quinta-feira, 10 de julho de 2025

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO



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Publiquei ontem uma breve narrativa em 3 versões. Qualquer leitor de Guimarães Rosa percebeu logo que se trata de um decalque do seu estilo. O que talvez nem todos tenham adivinhado é que o texto foi inteiramente escrito por IA.
Foi assim: há alguns anos eu publiquei um livro intitulado “O sangue dos dias transparentes”. Composto de pequenos contos, formava o desenho de uma vida. Da minha, em grande parte, pois muitas histórias eram autobiográficas. Inclusive uma que falava de um menino e um urubu – a minha história com o urubu.
Agora, quando postava comentários sobre cancelamento de um concurso por conta de haver muitas narrativas supostamente escritas por IA, fiz um exercício. Submeti ao ChatGPT duas páginas de “Grande Sertão: Veredas”, pedi que fizesse uma análise do estilo e depois contasse, naquele estilo, a história de um menino que comanda um urubu e vê, para seu espanto e terror, que a ave obedece.
O resultado me pareceu muito impressionante.
ChatGPT compôs uma narrativa que me soa melhor do que o meu conto (tirando o fato de o estilo ser um pastiche). As imagens que a máquina construiu, as frases que compôs, as alusões que fez, o enquadramento das ações, a consistência da linguagem e do tom, o andamento da narrativa – tudo ótimo.
Em seguida, pedi que estendesse a narrativa para 500 palavras. E, por fim, para 200.
Fiz ainda um teste: submeti a primeira narrativa a um programa de detecção de IA. Ele informou que o texto era 100% humano.
Tudo isso permite entrever o que será o futuro da literatura. E também que o que é realmente importante, no uso da IA, é saber formular o comando. Apresentar bons comandos é uma habilidade que será cada vez mais bem recompensada. Será mesmo uma habilidade vital.
E temos de nos acostumar com a ideia de que, por mais que evoluam os programas de detecção de IA, um bom comando consegue iludi-los.
Nesses textos gerados pelo ChatGPT não fiz nenhuma intervenção. Mas poderia fazer várias. E, se fizesse, sendo meu o prompt e sendo minhas as correções de rumo e de texto, de quem seria a autoria?
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Para quem não viu a postagem original, reapresento os textos:
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Nem isso. O que eu vi não se explica tão ligeiro não, nem se quer entender. Por mim mesmo, que nem menino fui direito. Mas teve dia. Dia que ele, menino menor de calça de elástico frouxo, deu comando de boca a um urubu — e o bicho obedeceu. Juro. Vinha preto de asas abertas, como noite que escolhe pouso. E o menino, sem saber de reza nem de demônio, disse: “Vai ali!”. E foi. Foi o urubu e foi também o susto, que cresceu na cara dele mais que bigode em homem feito.
Que ele saiu correndo? Saiu. E chorando. Chorando não de medo do urubu, que ave dessas só come o que já morreu. Mas de se saber mandante. Dali pra diante, quis mais nada com céu, com ave ou com ordem. Cresceu doente de silêncio, miúdo de alma, com medo de dar ordem até pra sombra.
Disso se diz: menino que fala com urubu vira profeta ou vira louco. E como o pai dele era calado e a mãe sumida no tempo — não se soube se foi feitiço ou linhagem. O povo fala. Mas fala baixo, como quem chama coisa que não deve atender.


Uma versão estendida – 500 palavras

Nem isso. O que eu vi — ou ouvi de quem viu — não se joga fora com riso de descrença. Nem se guarda como coisa segura, que a lembrança é bicho que rói pelos cantos e depois vira assombração. Pois foi assim: um menino, desses que ainda não encostaram peito em mundo, se achegou numa pedra de sol, olhos postos num urubu.
Era um urubu só, mas parecia muitos. As asas, estendidas, dava sombra que movia. Ele veio pairando como quem cheira o tempo, e o menino — que até então era só menino, sem mácula nem poder — falou: “Vai ali, na cruz da estrada!”
E o bicho foi.
Foi mesmo. Sem trégua, sem rodeio. Fez uma curva de vento e despencou na direção exata do dito. Foi. Só que aí, o menino, que não esperava coisa obediente, virou bicho também. Não ave, mas gente com medo do que tem dentro. Correu. Correu de si, das asas, da palavra dita que virou ordem.
Nunca mais quis saber de dar comando. Nem a cachorro dizia "senta". Nem a passarinho jogava milho. Tinha medo de querer — porque querer, entendeu depois, era já mandar. E mandar, aprendeu cedo, era perigoso.
O povo dali falou, cochichou. “É linhagem”, disseram os mais velhos. “A mãe dele, antes de sumir na várzea, tinha olho de ver mais do que a vista deixa.” Outros diziam que não: “É assombro, menino desses precisa é de oração forte e amarrado com cipó de São João.” O padre não quis benzer. O pai, calado feito formigueiro de noite, só acenava com cabeça de não saber.
Passaram-se tempos. O menino cresceu em silêncio. Furtava palavras como quem rouba fruta em quintal de viúva. Se alguém lhe perguntava coisa, respondia só com os ombros. Na escola, lia sem som, escrevia só com letra de bastidor — trêmula e escondida. Disseram que não aprendia. Mas o que se dava era o contrário: sabia demais, sabia além. Só não dizia.
Teve um dia que outro urubu passou, desses de asa larga e olho de tempo. O menino — que já era moço — sentiu no peito um sopro. Mas abaixou os olhos. Fingiu que não era com ele. Nem olhou. Nem pensou. Porque pensar, ele sabia, às vezes chamava.
E o que se diz até hoje — isso entre um gole e outro de café no alpendre, quando o tempo fica manso e a conversa corre por si — é que o moço vive, sim, ali perto do riacho. Mora sozinho, casa de barro coberta de planta. Dizem que de vez em quando um urubu pousa no telhado e ele nem liga. Finge. Mas seu olho brilha, meio de lado. Como quem escuta sem querer. Como quem espera o dia em que vai, enfim, falar de novo — e aí, ninguém sabe o que pode acontecer.


Outra, mais compacta – 200 palavras

Nem isso. O que se conta é que um menino, desses de olho calado, um dia mandou num urubu. Mandou com palavra só: “Vai ali, na cruz da estrada.” E o bicho foi.
Foi como se já soubesse. Sem demora nem dúvida, fez volta no ar e desceu. Aí o menino — que até então era só menino — fugiu. Não do urubu, mas de si.
Dali em diante, nunca mais mandou em nada. Nem em cachorro, nem em sonho. Tinha medo de querer, porque achava que querer era igual a ordenar, e ordenar dava nisso: coisa obedecer.
O povo falava: “É linhagem de feiticeira.” Outros diziam que era assombro. O pai não dizia nada. A mãe sumira no tempo.
Cresceu mudo, de alma presa. Se um urubu passava, ele virava o rosto. Mas um dia, um pousou no seu telhado. Ele fingiu que não viu. Mas os olhos brilharam.
Dizem que mora sozinho, na beira do riacho. Espera, talvez, o dia de falar outra vez — e por isso ninguém chega muito perto.
Que palavra dita demais vira vento. Mas palavra guardada demais vira bicho.

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