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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Saudação

 Creio que esta será a última provocação no tópico (mas não só...)


Numa língua que conheço mal ou da qual tenho apenas rudimentos, prefiro ler traduções literais de poemas, ao lado do texto original.
Nisso, o meu modelo – eleito ainda na adolescência – foi a antologia de Pablo Neruda publicada pela Editora Sabiá: o texto do original em versos, no corpo da página, ocupando o lugar principal; em rodapé, humilde, em texto corrido, com a quebra dos versos marcada por um sinal gráfico, a tradução plana, literal. Foi o modelo que sempre depois tentei conseguir de poetas que me interessavam, ainda que a prosa fosse não em português, mas em espanhol ou francês.
Porque em línguas ocidentais não é difícil oralizar e perceber o ritmo e as sonoridades. E tendo o texto em prosa literal, usufruir das duas coisas: a sucessão das palavras, imagens e conceitos, e a sucessão, a repetição e a variação dos sons e mesmo a disposição das letras. Por isso mesmo, quando organizei o livro “Haikai – antologia e história”, tratei de fornecer ao leitor a tradução palavra por palavra ao lado de outra, mais escorreita, mas ainda assim literal.
Já as traduções que buscam recuperar aquilo que em certa época se denominou “função poética”, ou – como se diz - recriar ou transcriar o original, poucas vezes me atraem ou convencem. Primeiro porque não sei o que poderia haver a ganhar em recuperar uma rima à custa da mudança do registro da palavra; ou uma aliteração, alterando a imagem; ou um acoplamento sintático de verso a outro quebrando a relação determinada entre frase e verso, ou provocando inversões que não há no texto original.
Para mim, desde que eu consiga ver isso tudo no original, e juntar o que vejo (ou ouço) com o que a tradução mais elementar me mostra, já está bom. E se o tradutor do texto em prosa generosamente acrescentar notas para esclarecer o que achar que merece ser esclarecido nas opções que fez, melhor ainda.
É o meu limite. E se na poesia lírica prefiro a tradução literal, acompanhada do original, mais ainda na tradução da épica tenho predileção pela prosa o mais possível literal.
Por exemplo, eu gostei de ler a Ilíada, na adolescência, na tradução em versos de Carlos Alberto Nunes, que me seduziu pelo ritmo. Tanto que, enquanto a lia, qualquer trabalho escolar ou mesmo carta, terminava por se conformar ao batidão de “logo que aurora de dedos de rosa surgiu matutina” ou “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas” – versos que posso estar referindo errados, mas que se fixaram assim na minha memória. Mas estou seguro de que preferiria a ter lido desde sempre numa boa tradução em prosa corrente.
Assim como preferi, depois de ter lido a Eneida em versos, a prosa da tradução de Giulio Davide Leoni e Neyde Ramos de Assis. Foi essa a Eneida que mais me satisfez e satisfaz como leitor, ao longo do tempo, e foi ela a que usei quando, anos depois, pude compreender um pouco de latim e assim ler em paralelo. Por isso, na escala das minhas preferências, traduções como as Odorico e seus descendentes ocupam um lugar bastante modesto. Há quem garanta que ali se recupera muito da sonoridade ou do sentido das palavras do grego, e do latim. Não sei avaliar, e penso que possam ser, por isso mesmo, bom material de estudo. Mas a verdade é que nunca consegui ler nenhuma delas de modo extensivo, só por amostragem – e ainda assim sem entusiasmo nem prazer.
Mas me ocorreu hoje esse tópico por conta da disponibilidade de máquinas inteligentes, capazes de traduzir muito melhor do que o velho Google Tradutor.

Então me lembrei deste poema de Mallarmé:

Salut

Au seul souci de voyager
Outre une Inde splendide et trouble –
Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double
Comme sur quelque vergue bas
Plongeante avec la caravelle
Ecumait toujours en ébats
Un oiseau d’annonce nouvelle
Qui criait monotonement
Sans que la barre ne varie
Un inutile gisement
Nuit, désespoir et pierrerie
Par son chant reflété jusqu’au
Sourire du pâle Vasco.

A mim esse poema interessou sempre por dois motivos: por ser de fato um belo sonetilho, em versos de 8 sílabas; e por ter sido composto quando dos quatrocentos anos da viagem de Vasco da Gama, no mesmo ano, portanto, em que Camilo Pessanha publica o díptico “San Gabriel”.

A tradução mais conhecida talvez seja esta, de Augusto de Campos:

Brinde

À só tenção de ir além de
Uma Índia em sombras e sobras
− Seja este brinde que te rende
O tempo, cabo que ao fim dobras

Como sobre a vela da nave
Mergulhando com a caravela
Espumante a ávida ave
Da novidade sempre vela

A cantar com monotonia
Sem jamais volver o timão
Uma jazida ali à mão
Noite demência e pedraria

Que se reflete pelo casco
Ao riso pálido de Vasco.

Gosto muito pouco do resultado. Primeiro porque é aquele tipo de tradução em que, em nome de uma aliteração ou uma rima, se sacrifica uma parte importante do sentido, algo que parece constitutivo do seu sentido.

O poema é um brinde a uma coisa e não a outra. Mallarmé brinda à viagem, não ao objetivo dela. À viagem e não à conquista de um lugar luxuoso e turvo. Brinda apenas à inquietação de viajar, a uma viagem portanto além da Índia. O brinde ocupa os dois primeiros versos. O terceiro se refere ao próprio brinde e diz que o fato de ser feito quando é feito o torna uma espécie de mensageiro do tempo. Vasco da Gama dobrou o tempo, ultrapassou-o, e não só ao Cabo das Tormentas.

Na tradução de Campos, o tempo é que rende (?) um brinde ao navegador. E a Índia comparece agora “em sombras e sobras”, o que não ecoa mais a atração do luxo e a confusão que o verso de Mallarmé lhe atribuía como atributos. É a fissura da aliteração, embora não haja aliteração nesses versos. É, portanto, o tal perde-ganha: há uma aliteração em outro verso, que é irrecuperável, então se compensa onde não há.

Há outros problemas, do meu talvez limitado ponto de vista. A ave da nova anunciação, ou seja, a anunciação de uma nova era ou novo mundo, vira uma ave da novidade, que é sempre ávida – talvez de mais novidade. Ou de mais aliteração.

Também fica um pouco obscurecida a ideia de que nada fazia o navio perder o rumo (esse é um dos sentidos da palavra gisement – que é ainda jazida e jazigo – o ângulo formado entre o eixo longitudinal (ou linha de proa) de um navio e a direção de um ponto externo (fixo ou móvel). Na versão de Augusto, em vez de não desviar nada do rumo pré-traçado, temos “volver”, que dá ideia de retorno ou mudança voluntária de rumo. Tampouco gosto do “casco” rimando com Vasco, mas isso já é o de menos.

Mário Faustino fez uma tradução mais literal (tenho anotada num caderno, mas não encontro o livro, por isso desculpem alguma imprecisão):

Com a única inquietação de viajar
Para além de uma Índia esplêndida e perturbada -
Seja esta saudação o mensageiro do tempo
Cabo que tua popa dobra

Como certa verga baixa
“Mergulhante” junto com a caravela
Espumava sempre em folguedos
Um pássaro de nova anunciação

Que apregoava monotonamente
Sem que variasse a cana do leme
Um inútil jazigo
Noite desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

Por fim, uma tradução de máquina. A de Claude.ai:

Saudação

Apenas com ânsia de viajar
Além de uma Índia esplêndida e turva -
Esta saudação seja a mensageira
Do tempo, cabo que tua popa dobra

Como sobre alguma verga baixa
Mergulhando com a caravela
Espumava sempre em movimentos
Um pássaro de novo anúncio

Que gritava monotonamente
Sem que o leme variasse
Um inútil jazigo
Noite, desespero e pedraria

Por seu canto refletido até
O sorriso do pálido Vasco.

Prefiro ler na de Faustino, embora o primeiro verso me pareça melhor na de Campos. Mas para aqueles poemas que eu não puder ler no original e que Faustino ou outro que ensaie uma tradução literal não traduziu, é bom saber que agora tenho a tradução artificial.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 2

 Agora pedi à Claude.ai para compor um soneto satírico sobre as eleições. Só pedi isso, sem mais instruções.


Ela me deu isto, com a explicação que segue:

Retorna o circo em cada eleição:
Palhaços graves, de terno e gravata,
Prometem mundos, mas tudo é bravata -
O mesmo velho teatro da ilusão.

"O povo! O povo!" - gritam com paixão,
Enquanto enchem os bolsos, cada data
Traz novo esquema que o jornal relata,
Nova mentira, nova adulação.

Há quem ainda creia, pobrezinho,
Que desta vez virá a diferença...
(Como é teimoso o humano bichinho!)

Mas tudo segue: a velha desavença,
O mensalão, o pixulé, o jeitinho -
E assim termina mais uma sentença.

Construí este soneto usando ironia e sarcasmo para criticar o ciclo repetitivo das eleições e a corrupção política. Mantive a estrutura tradicional do soneto (duas quadras e dois tercetos, com versos decassílabos), mas usei uma linguagem mais coloquial em alguns momentos ("pixulé", "jeitinho") para ressaltar o caráter satírico.

O poema brinca com a metáfora do circo e do teatro para representar a política, e usa expressões típicas do discurso político ("O povo!") de forma irônica. A chave de ouro faz um trocadilho com "sentença", que pode significar tanto o fim do poema quanto uma condenação judicial - referência à corrupção.

Inteligência artificial - 1

 Pedi à Claude.ai que analisasse um haicai de que gosto bastante. O haicai diz:

Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Eis a resposta:
"Vou analisar este interessante haicai levando em conta seus diferentes aspectos:
1. Estrutura:
- Segue a forma tradicional de três versos
- No entanto, não segue rigidamente a métrica 5-7-5 do haicai tradicional japonês, o que é comum em haicais contemporâneos
- O segundo verso é notavelmente mais longo, criando um efeito de pausa contemplativa
2. Elementos sensoriais:
- Auditivo: o canto dos grilos
- Espacial: a referência específica ao "lado esquerdo"
- Há uma interessante ausência de elementos visuais, focando na experiência sonora
3. Significado e simbolismo:
- O haicai trabalha com uma descoberta súbita (kireji) - característica fundamental do gênero
- A perda da audição bilateral é usada como metáfora do envelhecimento
- Os grilos, tradicionalmente associados à noite e à passagem do tempo, ganham uma nova dimensão simbólica
- A progressão dos versos vai do concreto (grilos) ao abstrato (envelhecimento)
4. Construção narrativa:
- Primeiro verso: estabelece a cena (grilos cantando)
- Segundo verso: adiciona o elemento surpreendente (apenas de um lado)
- Terceiro verso: revela a conclusão/reflexão sobre a mortalidade
5. Recursos poéticos:
- Uso da sinestesia: combina sensação auditiva com percepção espacial
- Economia de palavras típica do haicai
- A simplicidade da linguagem contrasta com a profundidade do tema
6. Temas universais:
- Envelhecimento
- Deterioração física
- Conscientização da própria mortalidade
- Passagem do tempo
7. Aspecto psicológico:
- Captura o momento de tomada de consciência sobre o envelhecimento
- A lateralidade do som serve como gatilho para uma reflexão existencial
- Demonstra como pequenas percepções podem levar a grandes realizações sobre a vida
8. Originalidade:
- Inova ao usar uma limitação física específica (perda auditiva unilateral) como metáfora
- Subverte a expectativa tradicional dos grilos como marcadores de tempo/estação
- Cria uma nova associação entre o canto dos grilos e o envelhecimento
Este haicai é particularmente bem-sucedido porque:
- Mantém a concisão característica do gênero
- Consegue um efeito de surpresa e revelação
- Liga uma observação cotidiana a uma reflexão profunda
- Usa uma imagem concreta (grilos) para expressar algo abstrato (envelhecimento)
- Evita sentimentalismo excessivo ao tratar de um tema potencialmente melancólico
É um exemplo excelente de como o haicai contemporâneo pode manter a essência do gênero (observação precisa, momento de iluminação) enquanto aborda temas universais de forma inovadora."