêmica. Mas o que aqueles senhores têm a dizer sobre o Budismo ou sobre o zen é muito pouco e quase sempre de uma perspectiva que faz com que o seu assunto não interesse a quase mais ninguém... O zen que se mexe e que leva as pessoas a mudarem formas de ver ou de se comportar, por menores que possam ser essas mudanças, é o zen de Watts, de Blyth e de Herrigel. É o que vem revestido daquilo que talvez nem seja muito zen: a paixão.

Desse ponto de vista, portanto, discordo do tom que vem no texto transcrito pelo Edson. O haicai, para muitos, é um exercício de "zen". Desse zen ocidental, meio tingido de beatnik, meio lavado de exotismo, certamente contestador, libertador, cheirando a anos 50. Que seja! Desde que se faça boa poesia.

Por outro lado, é verdade que a maior parte dos japoneses que pratica o haiku está pouco preocupada com o zen. No Brasil, então, talvez não haja um mais que um ou dois isseis ou nisseis que façam haiku e se confessem adeptos do zen.


Compreende-se, então, o espanto com que recebem a nossa pergunta fatal sobre o zen... Compreende-se mesmo que possam revoltar-se com a insistência na ignorância.


Mas o que normalmente um ocidental quer dizer, quando fala em zen e não é apenas mais uma vítima das modas culturais, é muito menos e muito mais do que um japonês ou chinês usualmente entende pela palavra. É muito menos porque é uma palavra vaga, sem precisão histórica nem filosófica nem filológica. E é muito mais porque por ela se designa quase sempre uma grande parte do que aprendemos a reconhecer como o que é específico, do ponto de vista cultural, do Extremo-Oriente. Uma comparação grosseira: um viajante de outro planeta (a comparação tem de ser essa, porque desde o século passado o Ocidente é onipresente em nosso mundo) poderia chegar a identificar como a base da ocidentalidade o pietismo cristão. Convencido disso, poderia, por exemplo, dizer que a poesia de um sujeito confessadamente ateu era cristã, porque nela reconheceria traços culturais que provêm do universo que identificou como cristão. Estaria errado? Não acho. Eu mesmo, ora meio ateu, ora meio vagamente budista, ora coisa nenhuma claramente identificável, sei que nunca deixarei de ser cultural e psicologicamente cristão...

domingo, 6 de abril de 2025

Haicai e zen

Li há pouco, na página do Haiku en español, um texto de Vicente Haya, intitulado “O haicai não é poesia zen”. Tendo a concordar com ele, quando diz que a atitude de buscar iluminação ou o incompreensível não é a mesma atitude, o mesmo modo de estar no mundo, do poeta de haicai, que busca sempre em primeiro lugar a concretude, o sensível – e a emoção ligada à percepção sensível. Mas discordo também da radicalidade dele, ao entender o zen como algo monolítico, que busca o satori como iluminação súbita. Na verdade, não entendo o zen. Apenas leio e penso...
Em certo ponto, ele refere um haicai de Bashô, como prova de que haicai não é zen. A passagem é esta:

Sin embargo, el propio Bashō -el haijin que se toma como prototipo de "poeta Zen"- en uno de sus haikus concede la beatitud precisamente al ser humano que "no comprende" (satoranu) ante una manifestación de la Naturaleza:

稲妻にさとらぬ人の貴さよ

inazuma ni satoranu hito no tōtosa yo

¡Qué santidad
la del hombre que ante un relámpago
no despierta a la realidad!

Por diversão, submeti o haicai ao ChatGPT e conversei um pouco com a máquina sobre ele. Vou transcrever a conversa toda. Vale a pena ver como a máquina interpreta o haicai, dentro do universo zen. Mais ou menos como se ele fosse uma declaração de adesão ao Soto Zen. Vale também a pena ver as traduções modernas que ela propõe. Uma delas poderia integrar a tradição leminskiana, eu creio.
Eis aqui:

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Claro! A frase japonesa 稲妻にさとらぬ人の貴さよ pode ser traduzida como:

"Quão nobre é a pessoa que não busca iluminação no relâmpago."

Ou, de forma um pouco mais interpretativa:

"A nobreza daquele que não se deixa iluminar por um relâmpago."

Essa é uma expressão poética e provavelmente faz parte de um haicai ou waka. Ela sugere que há valor ou dignidade em quem não busca uma compreensão súbita e chamativa (como o clarão de um relâmpago), mas talvez trilhe um caminho mais silencioso ou contemplativo.

Se quiser, posso ajudar a analisar o contexto poético ou filosófico também.

Claro! Vamos fazer uma análise mais profunda da frase 稲妻にさとらぬ人の貴さよ:

Tradução literal:
• 稲妻 (いなずま / inazuma): relâmpago
• に: partícula indicando direção ou causa
• さとらぬ (悟らぬ): forma negativa de 悟る (satoru), que significa "atingir a iluminação", "compreender profundamente", "despertar espiritual"
• 人 (ひと / hito): pessoa
• の: partícula possessiva ou de qualificação
• 貴さ (とうとさ / toutosa): nobreza, preciosidade, dignidade
• よ: partícula exclamativa, que adiciona ênfase emocional

Tradução poética sugerida:
“Quão nobre é a pessoa que não se ilumina com o relâmpago.”

Análise filosófico-poética:
1. Simbolismo do relâmpago (稲妻):
O relâmpago costuma simbolizar revelação súbita, uma iluminação repentina — como o satori no Zen, uma forma de despertar espiritual que pode vir de uma percepção abrupta. Algo momentâneo, poderoso, mas também fugaz.
2. A recusa da iluminação súbita:
A pessoa descrita não se ilumina pelo relâmpago — ou seja, não busca (ou não se deixa levar por) uma compreensão imediata, espetacular, repentina. Isso pode indicar alguém que prefere o caminho da paciência, da introspecção, do crescimento lento.
3. A nobreza dessa escolha (貴さ):
A frase destaca a "nobreza" ou "valor" dessa pessoa. Em vez de criticar, ela exalta aquele que não busca as respostas fáceis ou as revelações rápidas. O poeta parece valorizar quem não se apressa para entender o mundo em um clarão, mas que talvez escolha o caminho gradual, silencioso e constante do autoconhecimento.

Possível interpretação Zen:
Em algumas escolas do Zen, especialmente o Rinzai, o satori súbito é valorizado. Mas em outras tradições (como Soto Zen), a prática contínua é vista como mais importante do que qualquer momento de iluminação repentina. Essa frase parece dialogar com essa segunda abordagem: a sabedoria silenciosa, humilde, que floresce sem espetáculo.

Se você quiser, posso criar uma versão poética em português inspirada nessa ideia.

Com prazer! Aqui vai uma versão poética em português, inspirada no espírito e na cadência do original:

Quanta nobreza há
em quem não busca o clarão
para se entender.

Ou, numa versão mais livre e contemplativa:

Nobre é aquele
que não se apressa a despertar
com o brilho de um relâmpago.

Beleza! Aqui vão algumas versões mais modernas, mantendo a ideia original mas com um toque contemporâneo e direto:

1.Tem algo de bonito
em quem não precisa de um choque
pra se encontrar.

2.Nem todo mundo vê a luz no raio —
e tudo bem.
Tem força nisso também.

3.Admiro quem não corre
atrás de epifanias.
Só vive. E entende.

Curte esse estilo ou quer algo ainda mais urbano ou despojado? Posso ajustar fácil.

Fechou! Aqui vão algumas versões com uma pegada mais urbana, meio spoken word, com aquele clima de rua, cotidiano e introspecção sutil:

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1.
Respeito quem não brilha no raio.
Que aprende no escuro, no tempo, no trampo.

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2.
Nem todo mundo precisa de luz na cara.
Tem gente que acorda devagar,
no silêncio da quebrada.

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3.
Enquanto uns esperam trovão,
outros crescem quieto,
tipo semente no asfalto.

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4.
Tem quem não se liga no flash.
Prefere a brisa da noite,
descobrindo as coisas no passo.

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A conversa poderia continuar, pois a máquina pergunta se quer mais isto ou aquilo, neste ou naquele estilo. Mas já é suficiente...