Poesia e resistência - Depoimento
Este texto, redigido em novembro de 2011, foi publicado em LyraCompoetics
(http://www.lyracompoetics.org/pt/poesia-e-resistencia/?i=79)
Pergunta: A poesia é uma forma de resistência? Sempre,
por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos,
culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?
Resposta:
A
possibilidade de se apresentar esta questão já nos traz um caminho de resposta,
pois não creio que essas mesmas perguntas se formulassem com tanta clareza para
as outras artes. Por exemplo, faria sentido manter a pergunta tal e qual,
substituindo apenas “poesia” por “música” ou por “escultura” – e, dentro do domínio
das artes da palavra, por “romance”, ou “conto”, ou ainda “teatro”. No caso da
música, é certo que seria importante particularizar de que música falamos:
música popular, música pop, música erudita, música experimental, música étnica
etc. Já no caso da escultura e da pintura, não saberia como determinar melhor
os termos, de modo que a questão pudesse parecer, como a que deu origem a esta
resposta, razoável. Mais notável é a dificuldade de aplicar a pergunta a outras
modalidades literárias: “o romance é uma forma de resistência?”; “o teatro é
uma forma de resistência?”. Nestes casos, mais do que a dificuldade de
delimitar os termos (romance de terror, romance de amor, romance social,
romance policial etc) impõe-se o estranhamento da pergunta: quem a formularia,
e em que situações? Já no caso da poesia, parece natural a indagação, mesmo que
não restrinjamos o sentido do termo. E quando o restringimos, como o fez há
mais de 30 anos um ensaísta preocupado com o tema, Alfredo Bosi, é apenas para
especificar a maneira própria de um tipo de poesia constituir resistência ao
que seria o mundo hostil do capitalismo.[1]
O exemplo de Bosi é interessante não apenas porque a poesia é identificada, nos
tempos modernos a resistência, mas também porque – como implicitamente
reconhece que há poesia integrada, não resistente – é a resistência que passa a
ser, para ele, a senda da “verdadeira poesia”. Ou seja, identificar poesia e
resistência é também uma forma de qualificar. A “verdadeira poesia” é
resistência; a falsa ou a não-poesia é aquela a que falta resistência.[2]
E, portanto, o verdadeiro cinema seria o de resistência, a verdadeira
arquitetura, o verdadeiro romance etc. O que é o mesmo que dizer que, no
limite, a arte em geral, na sociedade capitalista, é resistência. Ou ainda que
só é verdadeira (ou contemporânea, no sentido de situar-se corretamente no seu
tempo) a arte que consistir em resistência.
Se adotasse
esse ponto de vista, responderia que sim, com a modalização necessária: que a
verdadeira poesia é resistência, que na modernidade ela o é por definição, em
qualquer contexto. Ou então não é arte. Ou seja, voltando ao mesmo ponto: a
arte é resistência. Tese difícil de demonstrar, quando pensasse em casos
concretos: a arte de Picasso é resistência? E a de Andy Warhol? O cinema de
Hitchcock e Bergman? E o de John Ford? Os edifícios públicos de Niemeyer e as
casas de Gaudi? A música dos Stones e a de Keith Jarrett? A literatura de
Somerset Maugham e de Gabriel Garcia Marques? Não que fosse impossível, mas
demandaria tal elasticidade do conceito de resistência que ele se tornaria
inútil, ou então obrigaria a uma seleção drástica do âmbito do artístico,
especialmente no que diz respeito às artes de apelo mais popular, como o cinema
e a música. Na verdade, o que tal operação significaria, no meu caso, é que eu
trataria de usar o conceito de resistência (ampliando-o e modalizando-o
conforme a necessidade) para atribuir verdade aos objetos que julgo
interessantes ou que estão sacralizados pela tradição. Só não seria assim se eu
dispusesse de um ponto fixo de referência, sempre igual a si mesmo, que pudesse
ser um aferidor da verdade e do reto caminho – a mente de Deus, por exemplo, ou
a “essência humana”, apenas momentaneamente desvirtuada pelo capitalismo.[3]
Como não disponho, não posso responder nesses termos.
Prefiro, por
isso, pensar no que a apresentação de uma pergunta como a que estou tentando
responder significa. A começar pelo fato, a que acima me referi, de que ela não
é usual sequer no campo de estudos das outras artes da palavra – exceto se
pensarmos no conjunto delas: “a literatura é resistência?” –, mas nesse caso,
imagino que a poesia esteja subsumindo os demais tipos de arte recobertos pela
palavra “literatura”. E a terminar pela
suposição, que ela implica, de uma unidade da “poesia” que dispense essa
palavra de qualquer qualificativo. Passando pelo fato de que a modalização das
perguntas subsequentes à primeira demonstram que a expectativa de resposta a
ela seja positiva.
Minha
intuição é que temos de ter um raciocínio de mão dupla: perguntar se a poesia é
resistência é também perguntar se há resistência à poesia em nossa sociedade. E
se a afirmação de uma não implica a resposta de outra. Se fizermos essa
pergunta, porém, nos deparamos com a verdade de que não há resistência a todo
tipo de poesia, mas apenas a alguns tipos.
Quanto à
resistência mútua, João Cabral de Melo Neto, em textos do início dos anos 1950,
apresentou um quadro muito claro.[4]
Para ele, a responsabilidade principal pela grave questão do abismo que julgava
abrir-se entre o poeta e o público residia na forma e alcance do típico poema
moderno, fechado ao leitor e de temática restrita. A resistência à poesia era,
assim, uma resposta à inadequação do poema. Sua proposta de superação do
impasse era que os poetas buscassem a comunicação com o leitor, fazendo poemas
mais adequados aos tempos modernos, valendo-se inclusive das novas formas
massivas de difusão da palavra, como era o caso do rádio. Com essa mesma
preocupação nasceu também o movimento da poesia concreta brasileira, que
buscava, num primeiro momento, a integração no universo dos produtos industriais
e no mundo moderno, mas que em breve refluiu para a típica posição de
resistência ao público, cujo gosto ou formação seria incapaz de gerar uma recepção
positiva à poesia, e passou a ocupar o lugar clássico da vanguarda de produtora
de poesia para um público futuro ou para poetas que preparariam esse público
ainda inexistente.
Mas não nos
devemos iludir: a falta de integração – ou de sucesso de público, para usar uma
palavra crua – era de apenas um tipo de poesia: aquele que merecia a
consideração crítica. Porque sempre houve poesia de grande receptividade, à
qual normalmente se negou (e ainda se nega) o caráter de arte séria ou mesmo de
arte. Basta lembrar, como contraponto à tese da incomunicabilidade da poesia no
século XX, entre outras referências possíveis, as enormes tiragens de J. G. de
Araújo Jorge (seu livro Amo!, de
1938, vendeu 80.000 exemplares) e da poesia psicografada por Chico Xavier (seu Parnaso de Além-Túmulo vendeu mais de
100.000 cópias – e continua em catálogo).
Essas reflexões
trazem para primeiro plano uma forma de resistência que caracteriza a poesia
moderna canônica que merece ser destacada: a resistência à perda do valor de novidade,
ao valor de estranhamento que a linguagem poética deve ter para ser reconhecida
como tala “resistência” de fato faz parte da definição do tipo de poesia que
identificamos como significativa e contemporânea, mas num nível complexo, no
qual se combinam a recusa à repetição e a afirmação da autonomia do discurso
poético. Ao mesmo tempo, suspeito de que a afirmação da autonomia tem sido
muitas vezes confundida, de modo simplório, com a eficácia de estratégias que
visam apenas provocar a resistência do público mais amplo.
Ainda uma
última consideração – que apenas reafirma a minha incapacidade de responder às
perguntas: a louvação da poesia como resistência é um dos grandes temas da
literatura e da crítica moderna. Não espanta que ela tenha logo passado de tema
ou descrição a prescrição. Nem que o caráter prescritivo se imponha, pois é um
dos requisitos para a postulação de contemporaneidade – importante valor,
qualificativo a que cada vez uma gama menor de produtos parece ter direito em
nosso tempo.
Por fim, no
que diz respeito à minha prática poética, percebo (também ao responder a este
questionário) que há nela uma resistência de fundo: uma resistência a
programas, à injunção de fazer sempre o novo a partir de um traçado histórico
que define uma linha evolutiva, à ideia de que o leitor comum é dispensável ou,
em princípio, inepto para dar conta da boa poesia, ou à proposição de que o
mundo contemporâneo seja mais hostil à poesia do que qualquer outro mundo, bem
como ao jargão crítico-poético trazido para dentro do poema ou à busca de
procedimentos constantes, que funcionem como uma marca registrada ou uma
garantia de procedência do produto. E já agora, no que toca a este momento, uma
resistência à ideia ou bandeira da literatura como resistência. Ou seja, termino
por perceber que possuo uma paradoxal resistência à ideia de resistência.
E é tudo
o que, como poeta e como estudioso da literatura, me ocorre dizer neste momento.
Paulo Franchetti
[1]
Refiro-me a Alfredo Bosi, que num artigo denominado precisamente “Poesia
resistência” (título no qual a ausência de conectivo parece assimilar
diretamente os dois termos), assim descreve “os caminhos de resistência mais
trilhados (poesia-metalinguagem,
poesia-mito, poesia-biografia, poesia-sátira, poesia-utopia)”. Cf. O ser e o tempo da poesia. São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1977, p. 147.
[2]
Idem, p. 151.
[3]
Bosi refere a frase de Marx, em que a religião é descrita como “realização
imaginária da essência humana”, e acrescenta: “O que parece uma definição
totalizante da arte.” Idem, p. 176.
[4]
“Poesia e composição” (1952), repr. em Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, pp. 721 e ss. E “Da função
moderna da poesia” (1954), idem, pp. 765 e ss.
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