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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Haicai e zen

 Entre os muitos textos que fui postando no fórum que Edson Iura e eu criamos nos primórdios da internet, há alguns que me agradam ainda hoje.

Eles estavam escritos sem acentuação e sem cedilhas, com linhas meio aleatórias - enfiem: eram difíceis de ler.
Pedi à IA para os atualizar, e ela fez esse trabalho chatíssimo.
Aqui está um deles, animado por uma combatividade e um entusiasmo que leio com alguma simpatia.

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Entre os muitos textos que fui postando no fórum que Edson Iura e eu criamos nos primórdios da internet, há alguns que me agradam ainda hoje.
Eles estavam escritos sem acentuação e sem cedilhas, com linhas meio aleatórias - enfiem: eram difíceis de ler.
Pedi à IA para os atualizar, e ela fez esse trabalho chatíssimo.
Aqui está um deles, animado por uma combatividade e um entusiasmo que leio com alguma simpatia.

HAICAI E ZEN

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Texto de julho de 1996

Há algumas semanas, o Edson postou aqui um comentário sobre o zen no haicai, ou melhor, sobre o zen na crítica e no entendimento ocidentais do haicai. Depois, o Gabriel postou um texto que parecia uma contestação, meio oblíqua, ao Edson. E o assunto morreu. Por fora da lista, sei que há pelo menos mais uma pessoa que tem algo a dizer sobre o assunto, mas que não tem achado tempo de o fazer.

Assim, resolvi pôr a minha opinião para girar, enquanto outros não se pronunciam.

Pois bem. Acho que eu concordo e não concordo com o Edson. Concordo com ele e com o autor que citou no que diz respeito ao exagero zenista que assola o haicai fora do Japão. Tudo é zen, e fala-se indistintamente de haicai e de zen, ou de ikebana e zen, porque o que importa é esse indefinível e inatingível zen. Vi uma vez, em São Paulo, um conferencista que, depois de dizer que o zen é a base indefinível, passou a defini-lo nos termos mais bizarros: um mosquito é o zen, um beijo é o zen, o nada é o zen, isto aqui é o zen, a chuva, o sol, a poesia, o sexo, o amor, etc. Sei que alguns estão pensando que o homem era um iluminado e eu um boboca que não pude entender que o meu próprio umbigo também era o zen. Mas a minha reação foi de pasmo e depois um incontrolável ataque de riso que fez com que tivesse de sair, chorando e com dor de estômago, para gargalhar do lado de fora. E onde pensam vocês que se deu tal conferência? Num Encontro de Haicai, no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo. Era tudo por conta do haicai...

Quero dizer: já ouvi tanta bobagem sobre o zen quanto qualquer outro, e também me irrita essa coisa de meter a palavra em tudo. Nesse sentido, zen é, para os ouvidos, um termo pior do que "dialética", quero dizer: usado ainda mais confusa, vaga e indiscriminadamente. E obviamente tenho de concordar que é possível fazer bons haicais sem nunca ter queimado as pestanas sobre um texto de divulgação do que seja o "zen".

Também, é claro, fiquei já irritado com a identificação simplista de zen com imediatismo espontaneísta, ou com o irracionalismo.
Nesse aspecto, achei perfeito quando um monge da Terra Pura me disse, com um sorriso bastante irônico, que os homens do zen dizem que o melhor é o silêncio e que o zen não se pode definir, ao mesmo tempo em que escrevem rios de livros para dizer o que é e como é o zen.

Por outro lado, é preciso ver também que a palavra zen significa, nas várias línguas do Ocidente, alguma coisa muito diferente, muito especial.

Para nós, essa palavra tem uma história cheia de beleza. De minha parte, quando penso no zen, no conceito de zen ocidental, penso com respeito, e com emoção.

Pouco me importa, nesse nível, o que seja o zen no Oriente. Isto é, aquele particular ramo do Budismo, com tais e tais sutras como base e tais e tais patriarcas. O nosso zen é outra coisa. É aquilo que D. T. Suzuki nos ensinou? É, sem dúvida: seu Zen and Japanese Culture sempre será um livro admirável. É também aquilo que nos ensinaram todos aqueles chatos religiosos, como o intragável Taisen Deshimaru, que fez tantos prosélitos? É, sem dúvida. Isso não se discute.

Entretanto, o que me comove de verdade não é nenhum desses textos, nenhum desses missionários que vieram do Oriente para nos fazer ver o verdadeiro zen. O que me comove é o zen que foi refabricado no Ocidente, a partir das nossas necessidades e do nosso esforço de conquistar uma alteridade que nos conviesse. Estou falando, agora, de gente como Allan Watts, R. H. Blyth, E. Herrigel e tantos outros. O zen que conta para nós é o de Herrigel. Seu relato do aprendizado da arte do arco e flecha é uma maravilha. É o de Watts, esse gênio brilhante que era também um tanto charlatão e um escritor de primeira linha. Seus textos sobre o zen, bem como a sua biografia, ajudaram a moldar aquilo que depois chamamos de orientalização da contracultura. E é o de Blyth, que nos abriu os olhos para uma coisa que ele chamou de zen, mas que poderia ter chamado de qualquer outra coisa, pois a reconhecia tanto em Wordsworth quanto em Bashô; em Issa e em Shakespeare. Sua interpretação de haicais é às vezes desfocada? É, ao que dizem. Mas isso não tem importância real: em regra, seu comentário ilumina o verso que comenta e ilumina muito mais que ele: mostra a atitude que está na sua origem, defende um jeito de estar no mundo e de fazer e ler a poesia em geral.

Blyth, Watts e Herrigel chamaram de zen aquilo que encontraram ou julgaram encontrar no Oriente e que quiseram trazer para o nosso mundo. Eram educadores, reformadores. Nesse caso, a verdade do que foi o seu zen é garantida pela sua obra, pelo destino que tiveram os seus livros. Depois deles, o zen passou a fazer parte da nossa cultura, é o "nosso zen".

Aos eruditos acadêmicos, esses homens causam um esgar de desprezo. Mas quem aguenta os scholars budistas? Quem quiser tentar, assine a lista Buddha-L ou a Buddhism: ambas são de uma chatice, um pedantismo e um profissionalismo de matar. Fala-se ali de Budismo como se se falasse do cálculo de resistência de materiais. Isto é, academicamente, embalsamadamente. Para eles, é vital saber qual era o termo exato que compareceu na terceira tradução para o chinês de um dado texto sânscrito. E isso é realmente louvável, enquanto método e ciência acadêmica. Mas o que aqueles senhores têm a dizer sobre o Budismo ou sobre o zen é muito pouco e quase sempre de uma perspectiva que faz com que o seu assunto não interesse a quase mais ninguém... O zen que se mexe e que leva as pessoas a mudarem formas de ver ou de se comportar, por menores que possam ser essas mudanças, é o zen de Watts, de Blyth e de Herrigel. É o que vem revestido daquilo que talvez nem seja muito zen: a paixão.

Desse ponto de vista, portanto, discordo do tom que vem no texto transcrito pelo Edson. O haicai, para muitos, é um exercício de "zen". Desse zen ocidental, meio tingido de beatnik, meio lavado de exotismo, certamente contestador, libertador, cheirando a anos 50. Que seja! Desde que se faça boa poesia.

Por outro lado, é verdade que a maior parte dos japoneses que pratica o haiku está pouco preocupada com o zen. No Brasil, então, talvez não haja um mais que um ou dois isseis ou nisseis que façam haiku e se confessem adeptos do zen.


Compreende-se, então, o espanto com que recebem a nossa pergunta fatal sobre o zen... Compreende-se mesmo que possam revoltar-se com a insistência na ignorância.


Mas o que normalmente um ocidental quer dizer, quando fala em zen e não é apenas mais uma vítima das modas culturais, é muito menos e muito mais do que um japonês ou chinês usualmente entende pela palavra. É muito menos porque é uma palavra vaga, sem precisão histórica nem filosófica nem filológica. E é muito mais porque por ela se designa quase sempre uma grande parte do que aprendemos a reconhecer como o que é específico, do ponto de vista cultural, do Extremo-Oriente. Uma comparação grosseira: um viajante de outro planeta (a comparação tem de ser essa, porque desde o século passado o Ocidente é onipresente em nosso mundo) poderia chegar a identificar como a base da ocidentalidade o pietismo cristão. Convencido disso, poderia, por exemplo, dizer que a poesia de um sujeito confessadamente ateu era cristã, porque nela reconheceria traços culturais que provêm do universo que identificou como cristão. Estaria errado? Não acho. Eu mesmo, ora meio ateu, ora meio vagamente budista, ora coisa nenhuma claramente identificável, sei que nunca deixarei de ser cultural e psicologicamente cristão...

domingo, 25 de maio de 2025

Métrica em Haicai

Métrica em Haicai

 

Em uma entrevista recente, George Goldberg me fez uma pergunta sobre a metrificação do haicai em português comparada com a espanhola. Considero essa uma questão relevante.


A Equivalência Problemática


Quando se imitou ou importou a forma do haiku para o português, estabeleceu-se uma equivalência entre os sons do haiku e as sílabas poéticas contadas segundo nossa tradição.


Já discuti esta questão extensamente em vários textos disponíveis neste blog, mas a observação que fiz em todos é que não há equivalência direta.


Em primeiro lugar, porque em japonês não se contam sílabas, mas "moras" — unidades de tempo na pronúncia.


Uma palavra como Bashô – que em português tem duas sílabas – tem 3 moras, pois o acento que usamos é uma simplificação do sinal de duração: shō representa duas moras. Assim também a palavra livro – hon – que em português teria uma sílaba, em japonês tem duas moras: ho-n (a nasalização vale uma mora). "Sensei", que significa professor, teria duas sílabas em português, mas em japonês tem quatro moras: se-n-se-i.


Temos de considerar ainda que em português a sílaba métrica ou poética é a sílaba pronunciada, diferente da gramatical. Por exemplo: "venha aqui" tem 4 sílabas gramaticais, mas só 3 sílabas métricas (ve-nha-qui).


A Diferença entre Espanhol e Português


Sendo assim, seria possível pensar em uma equivalência: uma mora por uma sílaba poética e, portanto, compor o haicai em versos de 5-7-5 sílabas poéticas?


Talvez, e mesmo assim de modo precário, mas somente se ainda contássemos as sílabas de cada verso como os falantes do espanhol contam.


O espanhol tem pouco menos de 80% de palavras paroxítonas (um pouco mais do que o português do Brasil). Na contagem das sílabas em poesia, então, os falantes do espanhol considream todos os versos como se terminassem em paroxítonas.


Isso também era assim em português até que, em 1851, Antônio Feliciano de Castilho propôs que contássemos à francesa, até a última tônica. Isso terminou por ser a regra em nossa língua.


Um verso como "tras la tormenta" tem 5 sílabas gramaticais e 5 sílabas poéticas em espanhol. Lido em português atualmente, teria apenas 4 sílabas poéticas, pois contaríamos só até a última tônica.


Portanto, quando em espanhol o poeta faz equivaler ao 5-7-5 japonês uma estrutura de 5-7-5 sílabas poéticas espanholas, ele muito frequentemente obtém 17 sons.


Já quando um poeta brasileiro ou português faz equivaler o 5-7-5 a dois versos de redondilha menor com um de redondilha maior entre eles, é muito provável que obtenha 20 sons.


O Problema do Formalismo Métrico


Por essa razão tenho sustentado que não considero razoável o formalismo das redondilhas, pois nem produz equivalência com o japonês, nem soa interessante aos nossos ouvidos um terceto imparissilábico baseado nos metros tradicionais.


Tanto não é interessante esse terceto que Guilherme de Almeida, que tinha grande perícia no manejo do verso e ótimo ouvido para a poesia, ao compor haicais inventou uma forma na qual as rimas criavam mais regularidade. Ele rimou os dois versos curtos, de cinco sílabas, e inseriu uma rima interna, rimando a segunda e a sétima sílabas do verso longo; obteve assim, do ponto de vista da rima, três sequências de 5 sílabas.


Do meu ponto de vista, mais importante do que a contagem das sílabas é a justaposição. Isto é, que o haicai contenha apenas duas frases: uma delas ocupando as duas primeiras ou as duas últimas , e outra a que restar. Essa já é outra história, mas uma história que importa para a escolha da forma de contar.


De modo geral, por isso tudo, prefiro não me ater a uma forma métrica rígida, mas apenas manter a brevidade: algo em torno de 17 sílabas divididas em 3 linhas.


Voltando ao ponto central deste texto, que é a possível ou impossível equivalência "mora"/sílaba poética... e esclarecendo os conceitos.


A forma espanhola de contar sílabas é idêntica à que era praticada em português antigamente: todos os versos são considerados como se terminassem em paroxítonas, independentemente de as palavras finais serem monossílabos tônicos, oxítonas ou proparoxítonas. Assim, ao traduzir um haicai para o espanhol usando a estrutura 5-7-5, obtêm-se, na maioria das vezes, 17 sílabas totais.


Em português, ao menos um tradutor levou isso em consideração e considerou o número total de sílabas do verso, à maneira antiga portuguesa. Nesse caso, os haicais têm maior possibilidade de totalizar 17 sílabas. Refiro-me a José Lira, no livro "As Cinco Estações – Os Haicais de Bashô".


Ao examinar as traduções de Lira, percebe-se claramente seu esforço para manter a contagem à moda antiga. A enorme maioria dos haicais de Bashô foram vertidos em versos que teriam, na contagem moderna, 4-6-4 sílabas, mas que, na verdade, têm 17 sílabas poéticas, que ele faz equivaler às 17 moras japonesas.


Do ponto de vista da sonoridade, considero que a solução de Lira é superior à normalmente adotada por aqueles que valorizam a métrica na produção e tradução de haicais. O texto flui melhor e, para o ouvido, muitas vezes parece tratar-se de um decassílabo acompanhado de seu quebrado (termo usado para designar versos que se combinam com um verso maior).


Sobre História da Metrificação em Português


Para compreender melhor a versificação e a forma de descrever o metro em espanhol e português, retomemos a questão por meio de alguns exemplos. Assim estaremos mais preparados para pensar de que forma se consegue melhor um equivalente para o esquema de 5-7-5 durações japonesas: 17 "sílabas" japonesas = 17 sílabas poéticas na língua de chegada.


Até a metade do século XIX, havia duas formas de metrificar nas línguas latinas. Uma era a do espanhol, português e italiano. Outra, a do francês.


Em italiano, espanhol e português (porque há muitas palavras paroxítonas nessas línguas) o verso era metrificado como se sempre terminasse com palavras desse tipo. Em francês, o padrão era a terminação em oxítona.


Exemplos Comparativos


Em italiano:


"per amore" – 4 sílabas gramaticais e 4 sílabas métricas
"il caffè" – 3 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso é imaginado como se terminasse em paroxítona)
"questo numero" – 5 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso é imaginado como se terminasse em paroxítona)

Em espanhol:


"la ventana" – 4 sílabas gramaticais e 4 sílabas métricas
"el café" – 3 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso é imaginado como se terminasse em paroxítona)
"este número" – 5 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso é imaginado como se terminasse em paroxítona)

Em português até 1851:


"a janela" – 4 sílabas gramaticais e 4 sílabas métricas
"o café" – 3 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso era imaginado como se terminasse em paroxítona)
"este número" – 5 sílabas gramaticais, mas 4 sílabas métricas (porque o verso era imaginado como se terminasse em paroxítona)

Em português, depois de 1851, seguindo o modelo francês:


"a janela" – 4 sílabas gramaticais e 3 sílabas métricas (despreza-se o que vier depois da tônica)
"o café" – 3 sílabas gramaticais e 3 sílabas métricas
"este número" – 5 sílabas gramaticais, mas 3 sílabas métricas (despreza-se o que vier depois da tônica)

Conclusão


Portanto, agora podemos ver com mais clareza que aferrar-se ao número não resolve a questão, pois 5-7-5 sílabas métricas/poéticas quer dizer uma coisa em português antigo e outra em português moderno; e uma coisa semelhante ao português antigo no italiano e no espanhol.


Vemos também que, se o haicai tivesse sido objeto de adaptação antes de Castilho resolver imitar os franceses na forma de contar as sílabas de um verso, é quase certo que ele seria adaptado com versos que hoje chamaríamos de tetrassílabos (4) e hexassílabos (6).


Portanto, fincar pé na estrutura do haicai como 5-7-5 poéticas contadas à maneira moderna em português não tem muito a ver com fidelidade ao original, mas sim com o desejo de venerar a tradição dos pioneiros que, no fim do século XIX e começo do século XX, assim trataram de supor a equivalência.

 

terça-feira, 6 de maio de 2025

O que quer dizer esse haicai?

 Na margem do lago,

Imóveis se olhando, a garça

E a moça de branco.



Uma pessoa me pergunta o que eu quis dizer com o haicai da garça e da moça de branco que postei no story. Eu poderia responder que quis dizer o que disse, mas isso seria uma falsa resposta. Ao mesmo tempo, como responder de outra forma? Nas oficinas de haicai que ministrei, quando não entendia algo indagava qual era a situação em que a pessoa escreveu. Em haicai é a única maneira, eu penso. Minha resposta foi, portanto, contar como eu escrevi. 

Eu gostava de caminhar no Parque Taquaral antes do acidente. De vez em quando conseguia não ficar pensando em nada, apenas olhando e me deixando levar por outras sensações. Quando algo me chamava a atenção, eu anotava imediatamente, tentando não ter nenhuma mediação, exceto a forma dos três versos. Só depois de escrever olhava para aquilo como um espelho. Quero dizer: se algo me chamou a atenção e quis se cristalizar em palavras é porque correspondeu a algo no meu espírito (no meu estado de espírito), que recortou da realidade o que entrava em harmonia com ele. Minha interpretação, por isso, tem o mesmo valor da interpretação que qualquer pessoa que leia possa fazer. O interessante é que essa reação: “o que você quis dizer com isso? É só isso? Não tem mais nada?” – é a que as pessoas em geral têm frente a poemas clássicos da tradição do haicai.

No caso, no final do dia, olhando o que eu tinha escrito, tentei perceber o que me fez registrar aquilo. Além da óbvia graça da situação especular (a garça olha a moça que olha a garça, ambas de branco), há alguma coisa ali que a mim, como leitor, transmite paz. Eu poderia dizer que essa equivalência meio irônica do humano e do animal sugere a ideia de que todos somos parte de um mesmo todo – mas isso seria demais. Prefiro me fixar no retrato e numa certa tensão de espera: quem vai se mover primeiro? o que vai acontecer agora? – tensão que se reflete talvez na estrutura do verso, em que o enjambement traz um minúsculo suspense e surpresa. Mas penso que é mesmo o retrato, o recorte visual que importa, e cada um pode ou desprezar o escrito ou achar um sentido para ele. Mas seja como for lá continuam paradas, olhando uma para a outra, a garça e a moça de branco.

sábado, 26 de abril de 2025

Crítica de haicai 2

 Nasci em Matão, simpática cidadezinha italiana no interior do estado. Lá me dediquei às duas atividades culturais disponíveis, que ocupavam o mesmo lugar: o xadrez e a leitura.


Trazendo assim esta marca de origem, como poderia deixar de atender a um conterrâneo que me pede opinião sobre suas incursões no estranho território do haicai?

Do primeiro comentário resultou que o conterrâneo abdicou da métrica, achando por bem privilegiar a impressão. E me enviou outro haicai.

Como achei que este último comentário pontual poderia ser de interesse de mais pessoas, consultei-o sobre se queria a resposta inbox ou por aqui. Era indiferente, mas ele também achava que podia ser melhor por aqui. Então segue.

pelo mato alto,
as gotas deslizam:
é tempo de chuvas

Meu caro Márcio , do ponto de vista formal este é um tipo de haicai que tem sido muito praticado no Brasil. Tem uma estrutura lógica.

Nesse ponto, eu procuro seguir Shiki, que escreveu: “Haikus não são proposições lógicas, e nenhum processo de raciocínio deve aparecer na superfície.”

Aqui, neste seu haicai, o poeta observa algo: as gotas deslizam pelo mato alto. É uma observação “de perto”, como a de uma lente macro. Em seguida, ele conclui, sem carga afetiva ou novidade, que isso se deu porque é tempo de chuva.

A simples inversão já eliminaria o processo do raciocínio na superfície:

É tempo de chuvas –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Aqui, em vez de uma explicação “raciocinante”, o que temos é um constatar da ordem das coisas.

Entre tantas observações que o poeta poderia fazer no tempo de chuva, ele escolheu falar do miúdo. O tempo de chuva não é explicação de nada. É a condição geral, o quadro em que se dá um fenômeno.

Nos dois casos “tempo de chuvas” é kigo. Mas neste segundo faz melhor o papel de kigo, fornecendo o clima, o "mood".

A interpretação fica por conta do leitor, mas poderia ser algo como: o poeta não pode sair de casa, ou está abrigado da chuva, não tem muito o que fazer e observa a água escorrendo pelo mato alto.

Se tivesse usado um outro kigo, o sentido seria diferente. Por exemplo:

Chuva de verão –
As gotas deslizam
Pelo mato alto.

Alguém poderia dizer que há aí dois kigos: mato alto e verão. Mas isso só importa aos puristas. Principalmente porque no Brasil deve ser possível encontrar mato alto seja no verão, seja no outono, seja no inverno.

Se isso é ou não possível, é uma coisa. Outra coisa é o efeito diferente que produziria cada caso: chuva de verão, chuva de outono, chuva de inverno. Pode testar para ver.

Mas isso já é outro assunto, o que queria mostrar aqui é que, eliminando o mecanismo explicativo evidente, tudo fica mais “haicaístico”.

Crítica de haicai

 Minha última postagem deu motivo a muitos comentários, sugestões e críticas.


Isso é o melhor do Facebook - esta plataforma tão detestável sob outros aspectos.

De minha parte, acho que palpitar no haicai e nas questões envolvidas nas postagens é ótimo e penso que as pessoas deviam fazê-lo sem pensar que eu poderia me aborrecer com críticas ou ressalvas. Eu posto justamente para ter diálogo.

Com relação à postagem sobre o cachorro morto, um ponto que me parece interessante é a proposição do haicai como anotação direta e "imexível".

Penso que, como exercício espiritual, como caminho, o haicai almeja a notação direta já acabada.

Também como caminho, como aprendizagem, é importante a notação sem retoques, que permite avaliar o grau de desenvolvimento - numa situação tradicional em que há um professor, um mestre.

Por outro lado, como disse num comentário, mexer num haicai, alterar a primeira notação, pode ser um esforço de recuperar a percepção inicial, levar o escrito para mais perto da experiência.

Não é verdade que, quando escrevemos, o amor-próprio nos leva às vezes a tentar "melhorar"o que íamos escrever? Nos leva a querer antecipar a reação do leitor e nos adequar a ela?

Nesse caso, alterar o haicai pode ser justamente eliminar essas intervenções do amor-próprio. Significa depuração das palavras em direção à experiência.

Quando se trata de notação imediata como valor do haicai, sempre me lembro desta formulação de Tohô, um dos discípulos de Bashô:

"Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência. Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade."

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Shiki e o haicai

 Reli hoje a bela apresentação do livro “Shiki, inventor do haicai moderno”, de Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym. É um texto muito interessante. Enquanto lia, fiquei pensando no que significou e significa o haicai para mim. Também refleti sobre o que, na minha concepção de haicai, devo a Shiki – direta ou indiretamente.

A verdade é que cada um de nós faz, com os objetos do passado, uma síntese pessoal a partir de recortes nos quais os interesses do presente desempenham um papel central e ineludível.

No meu caso, a porta de entrada foram os livros de R. H. Blyth. Só depois vieram os outros ocidentais e, por fim, os tratados da escola de Bashô, em tradução ou no texto original, lidos com a Elza Doi, durante o nosso trabalho conjunto.

O meu haicai, ou melhor: o meu ideal de haicai é uma combinação dos preceitos da escola de Bashô com as prescrições de Shiki. Ou eu pensava que seria, porque lendo o livro de Andrei e Roberto fui percebendo que tenho mais afinidades com Shiki do que com Bashô. Ou melhor, que terminei por ler Bashô pelos olhos de Shiki e a praticar um haicai mais próximo deste do que daquele.

Na verdade, são poucos os poemas de Bashô que me tocam profundamente. Seus diários me impressionam, mas muitos dos seus haicais são tão dependentes de intertexto e referência histórica ou cultural que me deixam um pouco distante. A objetividade de Shiki me seduz mais, embora sinta falta de alguma obscuridade e transcendência – que às vezes me parece até excessiva em Bashô.

Na verdade, a figura de Shiki terminou por ser tão importante que até Issa e Buson eu creio que terminei por ler pelos seus olhos, ou – pelo menos – a partir dos ideais de poesia que estão em seus haicais e escritos críticos. E também porque, apesar da fixação de Blyth no Zen, no fundo é a perspectiva moderna de Shiki que orienta muitos de seus comentários.

Da introdução ao livro que originou esta anotação, destaco:

 

“No entanto, se o olhar brasileiro se volta para o Japão, origem do haicai, a imagem que no mais das vezes surge é a do “bom velhinho” Bashô, um sábio venerável e quase santo, que atingiu a iluminação espiritual por via da poesia. Na mitologia construída para ele no Brasil, Bashô reúne tanto o fascínio do exótico como a reputação de iconoclasta e a aura de divindade.

Dessa incongruência iconográfica, oriunda de uma mistura bem intencionada de sede de exótico com orientalismo de segunda mão e falta de acesso a fontes mais fidedignas, surgiu a ideia, bastante encontradiça no Brasil, de que Bashô, no século XVII, escrevia haicai modernista, ou de que os nossos modernos brasileiros, ao escreverem poemas de três versos de 5-7-5 sílabas, estabelecem uma conexão espiritual com uma escola muito antiga de ensinamentos quase religiosos, fundada por um benevolente (e bastante presciente) asceta japonês.

É verdade que tanto a imagem de “homem santo” associada a Bashô quanto a ideia de que o haicai deve ser uma síntese de linguagem criada a partir de uma visão de mundo despojada de ornamentos têm real origem na história da literatura japonesa. Uma e outra estão intimamente ligadas à trajetória de Masaoka Shiki, que lutou contra a primeira e sistematizou a segunda.”

 

Aí está. Enfim, era isso. O que eu queria mesmo dizer é que se trata de um livro que todo praticante ou estudioso de haicai no Brasil deveria ler com atenção.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A arte do haicai


Haicai é um tipo de poesia que se aproxima das artes tradicionais japonesas num aspecto relevante: tem um caráter de exercício, aprendizado, conversa, construção coletiva.

Não é muito comum um poeta enviar poemas para outro e pedir palpites. E quando isso acontece, pouca gente tem a coragem de fazer o que Pound fez com “The Waste Land” – e menos gente ainda tem a humildade de fazer como Eliot, ao receber o seu poema todo cheio de rasuras e palpites.

Mas em haicai isso, por assim dizer, faz parte do jogo.

Por exemplo: um amigo me pediu um palpite sobre um seu haicai. Este:

mar de cana verde
- sob um céu azul sem manchas
outonal Mogiana.

Propus então duas versões, tentando alterar o mínimo e operando principalmente por supressão e inversão da ordem das palavras:

Sobre um mar de cana,
O céu sem manchas -
A Mogiana no outono.

Outono na Mogiana:
Sobre o mar de cana,
Um céu sem manchas.

E por que fiz isso?

Bom, eu achei que os adjetivos, embora acrescentando cores, diminuíam a carga sensória das imagens. Olhando o resultado, pareceu-me que em nenhuma das versões eles de fato fizeram falta.

Mantive a metáfora do mar, porque não me pareceu excessiva. Ou seja: é quase um lugar comum, não chama muito a atenção sobre si mesma.

Mas inverti a direção do olhar. Em vez da descrição estática (isto sob aquilo), preferi um pouco de dinamismo (sobre isto, aquilo). Porque quando digo “isto – sob aquilo”, a segunda parte termina por ter um valor quase adjetivo (não sei explicar melhor essa sensação); já quando digo “sobre isto, aquilo”, há um mínimo suspense e nenhuma parte da frase parece qualificar a outra.

Do ponto de vista da construção da imagem, da apresentação dos elementos, a diferença entre as duas propostas é basicamente a ordem. Na primeira, a cana e o céu são apresentados ao leitor e depois vem a região e a estação. Na segunda, vem primeiro a estação e depois a cana e o céu.

Na primeira, então, o poeta organizaria a percepção, enquadrando-a no último verso; na segunda, os elementos naturais apareceriam como “provas” ou tradução sensível do que se diz no verso inicial.

Ou seja, na primeira o poeta perceberia a cena, registraria os elementos sensíveis, e depois a explicaria, situando esses elementos no quadro sazonal, como quem diz: “Vejam essas coisas, isso mostra que estamos no outono nesta região”. Nesse sentido, talvez fosse melhor suprimir a palavra Mogiana, deixando como último verso isto apenas: O outono chegou!

Já no segundo caso, o poeta “definiria” o outono na região da Mogiana por meio de algo observado objetivamente, como quem diz “Isto é o outono nesta região: uma grande plantação de cana e um céu sem nuvens ou sem poluição”.

As outras modificações, isto é, a comutação de artigos indefinidos e definidos, se explicam pela mudança da perspectiva.

Meu amigo achou boas as sugestões, mas disse que tinha feito um esforço para manter a métrica. Já eu, embora nada tenha contra a métrica, não me importo muito com ela e estou sempre disposto a sacrificá-la em benefício da economia, da naturalidade da expressão e do sabor de haicai.

Numa oficina de haicai, esse tipo extenso de comentário não cabe. É muito teórico. Diz respeito só aos parâmetros de ação de quem conduz a oficina.

Na prática, a conversa seria mais simples: uma pessoa apresentaria um haicai; a outra pessoa – se achasse que poderia “tornar o haicai mais haicai” – proporia uma ou mais versões alternativas, até que a primeira pessoa dissesse “era isso mesmo que eu queria dizer!”, ou então: “entendi!”, ou, mais raramente: “prefiro ficar com a minha versão” por este ou aquele motivo. E em qualquer dos casos, a segunda pessoa diria: “ótimo, tudo bem!”.

E pode mesmo ocorrer que toda a ação da segunda pessoa esteja equivocada. Nem por isso deixa de haver aprendizado de ambas, e principalmente das demais pessoas que assistem à conversa ou participam dela, se se tratar de uma oficina nos moldes tradicionais.

E aqui está: para quem me perguntou como será a oficina do segundo semestre, essa longa postagem deve ser útil, pois pode ajudar a imaginar a forma de operar e de conduzir a atividade.

 

domingo, 13 de abril de 2025

Antologia de haicais clássicos

 Passei a tarde lendo, com alegria e prazer, o livro “Antologia de haicais clássicos”, de Edson Iura.

Conheci Edson Iura em algum momento de 1990 ou 1991. Foi em 90 que participei do V Encontro de Haicai, e nele apresentei o livro “Haikai – antologia e história”, recém-lançado. Na sequência, fui convidado a participar das reuniões do Grêmio Haicai Ipê.
Alguns anos depois, Edson e eu decidimos criar um fórum de discussão sobre haicai em português. A Unicamp cedeu espaço no seu computador central e lá abrimos a Haikai-l, em 28 de março de 1996. Nesse mesmo ano, Edson criou o site Kakinet, o primeiro em língua portuguesa exclusivamente centrado no haicai – e que hoje é uma referência imprescindível a quem quer saber mais sobre essa poesia.
Acompanhei depois o trabalho e a dedicação incansável do autor, que recentemente frutificou em livros. Primeiro, com o lançamento, em 2021, de “Cesto de caquis”, notável trabalho que ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional em 2022. Nesse mesmo ano, com “O Mendigo Sonha” – uma coletânea de seus haicais, escritos ao longo de décadas. Agora, por fim, em 2025, com a reunião em volume de algumas das muitas traduções de haicais clássicos que foi publicando, de 1999 a 2003, na coluna “Um mestre japonês” do “Jornal Nippo-Brasil”.
O que mais apreciei na Antologia foi a escolha do tom e da forma. Minimalismo é a palavra-chave. Sua tradução poderia ser modéstia, adequação de registro ao original, recusa ao brilho fácil, ausência de ego, delicadeza.
Edson não se deixou engessar pela forma. Em vez de buscar manter alguma semelhança com a métrica do haiku, optou por buscar a naturalidade da expressão. Isso, porém, não significa dar forma sintática completa, analítica, à frase. Edson consegue o mais difícil e, do meu ponto de vista, o essencial na tradução do haiku para o português: manter ao mesmo tempo a naturalidade, o coloquialismo e o aspecto lacunar, que deriva principalmente da composição por justaposição. Além disso, é sensível uma preocupação extra; a de preservar, quando possível, a ordem de apresentação dos elementos que constituem o haicai.
O autor optou por não inserir notas, não situar os haicais, nem suprir informações contextuais ou literárias que poderiam ajudar no entendimento. E creio que fez bem, porque a forma livre que adotou lhe permite a flexibilidade necessária para que o próprio poema, graças a uma sábia escolha de palavras e forma de apresentação, se sustente. De mais a mais, a maior parte dos haicais que ele escolheu são clássicos, muito comentados em outras obras e em artigos da internet.
Com este livro, Edson completa o seu triátlon: um livro de estudos sobre o haicai, um livro com os haicais de lavra própria e um livro de traduções de haicais dos grandes mestres – estudo, tradução, composição. E o completa em grande estilo! Estou seguro de que a publicação desta antologia constitui um momento especial na história do haicai no Brasil.