Entre os muitos textos que fui postando no fórum que Edson Iura e eu criamos nos primórdios da internet, há alguns que me agradam ainda hoje.
Eles estavam escritos sem acentuação e sem cedilhas, com linhas meio aleatórias - enfiem: eram difíceis de ler.
Pedi à IA para os atualizar, e ela fez esse trabalho chatíssimo.
Aqui está um deles, animado por uma combatividade e um entusiasmo que leio com alguma simpatia.
HAICAI E ZEN
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Texto de julho de 1996
Há algumas semanas, o Edson postou aqui um comentário sobre o zen no haicai, ou melhor, sobre o zen na crítica e no entendimento ocidentais do haicai. Depois, o Gabriel postou um texto que parecia uma contestação, meio oblíqua, ao Edson. E o assunto morreu. Por fora da lista, sei que há pelo menos mais uma pessoa que tem algo a dizer sobre o assunto, mas que não tem achado tempo de o fazer.
Assim, resolvi pôr a minha opinião para girar, enquanto outros não se pronunciam.
Pois bem. Acho que eu concordo e não concordo com o Edson. Concordo com ele e com o autor que citou no que diz respeito ao exagero zenista que assola o haicai fora do Japão. Tudo é zen, e fala-se indistintamente de haicai e de zen, ou de ikebana e zen, porque o que importa é esse indefinível e inatingível zen. Vi uma vez, em São Paulo, um conferencista que, depois de dizer que o zen é a base indefinível, passou a defini-lo nos termos mais bizarros: um mosquito é o zen, um beijo é o zen, o nada é o zen, isto aqui é o zen, a chuva, o sol, a poesia, o sexo, o amor, etc. Sei que alguns estão pensando que o homem era um iluminado e eu um boboca que não pude entender que o meu próprio umbigo também era o zen. Mas a minha reação foi de pasmo e depois um incontrolável ataque de riso que fez com que tivesse de sair, chorando e com dor de estômago, para gargalhar do lado de fora. E onde pensam vocês que se deu tal conferência? Num Encontro de Haicai, no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo. Era tudo por conta do haicai...
Quero dizer: já ouvi tanta bobagem sobre o zen quanto qualquer outro, e também me irrita essa coisa de meter a palavra em tudo. Nesse sentido, zen é, para os ouvidos, um termo pior do que "dialética", quero dizer: usado ainda mais confusa, vaga e indiscriminadamente. E obviamente tenho de concordar que é possível fazer bons haicais sem nunca ter queimado as pestanas sobre um texto de divulgação do que seja o "zen".
Também, é claro, fiquei já irritado com a identificação simplista de zen com imediatismo espontaneísta, ou com o irracionalismo.
Nesse aspecto, achei perfeito quando um monge da Terra Pura me disse, com um sorriso bastante irônico, que os homens do zen dizem que o melhor é o silêncio e que o zen não se pode definir, ao mesmo tempo em que escrevem rios de livros para dizer o que é e como é o zen.
Por outro lado, é preciso ver também que a palavra zen significa, nas várias línguas do Ocidente, alguma coisa muito diferente, muito especial.
Para nós, essa palavra tem uma história cheia de beleza. De minha parte, quando penso no zen, no conceito de zen ocidental, penso com respeito, e com emoção.
Pouco me importa, nesse nível, o que seja o zen no Oriente. Isto é, aquele particular ramo do Budismo, com tais e tais sutras como base e tais e tais patriarcas. O nosso zen é outra coisa. É aquilo que D. T. Suzuki nos ensinou? É, sem dúvida: seu Zen and Japanese Culture sempre será um livro admirável. É também aquilo que nos ensinaram todos aqueles chatos religiosos, como o intragável Taisen Deshimaru, que fez tantos prosélitos? É, sem dúvida. Isso não se discute.
Entretanto, o que me comove de verdade não é nenhum desses textos, nenhum desses missionários que vieram do Oriente para nos fazer ver o verdadeiro zen. O que me comove é o zen que foi refabricado no Ocidente, a partir das nossas necessidades e do nosso esforço de conquistar uma alteridade que nos conviesse. Estou falando, agora, de gente como Allan Watts, R. H. Blyth, E. Herrigel e tantos outros. O zen que conta para nós é o de Herrigel. Seu relato do aprendizado da arte do arco e flecha é uma maravilha. É o de Watts, esse gênio brilhante que era também um tanto charlatão e um escritor de primeira linha. Seus textos sobre o zen, bem como a sua biografia, ajudaram a moldar aquilo que depois chamamos de orientalização da contracultura. E é o de Blyth, que nos abriu os olhos para uma coisa que ele chamou de zen, mas que poderia ter chamado de qualquer outra coisa, pois a reconhecia tanto em Wordsworth quanto em Bashô; em Issa e em Shakespeare. Sua interpretação de haicais é às vezes desfocada? É, ao que dizem. Mas isso não tem importância real: em regra, seu comentário ilumina o verso que comenta e ilumina muito mais que ele: mostra a atitude que está na sua origem, defende um jeito de estar no mundo e de fazer e ler a poesia em geral.
Blyth, Watts e Herrigel chamaram de zen aquilo que encontraram ou julgaram encontrar no Oriente e que quiseram trazer para o nosso mundo. Eram educadores, reformadores. Nesse caso, a verdade do que foi o seu zen é garantida pela sua obra, pelo destino que tiveram os seus livros. Depois deles, o zen passou a fazer parte da nossa cultura, é o "nosso zen".
Aos eruditos acadêmicos, esses homens causam um esgar de desprezo. Mas quem aguenta os scholars budistas? Quem quiser tentar, assine a lista Buddha-L ou a Buddhism: ambas são de uma chatice, um pedantismo e um profissionalismo de matar. Fala-se ali de Budismo como se se falasse do cálculo de resistência de materiais. Isto é, academicamente, embalsamadamente. Para eles, é vital saber qual era o termo exato que compareceu na terceira tradução para o chinês de um dado texto sânscrito. E isso é realmente louvável, enquanto método e ciência acadêmica. Mas o que aqueles senhores têm a dizer sobre o Budismo ou sobre o zen é muito pouco e quase sempre de uma perspectiva que faz com que o seu assunto não interesse a quase mais ninguém... O zen que se mexe e que leva as pessoas a mudarem formas de ver ou de se comportar, por menores que possam ser essas mudanças, é o zen de Watts, de Blyth e de Herrigel. É o que vem revestido daquilo que talvez nem seja muito zen: a paixão.
Desse ponto de vista, portanto, discordo do tom que vem no texto transcrito pelo Edson. O haicai, para muitos, é um exercício de "zen". Desse zen ocidental, meio tingido de beatnik, meio lavado de exotismo, certamente contestador, libertador, cheirando a anos 50. Que seja! Desde que se faça boa poesia.
Por outro lado, é verdade que a maior parte dos japoneses que pratica o haiku está pouco preocupada com o zen. No Brasil, então, talvez não haja um mais que um ou dois isseis ou nisseis que façam haiku e se confessem adeptos do zen.
Compreende-se, então, o espanto com que recebem a nossa pergunta fatal sobre o zen... Compreende-se mesmo que possam revoltar-se com a insistência na ignorância.
Mas o que normalmente um ocidental quer dizer, quando fala em zen e não é apenas mais uma vítima das modas culturais, é muito menos e muito mais do que um japonês ou chinês usualmente entende pela palavra. É muito menos porque é uma palavra vaga, sem precisão histórica nem filosófica nem filológica. E é muito mais porque por ela se designa quase sempre uma grande parte do que aprendemos a reconhecer como o que é específico, do ponto de vista cultural, do Extremo-Oriente. Uma comparação grosseira: um viajante de outro planeta (a comparação tem de ser essa, porque desde o século passado o Ocidente é onipresente em nosso mundo) poderia chegar a identificar como a base da ocidentalidade o pietismo cristão. Convencido disso, poderia, por exemplo, dizer que a poesia de um sujeito confessadamente ateu era cristã, porque nela reconheceria traços culturais que provêm do universo que identificou como cristão. Estaria errado? Não acho. Eu mesmo, ora meio ateu, ora meio vagamente budista, ora coisa nenhuma claramente identificável, sei que nunca deixarei de ser cultural e psicologicamente cristão...