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sábado, 30 de setembro de 2023

Fausto

Quando assumi a direção da Editora da Unicamp, percebi que a última reunião do conselho editorial da gestão anterior tinha, para empregar uma expressão triste recentemente usada por um vilão, colocado algumas granadas no bolso no inimigo. O inimigo, no caso, era eu – por algum motivo que ainda não sei precisar. As granadas não eram algumas, na verdade; eram muitas: desde uma profusão de livros aprovados sem o rito necessário – isto é, sem pareceres de mérito que permitissem fundamentar a decisão –, até carta-branca a dois docentes de certo instituto, para que publicassem o que quisessem de uma extensa lista que, se desdobrada, daria origem a duas centenas de títulos. Porque aquilo significava apenas uma coisa: que eu não teria nada que fazer, ao longo dos quatro anos de meu mandato, senão ir pagando a dívida impagável. Ainda mais que o saldo em caixa era próximo de zero, se é que não estava negativo. Por sorte, pude contar desde o primeiro dia com um conselho editorial do mais alto nível e, nele, com o meu parceiro de longa data, Alcir Pécora. Com este passei em revista, durante vários dias, os processos dos livros aprovados irregularmente, que foram logo todos descartados, com um convite aos autores para que, se houvesse real vontade, reapresentassem proposta. Com o Conselho rigoroso erguido como assombração no final do processo, quase nenhum foi reapresentado. Vários dos que ainda constavam na lista, talvez como meros espantalhos, já tinham inclusive sido publicados. Restava o caso dos professores plenipotenciários. A cada um enviei ofício, comunicando que tal promessa-aprovação não se sustentava, cada livro teria de ser examinado, cada caso seria um caso. Dos dois, só um me deu notícia: um velho professor, que marcou hora e veio cobrar o prometido. Eu já o conhecia de nome, de modo que fiquei feliz com a oportunidade. Para espanto dos que aguardavam e temiam o possível embate, o que ecoou pela Editora foi o riso sonoro, quase uma repetida exclamação de Papai Noel, característico daquela personagem. Ofereci-lhe, tendo sido revogada a tal carta-branca genérica, a possibilidade de dirigir uma coleção inteira, nova modalidade aprovada pelo Conselho Editorial. Ou melhor, duas. E talvez três. Desde que dirigidas por ele e por uma equipe de alto nível, que elaboraria pareceres e mostraria ao Conselho a necessidade, a propriedade e a qualidade de cada publicação pretendida.
Foi assim que fiquei amigo de Fausto Castilho.
Na sequência, uma frase deu a real medida do feito e, em dimensão oposta, da real medida de quem a disse: um professor da nova geração, colega de Fausto, vendo-nos à porta do restaurante, deu um jeito, na sequência, de rir-se e me dizer que não sabia como eu tinha paciência para aturar a figura pitoresca. Nada respondi. O tempo diria. Como disse: Fausto dirigiu coleções de obras filosóficas imprescindíveis à formação de profissionais e interessados na filosofia; fez traduções e supervisionou as feitas por colegas e ex-alunos, zelou pelas edições bilíngues e apresentou à editora intelectuais que até hoje são autores da casa. Além disso, publicou conosco um livro fundamental para pensar o ensino superior no Brasil, expondo seu conceito de universidade, até hoje uma bandeira e um ideal de resistência à miséria imposta à instituição pela máquina produtivista americana. Ao mesmo tempo, foi me contando histórias deliciosas de suas visitas (ainda menino) a Monteiro Lobato e Oswald de Andrade, e dos tempos da Sorbonne, da França e da Alemanha, falando de Bachelard e Sartre e Heidegger e tantos outros com familiaridade, pois os conhecera a todos. É certo que era dado a exageros e se acreditava, ao que parece, imortal. Um dia entrou na minha sala agarrado a um livro pesado. Vestia seu traje usual, que era um safári de cor clara. Vendo-o assim, ocorreu-me um caçador esmagado sob o peso da caça maior que ele. De fato, estava calor e vinha esfalfado. Depois de um minuto de suspense, em que saboreou o meu espanto, com um risinho maroto desabou o livro sobre a minha pobre mesa, com estrondo. Então riu alto e disse, com seu vozeirão: “Dr. Paulo, temos de publicar este livro!” Era o Kant Lexikon. Olhei aquilo, olhei para ele, e para aquilo de novo. Seus olhos claros riam mais do que o seu rosto. Perguntei-lhe: quem vai traduzir isto, Professor? E ele, rindo de novo: “Eu, claro!” Andava ele, eu creio, pelos oitenta anos. Ou pouco menos... Disse-lhe que podia ser, mas que precisávamos de recursos, ao que me respondeu que traduziria de graça. Quanto aos custos, seriam também por conta dele. Não tinha filhos, acrescentou. O Kant Lexikon nunca foi publicado por nós. Mas talvez de algum lugar do seu espólio ainda nos possa surpreender o trabalho começado. Mas foi bem que não o traduzisse, que não gastasse muita energia nele, porque assim se dedicou às coleções e à idealização da profícua Fundação que leva o seu nome.
Veio tudo isto à memória hoje porque Ricardo Lima passou comigo a manhã, mostrando-me o conjunto e lendo para mim a apresentação e o primeiro capítulo do livro que acaba de terminar: uma biografia de Fausto Castilho. Do que vi, ouvi e li nesta manhã, posso dizer que se trata de um livro excepcional, muito bem escrito, bem fundamentado em pesquisas, entrevistas e documentos, e ricamente ilustrado. Sobretudo, trata-se de um livro animado por um propósito louvável, e necessário: mostrar ao público o vulto inteiro de um grande intelectual, que pensou a universidade com profundidade, coerência e paixão. Em mais alguns meses, estará impresso. Quando isso acontecer, pretendo voltar ao assunto, depois de o ter lido com calma e por inteiro.