Nasci em Matão, simpática cidadezinha italiana no interior do estado. Lá me dediquei às duas atividades culturais disponíveis, que ocupavam o mesmo lugar: o xadrez e a leitura.
Trazendo assim esta marca de origem, como poderia deixar de atender a um conterrâneo que me pede opinião sobre suas incursões no estranho território do haicai?
Do primeiro comentário resultou que o conterrâneo abdicou da métrica, achando por bem privilegiar a impressão. E me enviou outro haicai.
Como achei que este último comentário pontual poderia ser de interesse de mais pessoas, consultei-o sobre se queria a resposta inbox ou por aqui. Era indiferente, mas ele também achava que podia ser melhor por aqui. Então segue.
pelo mato alto,
as gotas deslizam:
é tempo de chuvas
Meu caro Márcio , do ponto de vista formal este é um tipo de haicai que tem sido muito praticado no Brasil. Tem uma estrutura lógica.
Nesse ponto, eu procuro seguir Shiki, que escreveu: “Haikus não são proposições lógicas, e nenhum processo de raciocínio deve aparecer na superfície.”
Aqui, neste seu haicai, o poeta observa algo: as gotas deslizam pelo mato alto. É uma observação “de perto”, como a de uma lente macro. Em seguida, ele conclui, sem carga afetiva ou novidade, que isso se deu porque é tempo de chuva.
A simples inversão já eliminaria o processo do raciocínio na superfície:
É tempo de chuvas –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.
Aqui, em vez de uma explicação “raciocinante”, o que temos é um constatar da ordem das coisas.
Entre tantas observações que o poeta poderia fazer no tempo de chuva, ele escolheu falar do miúdo. O tempo de chuva não é explicação de nada. É a condição geral, o quadro em que se dá um fenômeno.
Nos dois casos “tempo de chuvas” é kigo. Mas neste segundo faz melhor o papel de kigo, fornecendo o clima, o "mood".
A interpretação fica por conta do leitor, mas poderia ser algo como: o poeta não pode sair de casa, ou está abrigado da chuva, não tem muito o que fazer e observa a água escorrendo pelo mato alto.
Se tivesse usado um outro kigo, o sentido seria diferente. Por exemplo:
Chuva de verão –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.
Alguém poderia dizer que há aí dois kigos: mato alto e verão. Mas isso só importa aos puristas. Principalmente porque no Brasil deve ser possível encontrar mato alto seja no verão, seja no outono, seja no inverno.
Se isso é ou não possível, é uma coisa. Outra coisa é o efeito diferente que produziria cada caso: chuva de verão, chuva de outono, chuva de inverno. Pode testar para ver.
Mas isso já é outro assunto, o que queria mostrar aqui é que, eliminando o mecanismo explicativo evidente, tudo fica mais “haicaístico”.
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