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quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

haicai haikai haiku

 Acabo de ler na página Kakinet, do Facebook, um belo estudo de Edson Iura sobre os nomes “haicai”, “haikai” e “haiku”.

Nele, Edson expõe o motivo da singularidade brasileira de adotar haicai como nome geral para o poema de dezessete sons, tal como definido por Shiki no século XIX.

Corretamente, explica que isso provém do fato de que o nome nos chegou por via francesa, numa época em que a forma era lá denominada, como no livro de Couchoud, *Haïkaï”.

No mundo todo, a forma acabou por ser denominada *haiku*, que – como ele também nota – não é eufônica em português. E eu penso que é principalmente por isso que não nos convertemos à palavra moderna.

Entretanto, vale um registro curioso. O de que a primeira definição em língua ocidental desse particular modo de proceder à arte da poesia encadeada (o haikai-renga) foi escrita em português.

Ou seja, a palavra haikai é muito antiga em nossa língua. Ou melhor a transliteração de haikai, cujo h aspirado o padre optou por representar com a letra F:

E foi assim: em 1604, antes portanto, da expulsão dos jesuítas e do fechamento do Japão ao resto do mundo, na Era Tokugawa, o padre João Rodrigues publicou a sua gramática denominada “Arte da língua do Japão”, na qual encontramos esta definição muito precisa:

"Ha hua sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai, de estillo mais baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & este modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu, & continuar com cinco sete cinco."

Quem tiver interesse no assunto pode encontrar uma edição moderna desse livro pioneiro:

João Rodrigues, Arte da lingoa de Iapam. Nagasaqui, Collegio de Iapam da Companhia de Iesu, 1604 – reprodução fac-símile: Tóquio, Hakubunsha, 1969.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Poesia da natureza – a aclimatação do haiku tradicional no Brasil

          

            O haicai é uma das formas mais populares de poesia no Brasil hoje. A partir de um núcleo formado por imigrantes e descendentes diretos de imigrantes, localizado em São Paulo, muitos outros foram se constituindo. Seguindo a denominação da célula-mater, o Grêmio Haicai Ipê, denominam-se também grêmios. 

           Nasceram esses grêmios principalmente da ação, por assim dizer, evangelizadora, desenvolvida por Teruko Oda, que deu oficinas pelo país afora e estimulou a continuidade do trabalho de seus alunos mediante a formação dessas agremiações.

            Teruko Oda é uma excelente poeta. Quem quiser conhecer a sua produção pode ver uma amostra muito significativa num livro publicado pela editora Escrituras, intitulado Furusato-no-Uta/Canção da terra natal. Trata-se de um texto misto de poesia e prosa, nos moldes dos diários poéticos japoneses, que faz retornar o haicai a uma de suas origens, a obra de Matsuo Bashô.

            Teruko é nissei e tem, com o haicai, uma ligação pessoal importante: é sobrinha e discípula de Goga Masuda (1911-2008-), que foi um dos idealizadores e principais orientadores do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 1987.

            Masuda, por sua vez, foi discípulo de Nenpuku Sato (1898-1979).

            E aqui vale uma nota histórica e genealógica.

            No Japão, a partir da restauração Meiji, a influência ocidental se espalhou de forma avassaladora na literatura e nas artes em geral. 

            Para fazer frente ao que consideravam uma ameaça à nacionalidade e uma perda da identidade cultural, alguns escritores e artistas se empenharam na preservação das artes japonesas tradicionais. 

            Um deles foi Masaoka Shiki (1867-1902), poeta que se dedicou a promover a prática de um tipo de poesia até então denominada hokku, ou haikai-hokku. Por esse termo se designava uma composição de dezessete sons, de caráter objetivo, estruturada por justaposição de elementos e centrada numa palavra que faz referência unívoca a um determinado momento no suceder das estações do ano. Esse pequeno poema normalmente era parte de uma composição maior, coletiva, ou vinha acompanhado de um desenho.

O grupo reunido à volta de Shiki, sua escola, terminou por ser referido pelo nome da revista em que divulgava a sua produção, Hototogisu (nome japonês do pássaro cuco). 

Fundada em 1897, a Hototogisu existe até hoje e foi responsável pelo renascimento do haicai japonês em novas bases. 

Por iniciativa do mestre, a forma poética passou a ser denominada “haiku” – nome que ele criou pela contração de haikai-hokku – reforçando assim uma das bases da sua ação: afirmar o terceto como obra independente da prosa ou do desenho com que tradicionalmente fazia conjunto, ou seja, afirmá-lo como forma poética esteticamente autônoma, capaz de concorrer com as recentes formas importadas do Ocidente.

Um dos expoentes da Hototogisu foi Takahama Kyoshi (1874-1959), que sucedeu Shiki na liderança do grupo, aumentando o número de seguidores.

E aqui reatamos o fio da nossa história, pois foi através de um dos discípulos de Kyoshi, Mizuho Nakata (1893-1975), que Nenpuku Sato se iniciou no haicai da Hototogisu.

Em 1927, Nenpuku tomou um navio para o Brasil. Tinha 29 anos de idade e já era bem conceituado na arte do haiku. Vinha tentar a sorte na agricultura, no interior de São Paulo e ao partir ouviu de seu mestre: "Vá e semeie o haiku na nova terra".

Nenpuku empenhou-se a vida toda nessa missão. Divulgou o haicai por quatro estados brasileiros e ao longo dos anos granjeou cerca de 6000 discípulos que, como ele, escreveram no idioma japonês. 

Essa produção, que foi ampla, pujante e de grande relevância para a colônia, infelizmente é até hoje desconhecida dos brasileiros que não dominam o idioma japonês. Também é quase desconhecida dos japoneses e seus descendentes no Brasil, pois não foi  estudada sistematicamente na universidade, nem recolhida em volume, restando dispersa em jornais e arquivos particulares. 

Ainda na década de 1970, muitos seguidores de Nenpuku Sato eram vivos e no aniversário de 20 anos da sua morte e 40 do falecimento de Takahama Kyoshi, 100 dos remanescentes se reuniram no bairro da Liberdade para uma sessão de composição de haicais. 

O principal problema enfrentado por Nenpuku Sato e seu grupo, na aclimatação do haiku ao Brasil, foi como vincular a observação pontual objetiva, que caracteriza o haiku, a um determinado momento na sucessão das estações do ano. 

Diferentemente do Japão, onde as atividades humanas e os fenômenos meteorológicos estavam codificados e sedimentados pela prática poética secular e eram, portanto, de alcance geral para todas as regiões do pequeno arquipélago, aqui a extensão do país gerava experiências muito diversas. 

O haiku brasileiro (designemos assim o poema composto em japonês, nos moldes da Hototogisu) teve como primeira tarefa de aclimatação a necessidade de escolher e fixar termos relacionados à sazonalidade brasileira e à cultura do país: os kigos (palavras de estação). 

Sendo uma arte que tinha no registro objetivo uma das pedras de toque, não fazia sentido utilizar os kigos japoneses. Era preciso não só descobrir os kigos brasileiros, mas ainda fixá-los nas bases métricas tradicionais, o que trazia uma dificuldade a mais, pois era preciso encontrar uma forma convincente e conveniente de grafar, em japonês, as palavras brasileiras ou latinas que designavam elementos botânicos e meteorológicos, bem como os feriados religiosos e as datas nacionais. Mesmo objetos de uso comum precisavam de transliteração, como, por exemplo, o lampião, que vi referido num haiku como “aradin” – ou seja, Aladdin, que era a marca mais conhecida.

Nenpuku enfrentou com muito sucesso essas dificuldades, mas lhe faltou um último passo para semear o haiku no Brasil: escrever em português. Com o envelhecimento da população imigrante e o desinteresse dos jovens nas práticas tradicionais, essa seria a única maneira efetiva de radicar o poema japonês na sua nova terra.

Essa missão vai ser assumida por Masuda Goga, que juntamente com Teruko Oda trabalhou em duas frentes: na criação de um agrupamento poético dedicado à prática do haiku em português e na elaboração de um catálogo de “kigos” brasileiros. 

Aqui cabe uma nota terminológica: se é conveniente e correto utilizar o nome haiku para designar o poema composto em japonês no Brasil, segundo os ditames de Shiki, é também conveniente e correto utilizar o nome haicai para nomear as várias formas de apropriação do haiku no Brasil, a começar por Guilherme de Almeida e incluindo todas as demais formas, inclusive a tradicional, representada pelo grupo de Masuda Goga.

Retomando agora a nossa história, vejamos em que consistiu o trabalho de Goga.

O primeiro ponto a considerar é que a criação de um agrupamento – no caso do Grêmio Haicai Ipê – é essencial para restaurar um aspecto do haicai tradicional: a sua composição sob a supervisão de um mestre, um orientador. Os grêmios funcionaram e funcionam aqui nos moldes japoneses: estabelece-se um tema (no caso, um kigo); os integrantes escrevem; os haicais são lidos sem indicação de autoria e os membros vão escolhendo os que mais lhes agradam; escolhidos os mais interessantes, o mestre ou orientador os comenta, valorizando os aspectos que julgar adequados, e apontando soluções outras para eventuais problemas.

Para que a prática seja uniforme e conforme à tradição, estabelecem-se critérios formais. No caso, à duração das sílabas japonesas substituiu-se a sílaba poética contada à nossa maneira, e aos cortes da forma justapositiva original se fez equivaler o verso, espacialmente definido – do que resulta um terceto imparissilábico de 5-7-5 sílabas poéticas contadas até a última tônica de cada verso. E torna-se obrigatório que o tema (o kigo) indicado para a composição compareça explicitamente no terceto.

Daí a importância de haver uma listagem de kigos e – como não é nossa tradição associar sistematicamente estados de espírito a fenômenos sazonais – a necessidade de definir não só a sua ocorrência e enquadramento sazonal, mas ainda o “clima”, o “mood” associado a cada um.

Nesse ponto, creio que vale a pena esclarecer a importância do kigo para o haicai tradicional. 

O kigo – a palavra de estação  - tem duas funções principais: uma função “temática” e uma função “técnica”. 

Tematicamente, o kigo vincula o poema a um momento preciso na sucessão das estações, por meio do registro objetivo. Nesse sentido, o haicai é poesia da natureza. 

Tecnicamente, o kigo responde pela eficácia do breve poema, pois permite conotar um estado de espírito de modo muito econômico. Por exemplo, “flores” é um kigo em japonês, porque em poesia designa uma flor específica, a de cerejeira, que representa o esplendor da primavera. Sua simples menção evoca a contemplação da florada em atividades diurnas e noturnas e conota a ideia de transitoriedade, porque a observação da florada de cerejeira é também a observação do seu despetalar. Da mesma forma, a palavra “lua”, sem qualificativos, refere a lua cheia de outono. O campo seco, as primeiras chuvas de primavera, o capim alto, as primeiras neves – cada uma dessas locuções conota um preciso momento sazonal e um determinado estado de espírito, materializado em práticas culturais específicas.

            Assim, o poeta de haicai, com uma pincelada, estabelece o mood de base tradicional, que nas duas pinceladas restantes tratará de acentuar, modalizar ou mesmo contradizer.

            A importação dessa técnica, já se vê, não tem sido tarefa simples nem fácil. Não só porque a nossa tradição poética não enfatiza tanto a notação dos fenômenos naturais, mas também porque não temos associações imediatas com eventos sazonais, a não ser alguns poucos, derivados principalmente das festas e feriados religiosos.

            No Brasil, o kigo é ainda dificultado pela enorme variação longitudinal e latitudinal. O inverno, por exemplo, é uma coisa para o habitante das serras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e outra para o habitante da Amazônia ou dos cerrados do Centro Oeste. O regime dos ventos varia igualmente, assim como o das águas da chuva e o das tempestades.

            Um problema enfrentado por um praticante do haicai tradicional é, portanto, a falta de conhecimento dos fenômenos sazonais de uma região por habitantes de outras. A dificuldade mais relevante, porém, é o fato de não estarmos acostumados a conhecer e usar muitos nomes de plantas e animais. Diferentemente da cultura japonesa, que se esforça para nomear e descrever cada flor, árvore ou arbusto – por menos importantes que sejam –, para o brasileiro médio o que não é flor é mato. E soam tão estranhas num poema as designações regionais de plantas e animais, quanto seus nomes científicos. Por exemplo, neoglazióvia, espatódea, muirapitanga ou mesmo sibipiruna. 

Além disso, não associamos nenhum estado de espírito a nomes comuns de plantas ornamentais, como ciclâmen, antúrio, samambaia, avenca ou crisântemo. O mesmo sucede no reino animal. Além dos domésticos, poucos são conhecidos e observados em base cotidiana. Por isso, os bichos, quando não são apenas bichos, parecem conformar-se em poucas categorias e entre os citadinos a desorientação é geral. Por exemplo, Paulo Leminski e Carlos Verçosa confundem (talvez por amor ao som e à paronomásia) a rã com o sapo. Para um japonês é claro que quem pula na água ao menor ruído é a rã, e que o sapo é um animal terrestre, em poucas ocasiões retornando à água de onde veio. E mesmo os fenômenos migratórios, tão importantes para a poesia do hemisfério norte ocidental e oriental, têm para nós – salvo algumas exceções – pouca ressonância literária.

Conscientes disso tudo, Teruko e Goga se dedicaram por anos a coletar e exercitar em haicais os kigos brasileiros de todas as regiões do país. Desse trabalho nasceu a primeira (e única) kigologia brasileira, publicada em volume quase dez anos após a formação do Grêmio Haicai Ipê, em 1996: Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

Composto de três partes, o livro traz primeiramente um estudo e uma catalogação dos kigos brasileiros, ou seja, inúmeras palavras relativas às especificidades de cada estação em todas as regiões do país: animais, festas populares e religiosas, flores e vegetais vários, comidas sazonais, fenômenos climáticos. 

A especificidade desse livro brasileiro em relação aos catálogos japoneses, é que lá os catálogos são sistematizações de algo que se definiu na prática, ao longo de séculos. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. 

Daí que a segunda parte da kigologia brasileira seja uma antologia, na qual vários desses kigos talvez compareçam utilizados pela primeira vez, em haicais escritos pela organizadora, com o fim expresso e exclusivo de exemplificar o texto descritivo. 

Aqui, portanto, evidencia-se a grande dificuldade dessa empresa e desse livro: uma enorme porcentagem das expressões alinhadas como kigo não se sedimentou a partir da prática poética – como no Japão –, mas nasceu de um esforço racional de identificação ou mesmo de criação dos kigos regionais e nacionais. Por conta disso, muitas dessas expressões correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e o lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô.

É possível que a prática dos grêmios espalhados pelo Brasil, orientada pelo catálogo dos kigos brasílicos, termine por incorporar à linguagem poética comum os muitos termos sazonais que por ora parecem exóticos ou pouco coloquiais. Mas também é possível que, pelo contrário, se crie uma espécie de dialeto, que faça sentido apenas para o grupo dos praticantes.

A trajetória do haicai brasileiro tradicional ainda é muito breve e está, por assim dizer, em sua terceira geração. É difícil fazer uma previsão de qual será o seu futuro. Entretanto, uma coisa já é certa e constitui conquista singular: os muitos grupos de haicai espalhados pelo país e a divulgação do haicai tradicional por meio das mídias sociais já produziram e produzem um amplo, verdadeiro e literal (por conta das reuniões, concursos e eventos presenciais de âmbito estadual e nacional)  movimento poético. 

Se desse grande conjunto de agremiações e poetas não resultar uma produção poética significativa no quadro geral da literatura contemporânea brasileira, em termos qualitativos, ao menos já se construiu aqui uma animada forma de produção e sociabilidade poética, à volta do que podemos denominar “poesia do kigo”. 

Essa foi a principal conquista até agora na aclimatação do haicai à língua portuguesa no Brasil: mantê-lo, tal como no Japão, como prática social coletiva de observação e registro dos ciclos sazonais. Resta agora aguardar para ver que frutos produzirá esse notável e consistente esforço de construção de uma nova “poesia da natureza” brasileira.




[Texto lido no congresso Nature and narrative. Approaches to a Brazilian landscape -  Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 13 de janeiro de 2025.]

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Recordando Goga



Arrumando os arquivos do computador, encontrei várias anotações sobre uma figura excepcional que tive o prazer de conhecer. Juntei alguma coisa, puxei pela memória e eis aqui:
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Conheci H. Masuda Goga logo depois do lançamento de “Haikai: antologia e história”. Foi assim: a Editora da Unicamp, que o publicara, participava da Bienal do Livro. No estande, fui procurado por um simpático senhor, que se apresentou: Douglas Eden Brotto. Falou-me então de um grupo que se dedicava à prática do haicai em São Paulo, na Aliança Cultural Brasil-Japão, e convidou-me para ir conhecê-lo. Creio que ele estava com mais alguém, mas não me recordo. Recordo-me, sim, que fui, no próximo sábado em que houve reunião. E foi lá que conheci Goga.
Goga praticara o haicai sob orientação de Sato Nenpuku, que liderava um amplo movimento de composição do haicai em japonês entre os imigrantes. Ao longo dos anos em que se dedicou a promover o haicai, Nenpuku teve cerca de 6000 mil discípulos. Mas nunca escreveu em português.
A produção de Nenpuku terminou por ser conhecida em nossa língua, traduzida, mas a enorme quantidade de haicais escrita em japonês, tendo como tema a natureza e a vida quotidiana no Brasil, parece esperar em vão por um trabalho sério e sistemático, que a reúna, estude e traduza, permitindo assim a sua divulgação mais ampla no país, bem como o conhecimento da língua dos imigrantes e alguns aspectos da sua adaptação ao clima, à flora e à fauna do Brasil.
Goga levou adiante o trabalho de Nenpuku, praticando o haicai na sua língua natal, mas dando um passo decisivo. Como foi amigo de Guilherme de Almeida e de Jorge Fonseca Júnior, empenhou-se na transposição do haicai tradicional para o português.
A tarefa não era fácil. O haicai não é somente uma forma fixa. Não é uma espécie de microssoneto, não é uma estrutura na qual se pode vazar qualquer conteúdo.
É certo que o “haicai” tem uma forma que, na vertente que é a de Goga, tradicionalista, exige um grande domínio da técnica e da língua literária. Mas antes de ser uma forma ou o produto de uma técnica, o haicai é um jeito de estar no mundo, uma maneira de olhar para as coisas. Um jeito de estar na linguagem, no sentido de que o estado de haicai pressupõe a contemplação, a experiência e a composição por impulso, segundo a impressão do momento. Mais ou menos como sair com uma câmera para fazer fotos pressupõe um jeito diferente de olhar para as coisas e de se acercar delas.
O primeiro problema que se apresentava, em meados do século XX, era compreender por que caminhos e com que sentidos o haicai tinha chegado ao Brasil. Não havia ainda nenhum trabalho sistemático sobre isso, nem em português, nem em japonês. Goga dedicou-se a recompor essa história, dando finalmente a público, em 1987, o volume O haicai no Brasil, publicado também em língua japonesa.
Nesse mesmo ano, junto com outros interessados, principalmente nisseis, fundou a primeira associação dedicada à prática de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, e logo depois, em 1993, o Grêmio Haicai Caleidoscópio, dedicado à produção de rengas (haicais encadeados) em língua portuguesa.
Foram anos de dedicação à tarefa. Goga, nascido em 1911, emigrou para o Brasil em 1929. Seu trabalho com o haicai em português se estende de 1936 até 1987, quando dá por encerrada a primeira parte do trabalho, com a publicação do livro e a fundação do Grêmio.
Ainda havia, entretanto, muito que trabalhar, para construir o haicai brasileiro em moldes japoneses. O próximo desafio era fazer a sistematização dos índices de estação no Brasil.
No Japão, a longa prática consolidou relações unívocas entre alguns fenômenos, animais, plantas e atos humanos, por um lado, e os vários momentos do ciclo das estações, por outro. A simples menção a um pássaro, por exemplo, já convoca para o poema associações que configuram não só uma estação específica, mas também um estado de espírito tradicionalmente associado a ela. A alma do haicai tradicional repousa nessas relações unívocas, pois elas fornecem a base para o desenvolvimento particular de cada poema, por meio da glosa do estado de espírito conotado, da sua contradição, da anotação de uma variante ou, em casos mais radicais, da sua negação pela ironia ou pela piada. No Japão, a codificação dessas relações é tão importante e clara que se organizam dicionários de “kigos”, isto é, palavras que remetem a um momento determinado na sucessão das estações.
No Brasil, país de vários climas e de estações menos definidas, o “kigo” sempre foi um problema. Sua sistematização, do ponto de vista do haicai tradicional, era urgente.
Com ajuda da haicaísta Teruko Oda, sua sobrinha, foi esse o próximo passo de Goga na construção do caminho do haicai brasileiro. Após muitos anos de trabalho, ambos publicaram finalmente o volume “Natureza – Berço do Haicai” (1996), o primeiro dicionário de “kigos” brasileiros.
Por conta desse trabalho, Masuda Goga recebeu, em 2004, do Japão, o “Masaoka Shiki International Haiku Grand Prize”, que é concedido a pessoas que tiveram grande destaque na difusão internacional do haicai.
Em 2008, ano em que se comemoravam os cem anos da imigração japonesa, esse homem que dedicou boa parte da vida a promover a imigração da forma do haicai tradicional nos deixou, no dia 28 de maio. Tinha 96 anos de idade.
Sua passagem foi consentânea com os ideais da poesia que praticou.
Naquele ano, ia ser lançado, pelos seus admiradores, um concurso de haicai com o seu nome, e seria realizada uma exposição de fotografias em sua homenagem. Ia também ser lançado o meu livro “Oeste/Nishi”, que Goga generosamente tinha traduzido para o japonês, completando assim um círculo: o haicai tradicional, praticado pela colônia sob a orientação de Nenpuku, aclimatado à língua portuguesa por Goga, voltava agora à língua japonesa pelas suas mãos. É certo que eu não pertencia ao Grêmio Ipê, mas também é certo que sempre tive por ele a maior simpatia. De modo que nesse sentido se pode dizer que o círculo se fechava.
Pois bem, foi quando viajava, em companhia do filho e da nora para São Paulo, vindo do interior de Minas Gerais, onde vivia seus últimos anos, que Masuda faleceu. Trazia, como sempre, a sua caderneta, onde escrevia tantos haicais. Em certo momento, olhando a paisagem, sentiu-se cansado. Disse à nora que descansaria um pouco no ombro dela. Recostou-se e adormeceu calmamente para sempre.
Na abertura dos eventos comemorativos, que incluíam o lançamento do livro, um seu retrato o representou: sorridente e feliz, como sempre o vimos e dele me lembro agora.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Haquira e o haikai

 Quando comecei a estudar o haicai, Haquira Osakabe me disse: tem de lembrar que haicai é atividade, é sociabilidade. Ele tinha um jeito oracular de se expressar. Não concatenava as ideias com clareza lógica. Ao menos, não como eu gostaria que fizesse. Em vez disso, comunicava pelo olhar, pelo meio sorriso, pelo gesto. Tinha uma forma estranha de se expressar corporalmente. Uma vez, perante uma fala enrolada e perigosa, ele mesmo se enrolou defensivamente de um modo que não compreendi à primeira vista, pois parecia que suas longas pernas, enroscadas uma na outra, eram de material plástico e não de carne e osso. Ainda o vejo assim, e com a mão tampando metade da boca, como a impedir-se de falar. Pois aquela advertência foi assim enigmática e a frase acima é o apenas a minha tradução. Hoje me lembrei dela. Estou terminando um breve texto para um congresso. Intitulei-o “Poesia da natureza – a aclimatação do haiku no Brasil”. Faz tempo que não participo de congressos, mas uma razão afetiva me moveu a responder positivamente à organizadora, que foi tão solidária com os últimos eventos da minha vida. Talvez por isso, por esse texto ser uma resposta afetiva, lembrei-me do Haquira. Mas não só: ao longo dele ressalto como florescência nova desse transplante justamente a sociabilidade dos grêmios e dos agrupamentos virtuais dedicados ao haicai. E porque o nosso haicai tradicional é uma aclimatação em linha reta do haiku de Shiki, usei o termo japonês no título. De fato, Shiki > Kyoshi > (Mizuho Nakata) > Nenpuku > Goga > Teruko Oda > “grêmios” = haiku > haicai tradicional brasileiro. E dinamizando isso tudo, a sociabilidade, o caráter coletivo, a valorização da poesia como atividade, mais do que como produto – como queria me dizer Haquira, no começo dos já longínquos anos de 1980.

domingo, 10 de novembro de 2024

Haicai no Brasil*

 

“apenasmente discípulo fiel de Bashô”, Goga (1)

 


No canto número 12 da Odisseia, vemos Ulisses ter de tomar uma dura decisão. Ele precisa passar pelo estreito de Messina, que divide a Sicília da Península Italiana. Circe, a feiticeira que se apaixonou por ele, explica a situação. De um lado do estreito vive o monstro Cila. A história de Cila não vem ao caso aqui. Basta saber que ela foi uma bela ninfa, transformada em monstro por uma feiticeira furiosa. O que realmente importa é que Cila atacava os navios, devorando os marinheiros, quando eles passavam muito perto do rochedo onde ela vivia. Mas por que algum navio passaria junto a ela, se o perigo era tão grande? Porque do outro lado do estreito estava um monstro ainda pior: Caríbdis, que de tanto em tanto sugava para uma gruta profunda as águas do mar, para depois cuspi-las. Com isso destruía por completo as embarcações.

Ulisses foi aconselhado por Circe a evitar Caríbdis e ceder parte da tripulação a Cila, o que ele fez, perdendo 6 homens, devorados pelas 6 cabeças do monstro. Desde a Odisseia, “andar entre Cila e Caríbdis” é uma metáfora para os perigos de uma travessia na qual haverá necessariamente perdas e/ou desastres. 

Eu poderia ter escolhido uma fábula japonesa de mesmo sentido, se conhecesse uma. Como não conheço, vali-me da nossa própria tradição para falar de algo que me parece importante numa outra travessia: a do haicai japonês para o Brasil, passando pelo estreito do idioma, entre o rochedo da forma fixa e o sorvedouro do exotismo superficial.

Mas antes de prosseguir, gostaria de dizer o que me parece de fato importante nessa navegação, nessa odisseia do haicai, que saiu do Japão quando terminou o isolacionismo da era Tokugawa e veio até a grande floração dos grêmios espalhados pelo Brasil, passando pela orientalização da cultura pop na segunda metade do século passado.

As perguntas que sempre fiz a mim mesmo, desde quando tomei contato com o haicai japonês foram estas: O que há de novo no haicai? O que dele valeria a pena aproveitar e incorporar na nossa própria tradição? E daí a pergunta final: vale a pena fazer haicai em português ou em outra língua ocidental? Se valer, o que a experiência mostra? Quais os frutos?

Na aclimatação do haicai, a primeira questão que se apresentou foi a forma exterior do texto, a sua versificação. A convenção adotada foi que o haicai em português seria um terceto composto por um verso de cinco sílabas, um verso de sete sílabas e um último de cinco. Trata-se de uma convenção que não leva em conta que em japonês o haicai não é composto por 17 sílabas, mas por 17 moras, isto é, 17 unidades de tempo. Uma nasal, por exemplo, conta duas unidades. Em português, as unidades de medida são as sílabas, pronunciadas à maneira normal, com as contrações da oralização. E só se contam até a última sílaba forte, ou tônica. 

Para muitos, isso define o haicai: um terceto de 5-7-5 sílabas contadas à nossa maneira. Mas seria isso que ganharíamos com a importação e aclimatação do haicai? Um terceto sem rima nem títulos, com versos contados à maneira portuguesa e de extensão diversa? Não parece valer a pena...

Para um bom poeta como Guilherme de Almeida não valia. Tanto que ele criou dois procedimentos em todos os seus haicais: um esquema interessante de rimas obrigatórias (uma unindo os versos primeiro e terceiro, outra interna ao verso segundo) e um título.

Já para aqueles que se dedicam ao haicai de molde tradicional, o terceto continua sem rima nem título. Para a maior parte dos praticantes, o traço formal que o caracterizaria como haicai é a composição por justaposição ou por tópico-e-comentário. Usualmente, o primeiro ou o último verso constitui uma notação e os dois outros constituem uma frase só. Na maior parte dos casos, a contraposição é feita entre uma anotação genérica e uma que se refere a um dado momento ou sensação precisa. E o registro do momento preciso na sucessão das estações, por meio de uma palavra convencional, é outra determinação formal desse tipo de haicai.

Isso é o que temos, formalmente. Então eu pergunto, como sempre me perguntei: é só isso o que queremos importar, quando nos pomos a fazer haicai em português?

Não creio. Penso que há algo mais no haicai que nos chama a atenção e nos faz querer incorporá-lo.

Guilherme de Almeida apontou esse algo mais, quando definiu o haicai desta maneira: “o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite”. (2) E frisou um ponto importante ao particularizar: “anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite.”

Há aqui dois pontos a destacar. O primeiro é que o haicai é uma “anotação”. Guilherme de Almeida captou bem esse lado do haicai japonês: um registro, uma anotação, algo feito no momento. O segundo é que o que é anotado é um momento especial. Ele diz “de elite” como quem diz: um momento de melhor qualidade. E a questão da qualidade aparece logo ligada ao espiritual. Haicai é anotação de um momento especial, singular, e é anotação sincera, imediata.

Nisso, ele está de acordo com a mais importante atitude definida pela escola de Bashô, que é aquela que diz que quando se está embebido de haicai, o espírito seleciona da realidade externa aquilo que se casa com o momento, e a poesia flui. Se fosse na linguagem de T. S. Eliot, diríamos que o haicai é a composição que se faz pela anotação imediata dos correlatos objetivos.

Do meu ponto de vista, estamos agora já em plena travessia do Japão para o Brasil, pois já temos algo novo: anotação imediata de um momento espiritual, estrutura bipartida do poema composto por justaposição, e pertencimento a uma estação do ano (que Guilherme de Almeida muito corretamente vincula à sinceridade e imediatez da anotação)

Algumas décadas depois de Guilherme de Almeida, vimos a orientalização da cultura pop no mundo todo. Desde a Califórnia, o Budismo zen se espalhou pelo Ocidente. D. T. Suzuki e Alan Watts vincularam o haicai ao zen, no que foram precedidos pela figura maior na difusão do haicai no Ocidente. R. H. Blyth.

Blyth impregnou a contracultura americana e derivada. No icônico romance Vagabundos iluminados, de 1958, Jack Kerouac o menciona como leitura inspiradora. Entre nós, Paulo Leminski dizia que por mais de 10 anos o livro de Blyth tinha permanecido como seu livro de cabeceira.

Conhecendo profundamente o japonês, Blyth não se preocupou, nas traduções, com a métrica. Centrou sua atenção na atitude espiritual – que ele denominava Zen – e nos sentidos que derivavam da composição por justaposição.

No Brasil, depois de Guilherme de Almeida, dois poetas responderam pela divulgação do haicai. E tiveram o mérito de fazer do haicai um interesse geral. 

O primeiro foi Millôr Fernandes, que denominou haicai um terceto sem métrica, sem justaposição e sem palavra de estação. Seu haicai reside inteiramente na “sacada”, na anotação de um momento de elite, se nessa definição incluirmos a percepção humorística.

O segundo foi o já mencionado Paulo Leminski, que também praticou um haicai sem determinação formal, igualmente centrado na “sacada”, na esteira de Millôr. Mas nele a “sacada” não é mais anotação de momento de elite, como ainda é, em grande medida, para Millôr; mas anotação “esperta”, animada, que pode se sustentar apenas num trocadilho, num jogo de palavras, numa alusão política ou numa sonoridade interessante. Nos seus melhores haicais, entretanto, a “sacada” busca também um alcance existencial, almeja a algum tipo de iluminação.

Outras perspectivas também sopraram o barco do haicai entre nós. 

Uma delas foi a formalista, herdada da aproximação de Haroldo de Campos ao haicai. Para Haroldo, informado pelo trabalho de Fenollosa sobre o ideograma chinês, o haicai é basicamente ideogramático. Sua tradução busca trazer à superfície os sentidos insinuados ou entrevistos nos elementos que constituem os kanjis. Essa perspectiva me parece menos interessante, principalmente porque o uso de kanji ou hiragana na anotação do poema depende seja de quem anota o poema dito pelo poeta, seja da necessidade formal de composição do quadro em que o haicai surge, em diálogo com a imagem. Finalmente, em parte oriunda da mesma fonte, uma pressuposição que se tornou muito difundida. Se, para Pound, poesia é condensação, então o haicai seria o suprassumo da poesia, porque ele seria essencialmente síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo – e nisso os kanjis desempenhariam um papel central. Mais ou menos como uma fórmula física como E = MCsintetiza toda uma dedução longa.

De minha parte, como disse, não é a mais interessante, pois perde a diferença, perde aquilo que vem de fora do nosso universo referencial, a essência do exotismo como percepção dos nossos limites, como experiência radical de alteridade. 

Com Leminski, Watts, Suzuki e Blyth, eu acredito que se destaca algo que o haicai de Bashô pressupõe e nos ensina, como prática coletiva ou individual: que a poesia pode ser um caminho de desenvolvimento espiritual. Ora, para isso, como vemos nos livros da escola de Bashô, é preciso um intenso treinamento, seja da forma, seja da atitude. A forma pode ter interesse, mas é a atitude que me encanta mais: o apagamento do “eu”, a simplicidade, a disposição generosa frente ao mundo. Desse ponto de vista, haicai (para repetir uma fórmula criada há tempos) não é a arte de dizer o máximo com o mínimo, mas sim a arte de, com o mínimo, produzir o suficiente para a integração do leitor no texto e na experiência que o originou.

E aqui voltamos a Guilherme de Almeida: anotação sincera de um momento de elite. E voltamos ao começo desta apresentação, à metáfora com que abri estas reflexões. Porque de fato eu entendo que o haicai brasileiro navega ainda hoje, como navegou desde sempre, entre Cila e Caríbdis. 

O monstro mais perigoso, do meu ponto de vista, é a obsessão da forma fixa. Digo isso porque muitas vezes a obsessão do 5-7-5 termina por descuidar ou mesmo por matar uma parte importantíssima da tripulação do navio: em nome da métrica às vezes se sacrifica a naturalidade de expressão, com supressão de artigos e formação de frases que parecem produzidas por um falante de outra língua; sacrifica-se também frequentemente a anotação plena, porque a descrição pode exigir mais sílabas, ou mesmo, em direção contrária, a economia da linguagem, porque se a descrição ou o registro é breve o poeta não deveria se ver obrigado a preencher a medida. 

O mesmo perigo de formalismo, eu creio, se encontra quando se tem exagerada obsessão pelo kigo. No Brasil não temos tradição generalizada de palavras de estação, porque o país é muito vasto em latitude e também em longitude. Por exemplo: o que é inverno no Amazonas e o que é inverno em Santa Catarina? Como é o registro das chuvas e dos ventos no Pantanal, no interior de São Paulo, na região de Pelotas ou no Nordeste? E as festas populares? Sem a preparação adequada – trabalho ainda em curso, cujo primeiro passo foi dado por Goga e Teruko Oda – e sem vincular decididamente o kigo a um clima espiritual ou sensação bem definida, o haicai brasileiro poder perder mais esse tripulante tão importante (o seu piloto, por assim dizer), que é a imediaticidade da notação, pois ninguém anota espontaneamente um nome científico ou pouco conhecido de uma árvore ou flor, e é difícil fazer do centro do poema um fenômeno sazonal desconhecido da maior parte dos leitores. Mas se essa é Cila, devemos notar que mesmo com tripulantes a menos, o barco do haicai tem navegado muitas milhas, de norte a sul, pois todos os anos são publicados muitos volumes. A quantidade, entretanto, não nos deve esquecer do destino que queremos para esse barco, e até onde gostaríamos de chegar.

Do outro lado do estreito está Caríbdis, que identifiquei com o exotismo superficial. Ali reside, por exemplo, a arrogância de tantos iniciantes que se arvoram o direito de chamar de haicai o que nada tem a ver com o haicai japonês. “Haicai é o que eu chamo de haicai” – dirá essa Caríbdis, ansiosa por auferir os lucros do nome sem o ônus do esforço espiritual. Mas há também outra, que é a que reduz o haicai a pura “sacada”, a puro “lance zen”. Suas vítimas, aqui também, são a naturalidade da expressão, e principalmente a modéstia, a contenção que caracterizam o haicai da escola de Bashô. 

Mas chega de metáforas, de Cila e de Caríbdis. O barco do haicai não afundou no redemoinho, nem sua tripulação foi dizimada. Continuou a travessia desde o Japão para a língua portuguesa e a cultura do Brasil. Somos a prova, e somos a tripulação atual. Algumas partes de nós foram, em algum momento – e digo isso tomando a mim mesmo como exemplo –, ameaçadas por um daqueles monstros. Nossa espontaneidade e nosso treinamento espiritual foram às vezes ameaçados pela vaidade de ser “autor” ou pela vaidade de acreditar que só nós temos a chave para o cofre do haicai. Mas o esforço prevalece e nos reunimos em busca de apoio mútuo e ensinamento, em muitos grêmios, concursos e reuniões como esta.

Quanto a mim, o destino e a carga preciosa que o barco do haicai nos traz são claros. Seu destino é a nossa consciência, nossa forma de usar a linguagem, de estar no mundo e mesmo de estar na linguagem. Sua carga valiosa é o exercício da modéstia, a postulação da arte como caminho de vida, a radicação da poesia na experiência sensória e o ideal de produzir um poderoso efeito estético e emocional pelo agenciamento dos correlatos objetivos, pela seleção daquilo que o espírito, embebido de haicai, recorta da realidade exterior e faz confluir para a forma do verso.

Se eu fosse ousado o suficiente, comporia um haicai para encerrar esta fala com um elogio do registro objetivo do aqui-e-agora como razão suficiente para essa poesia que nos fascina. 

Como não sou, faço falar por mim um conhecido haicai de Issa:

 

 

Apenas estando aqui,

Estou aqui – 

E a neve cai.

 

 

 

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* texto lido na Bunkyo, no dia 09/11/2024 

Referências:


(1)   Goga. Frase final no documentário “Goga, discípulo fiel de Bashô”

Disponível em: https://www.kakinet.com/caqui/gogav.shtml#parte2


(2)    Guilherme de Almeida. “Haicai – poesia de estação”. Entrevista concedida a Genésio Pereira Filho em 29 de setembro de 1941.

Reproduzida em: https://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 1

 Pedi à Claude.ai que analisasse um haicai de que gosto bastante. O haicai diz:

Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Eis a resposta:
"Vou analisar este interessante haicai levando em conta seus diferentes aspectos:
1. Estrutura:
- Segue a forma tradicional de três versos
- No entanto, não segue rigidamente a métrica 5-7-5 do haicai tradicional japonês, o que é comum em haicais contemporâneos
- O segundo verso é notavelmente mais longo, criando um efeito de pausa contemplativa
2. Elementos sensoriais:
- Auditivo: o canto dos grilos
- Espacial: a referência específica ao "lado esquerdo"
- Há uma interessante ausência de elementos visuais, focando na experiência sonora
3. Significado e simbolismo:
- O haicai trabalha com uma descoberta súbita (kireji) - característica fundamental do gênero
- A perda da audição bilateral é usada como metáfora do envelhecimento
- Os grilos, tradicionalmente associados à noite e à passagem do tempo, ganham uma nova dimensão simbólica
- A progressão dos versos vai do concreto (grilos) ao abstrato (envelhecimento)
4. Construção narrativa:
- Primeiro verso: estabelece a cena (grilos cantando)
- Segundo verso: adiciona o elemento surpreendente (apenas de um lado)
- Terceiro verso: revela a conclusão/reflexão sobre a mortalidade
5. Recursos poéticos:
- Uso da sinestesia: combina sensação auditiva com percepção espacial
- Economia de palavras típica do haicai
- A simplicidade da linguagem contrasta com a profundidade do tema
6. Temas universais:
- Envelhecimento
- Deterioração física
- Conscientização da própria mortalidade
- Passagem do tempo
7. Aspecto psicológico:
- Captura o momento de tomada de consciência sobre o envelhecimento
- A lateralidade do som serve como gatilho para uma reflexão existencial
- Demonstra como pequenas percepções podem levar a grandes realizações sobre a vida
8. Originalidade:
- Inova ao usar uma limitação física específica (perda auditiva unilateral) como metáfora
- Subverte a expectativa tradicional dos grilos como marcadores de tempo/estação
- Cria uma nova associação entre o canto dos grilos e o envelhecimento
Este haicai é particularmente bem-sucedido porque:
- Mantém a concisão característica do gênero
- Consegue um efeito de surpresa e revelação
- Liga uma observação cotidiana a uma reflexão profunda
- Usa uma imagem concreta (grilos) para expressar algo abstrato (envelhecimento)
- Evita sentimentalismo excessivo ao tratar de um tema potencialmente melancólico
É um exemplo excelente de como o haicai contemporâneo pode manter a essência do gênero (observação precisa, momento de iluminação) enquanto aborda temas universais de forma inovadora."

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Direito ao uso


Postagens como a que fiz tendem a dar motivo para comentários agressivos. Autores que denominam os seus textos “haicai” ou “haikai” se sentem agredidos e revidam. O argumento se apoia na liberdade criativa: cada um faz o haicai do jeito que quiser. Eu nada tenho contra tercetos criativos. Ou dísticos criativos. Quadras, piadas, paródias. Pelo contrário! Meu ponto é o uso do nome. Por que alguém denomina “haicai” um poema breve qualquer? Eis a questão. Por que alguém denomina “poesia” um arranjo visual de formas geométricas? No melhor dos casos, porque busca expandir o sentido do nome, desautomatizar. Mas o que percebo no geral é uma reivindicação de um modo de leitura: leia-me como poesia, leia-me como haicai. O mais comum, porém, não é nem isso, é apenas manifestação da preguiça. Reivindica-se o direito ao uso do nome e ponto. Não se vê um esforço de compreensão, seja do poema japonês, seja da história do uso do nome no Ocidente. Há, por certo, um ponto a considerar: quem advoga o uso do nome para qualquer poema brevíssimo se contrapõe ao haicai reduzido a mero terceto de 5-7-5, animado por um propósito descritivo. Há, de fato, um mar de haicais nesse esquema – e, como em todo tipo de poesia, de literatura, na maior parte coisas sem grande interesse. Além disso, o haicai entendido como terceto promove de fato, como o soneto e a quadra, um exercício meramente formal, automatizado. Com a vantagem de parecer mais fácil, pois muito breve e sem rimas... Mas entre os que buscam ao menos a forma adaptada do 5-7-5 e os que usam o nome para designar algum fruto da preguiça prefiro os primeiros. Porque não haveria mal algum em denominar a própria produção apenas “poesia”. Por que chamar “haicai” a poemas brevíssimos, o mais das vezes escorados apenas num trocadilho, numa piada ou gracinha neoconcreta? Por que não, se a forma lembrar a do haicai, entender o produto como “tercetos criativos” ou o que seja. A reivindicação do nome é outra coisa. Principalmente quando se faz de forma agressiva, a pretexto de combater uma prática que se julga desinteressante, formalista ou castradora, e, na verdade, atropelando, desqualificando aquilo que a palavra denomina (seja como resultado, seja como atitude, seja como busca) na mais alta tradição, seja no país de origem, seja entre nós, no Ocidente.

Treinamento do espírito


Embora afastado da prática e do convívio, continuo recebendo livros físicos e digitais de haicai. Já ao haicai japonês retorno com frequência, como quem abre uma janela e deixa entrar o ar fresco num quarto abafado. Não gosto da ideia, repetida muitas vezes até por quem ignora a língua, de que só é possível fazer haicai em japonês. Como se só houvesse um haicai, um tipo de haicai, no Japão. E como se essa afirmativa se referisse a todos os aspectos do haicai. Só é possível, talvez, fazer haicai naquela forma, tal como se fazia em japonês: a forma clássica. Isto é, com os segmentos regulares definidos por número de -moras- e por palavras de corte. Mas isso é essencial? – poderíamos perguntar. É isso que nos inspira no haicai e nos desperta o desejo de recriá-lo em língua ocidental? Está claro que não. Porque – voltamos ao ponto – a maioria dos praticantes ocidentais não consegue escandir corretamente um haicai japonês, nem mesmo identificar nele as palavras de corte, que definem os segmentos; e porque seria sem sentido tentar compor por -moras- numa língua como o português. Não obstante, a esmagadora maioria dos praticantes se apega a uma tradução grosseira da forma. Traduzem a duração das -moras- por sílabas poéticas contadas à nossa maneira e o delicado equilíbrio dos segmentos por três versos. Junte-se a isso algum pendor descritivo e chegamos ao mínimo múltiplo comum do haicai no Brasil. Até aqui, porém, não temos nada exceto uma fôrma (faz falta o abolido acento diferencial). Do meu ponto de vista, nada de interessante, a não ser pela facilidade – o que responde pela grande cópia de livros de haicai que têm sido publicados. Mas é isso que queremos importar, quando falamos em escrever haicai em português? Se for isso, não vale a pena. Melhor desenvolver a quadrinha. Os mais versados na arte favorecem a divisão das frases em dois blocos: um ocupando dois versos e outro ocupando um verso. E aqui já se roça um elemento importante da forma: a composição por justaposição. Os que conhecem a tradição do haicai japonês acrescentam à justaposição a recusa das figuras de linguagem, evitando especialmente a metáfora e a atribuição de vida aos seres inanimados e de qualidades humanas aos elementos da natureza e aos animais. E ainda a fuga à palavra “eu” e à expressão direta dos sentimentos e emoções. Isso já vale a pena importar ou imitar, eu creio, porque é um bom exercício de negação das práticas usuais da poesia entre nós. Fazer poesia que funcione, dentro desses parâmetros, implica uma forma de olhar para as coisas e uma forma de escrever. É uma arte difícil, na qual a banalidade ronda todo o tempo e não raro triunfa.E chegamos ao que creio que interessa: tal como definido na escola de Bashô, um haicai “brota”. Ou ao menos o broto do haicai surge, podendo depois ser podado, ajustado ao desígnio original. Quando o espírito está livre da visão própria – é a lição – ele se funde com as coisas exteriores e esse movimento determina a forma dos versos, do poema. Aqui está o mais impressionante e o mais difícil, aquilo que, na minha opinião, vale a pena tentar incorporar, importar, imitar: o haicai como produto de um estado de espírito, um jeito de ser, uma forma de estar no mundo e de conceber a palavra e o momento da composição. O mais, ainda aquilo que não seja propriamente supérfluo, não me parece essencial.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O dilema do tradutor


Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:


Se eu a tomasse nas mãos

derreteria em lágrimas

Geada outonal


A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.


***


Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:


“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.


Nas mãos derreteria

Sob as lágrimas quentes –

Geada de outono.”


***


No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:


Se a tomasse nas mãos

Derreteria sob as lágrimas quentes:

Geada de outono.


 Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.

 

 E então, que dilema é esse? 

 É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.

 Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.

 O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A voz dos patos

 Lendo um diário de Bashô, deparo com um haikai bem conhecido entre nós, principalmente depois da tradução que dele fez Octavio Paz.

É este:


umi kurete

kamo no koe

honoka ni shiroshi


Valeria a pena, talvez, para os fixados na métrica, dizer que nesse haikai a forma usual não é respeitada, pois em vez de 5-7-5 moras (ou sílabas, para facilitar a referência), temos 5-5-7. E assegurar-lhes que não há como dividi-lo de outra forma. Mas o ponto interessante é que esses versos têm sido lidos entre nós como exemplo de sinestesia. Assim: o mar está escurecendo - a voz do(s) pato(s) é fracamente branca.

É uma leitura possível, mas não é a única.

Os defensores modernos argumentam que é da genialidade do poeta que deriva a sinestesia, que identificam como o ponto mais relevante do poema.

Já os comentadores mais sisudos e tradicionais não abdicam do caráter denotativo, objetivo, como um efeito preferível a esse.

No caso, a leitura seria: o mar está escurecendo – a voz do(s) pato(s) enfraquece na brancura. A brancura seria o aspecto pálido ou enevoado da cena, que é um frio entardecer.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Mais um pouco de haikai (2) - ideogramas, haiga etc

 Acabo de postar duas figuras. São dois haiga, isto é, haikais acompanhados de desenhos. Por conta de textos como o de Fenollosa, muitos de nós estamos acostumados a pensar que a caligrafia de alguma forma revela o lado pictórico do ideograma. Ou que, para dizer de uma forma familiar, ela revele os harmônicos, ou seja, os componentes ideogramáticos comuns que integram várias palavras.

Entretanto, a arte de caligrafar me parece muito mais sutil e complexa. Especialmente em haikai.
É que em japonês o calígrafo pode escolher entre a grafia "chinesa", isto é, "ideogramática" (kanji) e grafia silábica. E a escolha pode ser ditada ou por conveniência e equilíbrio da página, ou por alguma outra razão, como a seguir tento mostrar.
Ao mesmo tempo, o caráter "desmanchado" da grafia é uma arte. Não é o desenho, a consecução de cada traço que importa, mas o ritmo, o movimento que a gente faz com o pincel, a direção de cada um dos traços que constituem o kanji.
Além disso, o tamanho de cada letra, a força com que é traçada, a quantidade de tinta, tudo isso produz efeitos de sentido muito além da representação pictórica que nos acostumamos a imaginar na escrita japonesa.
Nas figuras que postei temos, num caso, um haiga de Bashô. É o que tem o desenho de flores.
Seu texto diz:
asagao ni ware wa meshi kû oto kana
junto aos bons-dias eu sou um homem que toma refeição – ah!
É um poema que se entende facilmente, pois alude ao lado errante e frugal da vida do poeta, que dorme ao relento ou sai para a caminhada muito cedo. O ponto mais sugestivo da caligrafia, em minha opinião, é a forma como o poeta grafou meshi (comida). Ele poderia ter escolhido um caractere chinês, um kanji, mas escolheu grafia silábica. Poderia ter escrito de modo "normal" a palavra, mas juntou as duas sílabas e as grafou desmanchando a segunda, que mal termina em gancho, como na forma impressa.
Já no outro, da libélula, de Kempû, diz assim:
tonbô ya mizu wo nabaeru yúgeshiki
a libélula inclina-se sobre a água – cena do anoitecer
Aqui, o interessante, do meu ponto de vista, é a grafia da palavra água, em kanji (ideograma). É a representação de três fios de água correndo, como aprendemos em Fenollosa. Mas neste caaso está desenhada de tal forma que, com pouco esforço, vê-se nela algo como o reflexo do inseto sobre a lâmina de água.