segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Poesia da natureza – a aclimatação do haiku tradicional no Brasil

          

            O haicai é uma das formas mais populares de poesia no Brasil hoje. A partir de um núcleo formado por imigrantes e descendentes diretos de imigrantes, localizado em São Paulo, muitos outros foram se constituindo. Seguindo a denominação da célula-mater, o Grêmio Haicai Ipê, denominam-se também grêmios. 

           Nasceram esses grêmios principalmente da ação, por assim dizer, evangelizadora, desenvolvida por Teruko Oda, que deu oficinas pelo país afora e estimulou a continuidade do trabalho de seus alunos mediante a formação dessas agremiações.

            Teruko Oda é uma excelente poeta. Quem quiser conhecer a sua produção pode ver uma amostra muito significativa num livro publicado pela editora Escrituras, intitulado Furusato-no-Uta/Canção da terra natal. Trata-se de um texto misto de poesia e prosa, nos moldes dos diários poéticos japoneses, que faz retornar o haicai a uma de suas origens, a obra de Matsuo Bashô.

            Teruko é nissei e tem, com o haicai, uma ligação pessoal importante: é sobrinha e discípula de Goga Masuda (1911-2008-), que foi um dos idealizadores e principais orientadores do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 1987.

            Masuda, por sua vez, foi discípulo de Nenpuku Sato (1898-1979).

            E aqui vale uma nota histórica e genealógica.

            No Japão, a partir da restauração Meiji, a influência ocidental se espalhou de forma avassaladora na literatura e nas artes em geral. 

            Para fazer frente ao que consideravam uma ameaça à nacionalidade e uma perda da identidade cultural, alguns escritores e artistas se empenharam na preservação das artes japonesas tradicionais. 

            Um deles foi Masaoka Shiki (1867-1902), poeta que se dedicou a promover a prática de um tipo de poesia até então denominada hokku, ou haikai-hokku. Por esse termo se designava uma composição de dezessete sons, de caráter objetivo, estruturada por justaposição de elementos e centrada numa palavra que faz referência unívoca a um determinado momento no suceder das estações do ano. Esse pequeno poema normalmente era parte de uma composição maior, coletiva, ou vinha acompanhado de um desenho.

O grupo reunido à volta de Shiki, sua escola, terminou por ser referido pelo nome da revista em que divulgava a sua produção, Hototogisu (nome japonês do pássaro cuco). 

Fundada em 1897, a Hototogisu existe até hoje e foi responsável pelo renascimento do haicai japonês em novas bases. 

Por iniciativa do mestre, a forma poética passou a ser denominada “haiku” – nome que ele criou pela contração de haikai-hokku – reforçando assim uma das bases da sua ação: afirmar o terceto como obra independente da prosa ou do desenho com que tradicionalmente fazia conjunto, ou seja, afirmá-lo como forma poética esteticamente autônoma, capaz de concorrer com as recentes formas importadas do Ocidente.

Um dos expoentes da Hototogisu foi Takahama Kyoshi (1874-1959), que sucedeu Shiki na liderança do grupo, aumentando o número de seguidores.

E aqui reatamos o fio da nossa história, pois foi através de um dos discípulos de Kyoshi, Mizuho Nakata (1893-1975), que Nenpuku Sato se iniciou no haicai da Hototogisu.

Em 1927, Nenpuku tomou um navio para o Brasil. Tinha 29 anos de idade e já era bem conceituado na arte do haiku. Vinha tentar a sorte na agricultura, no interior de São Paulo e ao partir ouviu de seu mestre: "Vá e semeie o haiku na nova terra".

Nenpuku empenhou-se a vida toda nessa missão. Divulgou o haicai por quatro estados brasileiros e ao longo dos anos granjeou cerca de 6000 discípulos que, como ele, escreveram no idioma japonês. 

Essa produção, que foi ampla, pujante e de grande relevância para a colônia, infelizmente é até hoje desconhecida dos brasileiros que não dominam o idioma japonês. Também é quase desconhecida dos japoneses e seus descendentes no Brasil, pois não foi  estudada sistematicamente na universidade, nem recolhida em volume, restando dispersa em jornais e arquivos particulares. 

Ainda na década de 1970, muitos seguidores de Nenpuku Sato eram vivos e no aniversário de 20 anos da sua morte e 40 do falecimento de Takahama Kyoshi, 100 dos remanescentes se reuniram no bairro da Liberdade para uma sessão de composição de haicais. 

O principal problema enfrentado por Nenpuku Sato e seu grupo, na aclimatação do haiku ao Brasil, foi como vincular a observação pontual objetiva, que caracteriza o haiku, a um determinado momento na sucessão das estações do ano. 

Diferentemente do Japão, onde as atividades humanas e os fenômenos meteorológicos estavam codificados e sedimentados pela prática poética secular e eram, portanto, de alcance geral para todas as regiões do pequeno arquipélago, aqui a extensão do país gerava experiências muito diversas. 

O haiku brasileiro (designemos assim o poema composto em japonês, nos moldes da Hototogisu) teve como primeira tarefa de aclimatação a necessidade de escolher e fixar termos relacionados à sazonalidade brasileira e à cultura do país: os kigos (palavras de estação). 

Sendo uma arte que tinha no registro objetivo uma das pedras de toque, não fazia sentido utilizar os kigos japoneses. Era preciso não só descobrir os kigos brasileiros, mas ainda fixá-los nas bases métricas tradicionais, o que trazia uma dificuldade a mais, pois era preciso encontrar uma forma convincente e conveniente de grafar, em japonês, as palavras brasileiras ou latinas que designavam elementos botânicos e meteorológicos, bem como os feriados religiosos e as datas nacionais. Mesmo objetos de uso comum precisavam de transliteração, como, por exemplo, o lampião, que vi referido num haiku como “aradin” – ou seja, Aladdin, que era a marca mais conhecida.

Nenpuku enfrentou com muito sucesso essas dificuldades, mas lhe faltou um último passo para semear o haiku no Brasil: escrever em português. Com o envelhecimento da população imigrante e o desinteresse dos jovens nas práticas tradicionais, essa seria a única maneira efetiva de radicar o poema japonês na sua nova terra.

Essa missão vai ser assumida por Masuda Goga, que juntamente com Teruko Oda trabalhou em duas frentes: na criação de um agrupamento poético dedicado à prática do haiku em português e na elaboração de um catálogo de “kigos” brasileiros. 

Aqui cabe uma nota terminológica: se é conveniente e correto utilizar o nome haiku para designar o poema composto em japonês no Brasil, segundo os ditames de Shiki, é também conveniente e correto utilizar o nome haicai para nomear as várias formas de apropriação do haiku no Brasil, a começar por Guilherme de Almeida e incluindo todas as demais formas, inclusive a tradicional, representada pelo grupo de Masuda Goga.

Retomando agora a nossa história, vejamos em que consistiu o trabalho de Goga.

O primeiro ponto a considerar é que a criação de um agrupamento – no caso do Grêmio Haicai Ipê – é essencial para restaurar um aspecto do haicai tradicional: a sua composição sob a supervisão de um mestre, um orientador. Os grêmios funcionaram e funcionam aqui nos moldes japoneses: estabelece-se um tema (no caso, um kigo); os integrantes escrevem; os haicais são lidos sem indicação de autoria e os membros vão escolhendo os que mais lhes agradam; escolhidos os mais interessantes, o mestre ou orientador os comenta, valorizando os aspectos que julgar adequados, e apontando soluções outras para eventuais problemas.

Para que a prática seja uniforme e conforme à tradição, estabelecem-se critérios formais. No caso, à duração das sílabas japonesas substituiu-se a sílaba poética contada à nossa maneira, e aos cortes da forma justapositiva original se fez equivaler o verso, espacialmente definido – do que resulta um terceto imparissilábico de 5-7-5 sílabas poéticas contadas até a última tônica de cada verso. E torna-se obrigatório que o tema (o kigo) indicado para a composição compareça explicitamente no terceto.

Daí a importância de haver uma listagem de kigos e – como não é nossa tradição associar sistematicamente estados de espírito a fenômenos sazonais – a necessidade de definir não só a sua ocorrência e enquadramento sazonal, mas ainda o “clima”, o “mood” associado a cada um.

Nesse ponto, creio que vale a pena esclarecer a importância do kigo para o haicai tradicional. 

O kigo – a palavra de estação  - tem duas funções principais: uma função “temática” e uma função “técnica”. 

Tematicamente, o kigo vincula o poema a um momento preciso na sucessão das estações, por meio do registro objetivo. Nesse sentido, o haicai é poesia da natureza. 

Tecnicamente, o kigo responde pela eficácia do breve poema, pois permite conotar um estado de espírito de modo muito econômico. Por exemplo, “flores” é um kigo em japonês, porque em poesia designa uma flor específica, a de cerejeira, que representa o esplendor da primavera. Sua simples menção evoca a contemplação da florada em atividades diurnas e noturnas e conota a ideia de transitoriedade, porque a observação da florada de cerejeira é também a observação do seu despetalar. Da mesma forma, a palavra “lua”, sem qualificativos, refere a lua cheia de outono. O campo seco, as primeiras chuvas de primavera, o capim alto, as primeiras neves – cada uma dessas locuções conota um preciso momento sazonal e um determinado estado de espírito, materializado em práticas culturais específicas.

            Assim, o poeta de haicai, com uma pincelada, estabelece o mood de base tradicional, que nas duas pinceladas restantes tratará de acentuar, modalizar ou mesmo contradizer.

            A importação dessa técnica, já se vê, não tem sido tarefa simples nem fácil. Não só porque a nossa tradição poética não enfatiza tanto a notação dos fenômenos naturais, mas também porque não temos associações imediatas com eventos sazonais, a não ser alguns poucos, derivados principalmente das festas e feriados religiosos.

            No Brasil, o kigo é ainda dificultado pela enorme variação longitudinal e latitudinal. O inverno, por exemplo, é uma coisa para o habitante das serras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e outra para o habitante da Amazônia ou dos cerrados do Centro Oeste. O regime dos ventos varia igualmente, assim como o das águas da chuva e o das tempestades.

            Um problema enfrentado por um praticante do haicai tradicional é, portanto, a falta de conhecimento dos fenômenos sazonais de uma região por habitantes de outras. A dificuldade mais relevante, porém, é o fato de não estarmos acostumados a conhecer e usar muitos nomes de plantas e animais. Diferentemente da cultura japonesa, que se esforça para nomear e descrever cada flor, árvore ou arbusto – por menos importantes que sejam –, para o brasileiro médio o que não é flor é mato. E soam tão estranhas num poema as designações regionais de plantas e animais, quanto seus nomes científicos. Por exemplo, neoglazióvia, espatódea, muirapitanga ou mesmo sibipiruna. 

Além disso, não associamos nenhum estado de espírito a nomes comuns de plantas ornamentais, como ciclâmen, antúrio, samambaia, avenca ou crisântemo. O mesmo sucede no reino animal. Além dos domésticos, poucos são conhecidos e observados em base cotidiana. Por isso, os bichos, quando não são apenas bichos, parecem conformar-se em poucas categorias e entre os citadinos a desorientação é geral. Por exemplo, Paulo Leminski e Carlos Verçosa confundem (talvez por amor ao som e à paronomásia) a rã com o sapo. Para um japonês é claro que quem pula na água ao menor ruído é a rã, e que o sapo é um animal terrestre, em poucas ocasiões retornando à água de onde veio. E mesmo os fenômenos migratórios, tão importantes para a poesia do hemisfério norte ocidental e oriental, têm para nós – salvo algumas exceções – pouca ressonância literária.

Conscientes disso tudo, Teruko e Goga se dedicaram por anos a coletar e exercitar em haicais os kigos brasileiros de todas as regiões do país. Desse trabalho nasceu a primeira (e única) kigologia brasileira, publicada em volume quase dez anos após a formação do Grêmio Haicai Ipê, em 1996: Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

Composto de três partes, o livro traz primeiramente um estudo e uma catalogação dos kigos brasileiros, ou seja, inúmeras palavras relativas às especificidades de cada estação em todas as regiões do país: animais, festas populares e religiosas, flores e vegetais vários, comidas sazonais, fenômenos climáticos. 

A especificidade desse livro brasileiro em relação aos catálogos japoneses, é que lá os catálogos são sistematizações de algo que se definiu na prática, ao longo de séculos. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. 

Daí que a segunda parte da kigologia brasileira seja uma antologia, na qual vários desses kigos talvez compareçam utilizados pela primeira vez, em haicais escritos pela organizadora, com o fim expresso e exclusivo de exemplificar o texto descritivo. 

Aqui, portanto, evidencia-se a grande dificuldade dessa empresa e desse livro: uma enorme porcentagem das expressões alinhadas como kigo não se sedimentou a partir da prática poética – como no Japão –, mas nasceu de um esforço racional de identificação ou mesmo de criação dos kigos regionais e nacionais. Por conta disso, muitas dessas expressões correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e o lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô.

É possível que a prática dos grêmios espalhados pelo Brasil, orientada pelo catálogo dos kigos brasílicos, termine por incorporar à linguagem poética comum os muitos termos sazonais que por ora parecem exóticos ou pouco coloquiais. Mas também é possível que, pelo contrário, se crie uma espécie de dialeto, que faça sentido apenas para o grupo dos praticantes.

A trajetória do haicai brasileiro tradicional ainda é muito breve e está, por assim dizer, em sua terceira geração. É difícil fazer uma previsão de qual será o seu futuro. Entretanto, uma coisa já é certa e constitui conquista singular: os muitos grupos de haicai espalhados pelo país e a divulgação do haicai tradicional por meio das mídias sociais já produziram e produzem um amplo, verdadeiro e literal (por conta das reuniões, concursos e eventos presenciais de âmbito estadual e nacional)  movimento poético. 

Se desse grande conjunto de agremiações e poetas não resultar uma produção poética significativa no quadro geral da literatura contemporânea brasileira, em termos qualitativos, ao menos já se construiu aqui uma animada forma de produção e sociabilidade poética, à volta do que podemos denominar “poesia do kigo”. 

Essa foi a principal conquista até agora na aclimatação do haicai à língua portuguesa no Brasil: mantê-lo, tal como no Japão, como prática social coletiva de observação e registro dos ciclos sazonais. Resta agora aguardar para ver que frutos produzirá esse notável e consistente esforço de construção de uma nova “poesia da natureza” brasileira.




[Texto lido no congresso Nature and narrative. Approaches to a Brazilian landscape -  Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 13 de janeiro de 2025.]

sábado, 4 de janeiro de 2025

Droga de prosa, droga de poesia

Minha postagem de ontem sobre o artigo provocativo do Alcir falava do vício da leitura. Tomei o cuidado de me declarar não tão viciado quanto ele, de modo a ter uma prudente distância analítica do fenômeno. Depois, porém, me pus a pensar em algo inesperado. Ainda no domínio do vício. É que essa compulsão pela próxima dose, essa imagem do leitor insaciável, voraz (sempre me impressionou, desde que a ouvi pela primeira vez, na juventude, utilizada como elogio de um professor a outro), do leitor que fica em síndrome de abstinência se confinado num espaço sem livros – essa compulsão viciosa, dizia, parece acometer um tipo específico de leitor literário: o leitor de prosa, e, mais especificamente, o leitor de romances. O leitor literário que se dedica a outro gênero parece ter comportamento diferente. Refiro-me ao leitor de poesia. Não conheço nenhum que se lance infinita e imediatamente de um livro de poesia a outro, que leia sofregamente (outra imagem comum) um poeta após o outro. Os leitores contumazes de poesia que eu conheço são poucos e alguns deles exibem uma característica inesperada: se aborrecem facilmente com o objeto do desejo. Talvez isso tenha a ver com o fato de que os leitores fanáticos por poesia são também, na maior parte, praticantes da arte. Alcir disse que até uma droga de livro de ficção pode satisfazer a sede da droga literária. E eu sei que é verdade por experiência própria adolescente. E sei também, por experiência e leituras, que é possível ter enorme satisfação fora do ringue da assim chamada alta literatura. Se não erra a memória, Fernando Pessoa dizia que poucos prazeres se equivalem a um livro com as aventuras de Sherlock Holmes, acompanhado de um bom café e fumo forte. Mesmo histórias de detetive de segunda classe já me deram bastante prazer, assim como aqueles livrinhos de espionagem que eram vendidos em bancas de jornal. Já com a poesia isso seguramente não acontece. Um livro de má poesia é, para o leitor fissurado no gênero, algo da ordem do repulsivo, exceto se for de lavra própria. Então me pus a pensar. Ou a poesia não é literatura, como propunham – cada qual à sua maneira – Verlaine e Pound; ou a poesia é uma droga muito mais poderosa, cujo efeito dura demais e cujo ponto de não retorno por overdose é mais facilmente atingido. Talvez seja por isso que às vezes duas ou três linhas de palavras me fazem fechar um livro e me afastar dele momentaneamente ou para sempre, conforme sejam muito ruins ou muito boas. Alguns versos, quando li pela primeira vez, ficaram como uma pedra de maravilha no estômago. Uma pedra que precisou se dissolver aos poucos, até que eu pudesse voltar à página e ir adiante, sentindo-me capaz de assimilar o golpe. Outros versos, mesmo se lidos uma vez só, me surgiram no meio do dia ou no meio da noite, de repente, recortando ou iluminando uma situação ou cena, dando-lhe forma e às vezes sentido. É certo que na prosa há também essas pedrinhas, que a gente pode destacar ou não consegue esquecer. O que só reforça a hipótese de que a poesia é uma droga concentrada, de alto grau de pureza: uma bomba que abala de golpe o cerebelo ou qualquer outra parte mais poética da caixa do crânio. Por isso mesmo a má poesia tende a ser insuportável. É como droga diluída ou falsificada, farinha em vez de pó de dar barato, ou, para encerrar com uma imagem rude, cocô de vaca seco em vez de erva da boa.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Sobre o gosto da literatura segundo Alcir Pécora

 

Meu amigo Alcir Pécora acaba de  publicar no “Rascunho” um artigo terrível. Um daqueles textos aos quais não se pode ficar indiferente.

Não sei se o título foi escolhido por ele ou pelo editor: “O gosto da literatura”. Mas é bem ajustado ao que vem a seguir. Assim também a linha fina, aquela chamada sob o título, que é um resumo brutal ou um apontar de dedo para o miolo, foi bem escolhida: “Leitores de literatura não estão interessados em adquirir mais conhecimento sobre qualquer outra coisa.” 

Estamos ainda no nariz do texto, que não é de cera, e provavelmente o leitor de boa intenção está já no inferno: primeiro porque a linha fina mostra que no título não se anuncia nenhuma defesa do gosto, da necessidade de construção do gosto. Muito menos elogio do bom-gosto. Se o leitor que lê literatura não está interessado em nada além dela, então o gosto do título se afirma como prazer, como gozo – ou, para provocar um pouco mais, gostosura.

Mas no artigo em breve o gozo, o prazer da literatura, será descrito em registro mais baixo do que o implicado no uso de uma palavra  como fruição. Diz ele: “O leitor habitual de literatura simplesmente deseja, a cada vez, com nuances próprias, a dose suficiente de prazer para fazê-lo retornar à cena de origem: a biblioteca, a livraria, ou onde esteja a fonte dos livros, para que possa escolher um outro livro para ler.” 

É, portanto, de uma peculiar drogadição que se trata. E mesmo uma droga de um livro, para continuar na clave, é capaz de cumprir a mesma função que um sorvo de alta literatura. “até literatura ruim é suscetível de leitura boa e prazerosa”; “qualquer livrinho, qualquer ficção servem para dar algum barato.”

            No horizonte do escândalo estão situadas, como adversários fantasmais,  figuras que brandem boas bandeiras. Os profissionais das letras, em primeiro lugar. Aqueles que, segundo Alcir, afirmam que “literatura é uma forma de conhecimento, e até uma forma “superior” de conhecimento”, os que creem que o estudo da forma literária permite discernir a forma de algo mais além da projeção do conhecimento pré-formado com que se atiram ao literário.

Em coro essa gente entoa aquilo que o nosso autor denomina “o mantra edificante do conhecimento”, que serve a vários bons propósitos, inclusive o não muito edificante de justificar o próprio emprego.

Se esses são os antagonistas, o herói (com ou sem caráter) é o leitor de literatura que não quer saber de nada disso, que não está interessado em aprender nada, que lê porque sente compulsão de ler. E Alcir não se furta à expressão crua. Pelo contrário, regozija com ela: “Enfim, quem é viciado em literatura tem o mesmo tipo de fixação e dependência de qualquer outro viciado: o que eles querem é a droga, no caso, a literatura. Querem o prazer de continuar lendo”. 

            Sei do que ele está falando e  tendo a concordar de fato com tudo que diz, se penso nesse leitor viciado e não me sinto sob o jugo de alguma síndrome humanista. 

Na verdade, gosto de seguir o raciocínio, mas, quando o faço, na minha frente se posta sempre a fatídica pergunta: se a literatura não traz nenhum tipo de conhecimento específico, por que o Estado deveria continuar fazendo um investimento tão pesado na educação literária escolar? 

Algum desesperado antagonista do elogio do vício, algum apologista da instituição, poderia vir dizer que a literatura promove o aprimoramento moral. Coisa de que o Alcir não tratou. E fez bem. 

O ditado que diz que o homem que lê vale mais deve ter sido forjado num tempo em que pouca gente podia ou sabia ler. Porque basta ter vivido num departamento de leitores profissionais de literatura para constatar que ali nada se passa de modo diverso do foguetório de vaidades e festival de rasteiras que existem em qualquer departamento de qualquer outra área do conhecimento, ou mesmo em muitos ambientes de desconhecimento generalizado. Minha experiência tampouco me autoriza a afirmar que leitores profissionais e professorais tenham melhor ou mais amplo ou mais aprofundado conhecimento da vida, da psicologia, da sociedade ou do país. Nada acima da média das pessoas instruídas, eu diria.

Ia por esse caminho, quando percebi que ele talvez tenha uma falha de princípio, porque é verdade sabida e experienciada que nesses departamentos se encontram apenas alguns poucos drogaditos literários: a maioria está longe disso, bem cauterizada e protegida contra o vício.

Ao ler e reler o artigo do Alcir, por fim, me vi recordando meus próprios esforços, em alguns momentos, de responder a esta difícil questão: estudar literatura para quê? Mas não derivei para as perguntas de por que deveríamos estudar tantas outras coisas, como os dinossauros ou a teoria musical. Apenas me perguntei sobre o porquê de a literatura exigir um lugar tão destacado nos currículos escolares e outras formas (artísticas) de drogadição, não. Por fim, embatuquei num desafio íntimo: eu estaria disposto a fazer como ele? A fundir numa pequena crônica o elogio desbragado do prazer e  a negação terminante das funções transitivas da leitura literária? Talvez não, porque talvez eu não seja, afinal, um viciado como ele.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Recordando Goga



Arrumando os arquivos do computador, encontrei várias anotações sobre uma figura excepcional que tive o prazer de conhecer. Juntei alguma coisa, puxei pela memória e eis aqui:
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Conheci H. Masuda Goga logo depois do lançamento de “Haikai: antologia e história”. Foi assim: a Editora da Unicamp, que o publicara, participava da Bienal do Livro. No estande, fui procurado por um simpático senhor, que se apresentou: Douglas Eden Brotto. Falou-me então de um grupo que se dedicava à prática do haicai em São Paulo, na Aliança Cultural Brasil-Japão, e convidou-me para ir conhecê-lo. Creio que ele estava com mais alguém, mas não me recordo. Recordo-me, sim, que fui, no próximo sábado em que houve reunião. E foi lá que conheci Goga.
Goga praticara o haicai sob orientação de Sato Nenpuku, que liderava um amplo movimento de composição do haicai em japonês entre os imigrantes. Ao longo dos anos em que se dedicou a promover o haicai, Nenpuku teve cerca de 6000 mil discípulos. Mas nunca escreveu em português.
A produção de Nenpuku terminou por ser conhecida em nossa língua, traduzida, mas a enorme quantidade de haicais escrita em japonês, tendo como tema a natureza e a vida quotidiana no Brasil, parece esperar em vão por um trabalho sério e sistemático, que a reúna, estude e traduza, permitindo assim a sua divulgação mais ampla no país, bem como o conhecimento da língua dos imigrantes e alguns aspectos da sua adaptação ao clima, à flora e à fauna do Brasil.
Goga levou adiante o trabalho de Nenpuku, praticando o haicai na sua língua natal, mas dando um passo decisivo. Como foi amigo de Guilherme de Almeida e de Jorge Fonseca Júnior, empenhou-se na transposição do haicai tradicional para o português.
A tarefa não era fácil. O haicai não é somente uma forma fixa. Não é uma espécie de microssoneto, não é uma estrutura na qual se pode vazar qualquer conteúdo.
É certo que o “haicai” tem uma forma que, na vertente que é a de Goga, tradicionalista, exige um grande domínio da técnica e da língua literária. Mas antes de ser uma forma ou o produto de uma técnica, o haicai é um jeito de estar no mundo, uma maneira de olhar para as coisas. Um jeito de estar na linguagem, no sentido de que o estado de haicai pressupõe a contemplação, a experiência e a composição por impulso, segundo a impressão do momento. Mais ou menos como sair com uma câmera para fazer fotos pressupõe um jeito diferente de olhar para as coisas e de se acercar delas.
O primeiro problema que se apresentava, em meados do século XX, era compreender por que caminhos e com que sentidos o haicai tinha chegado ao Brasil. Não havia ainda nenhum trabalho sistemático sobre isso, nem em português, nem em japonês. Goga dedicou-se a recompor essa história, dando finalmente a público, em 1987, o volume O haicai no Brasil, publicado também em língua japonesa.
Nesse mesmo ano, junto com outros interessados, principalmente nisseis, fundou a primeira associação dedicada à prática de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, e logo depois, em 1993, o Grêmio Haicai Caleidoscópio, dedicado à produção de rengas (haicais encadeados) em língua portuguesa.
Foram anos de dedicação à tarefa. Goga, nascido em 1911, emigrou para o Brasil em 1929. Seu trabalho com o haicai em português se estende de 1936 até 1987, quando dá por encerrada a primeira parte do trabalho, com a publicação do livro e a fundação do Grêmio.
Ainda havia, entretanto, muito que trabalhar, para construir o haicai brasileiro em moldes japoneses. O próximo desafio era fazer a sistematização dos índices de estação no Brasil.
No Japão, a longa prática consolidou relações unívocas entre alguns fenômenos, animais, plantas e atos humanos, por um lado, e os vários momentos do ciclo das estações, por outro. A simples menção a um pássaro, por exemplo, já convoca para o poema associações que configuram não só uma estação específica, mas também um estado de espírito tradicionalmente associado a ela. A alma do haicai tradicional repousa nessas relações unívocas, pois elas fornecem a base para o desenvolvimento particular de cada poema, por meio da glosa do estado de espírito conotado, da sua contradição, da anotação de uma variante ou, em casos mais radicais, da sua negação pela ironia ou pela piada. No Japão, a codificação dessas relações é tão importante e clara que se organizam dicionários de “kigos”, isto é, palavras que remetem a um momento determinado na sucessão das estações.
No Brasil, país de vários climas e de estações menos definidas, o “kigo” sempre foi um problema. Sua sistematização, do ponto de vista do haicai tradicional, era urgente.
Com ajuda da haicaísta Teruko Oda, sua sobrinha, foi esse o próximo passo de Goga na construção do caminho do haicai brasileiro. Após muitos anos de trabalho, ambos publicaram finalmente o volume “Natureza – Berço do Haicai” (1996), o primeiro dicionário de “kigos” brasileiros.
Por conta desse trabalho, Masuda Goga recebeu, em 2004, do Japão, o “Masaoka Shiki International Haiku Grand Prize”, que é concedido a pessoas que tiveram grande destaque na difusão internacional do haicai.
Em 2008, ano em que se comemoravam os cem anos da imigração japonesa, esse homem que dedicou boa parte da vida a promover a imigração da forma do haicai tradicional nos deixou, no dia 28 de maio. Tinha 96 anos de idade.
Sua passagem foi consentânea com os ideais da poesia que praticou.
Naquele ano, ia ser lançado, pelos seus admiradores, um concurso de haicai com o seu nome, e seria realizada uma exposição de fotografias em sua homenagem. Ia também ser lançado o meu livro “Oeste/Nishi”, que Goga generosamente tinha traduzido para o japonês, completando assim um círculo: o haicai tradicional, praticado pela colônia sob a orientação de Nenpuku, aclimatado à língua portuguesa por Goga, voltava agora à língua japonesa pelas suas mãos. É certo que eu não pertencia ao Grêmio Ipê, mas também é certo que sempre tive por ele a maior simpatia. De modo que nesse sentido se pode dizer que o círculo se fechava.
Pois bem, foi quando viajava, em companhia do filho e da nora para São Paulo, vindo do interior de Minas Gerais, onde vivia seus últimos anos, que Masuda faleceu. Trazia, como sempre, a sua caderneta, onde escrevia tantos haicais. Em certo momento, olhando a paisagem, sentiu-se cansado. Disse à nora que descansaria um pouco no ombro dela. Recostou-se e adormeceu calmamente para sempre.
Na abertura dos eventos comemorativos, que incluíam o lançamento do livro, um seu retrato o representou: sorridente e feliz, como sempre o vimos e dele me lembro agora.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Haquira e o haikai

 Quando comecei a estudar o haicai, Haquira Osakabe me disse: tem de lembrar que haicai é atividade, é sociabilidade. Ele tinha um jeito oracular de se expressar. Não concatenava as ideias com clareza lógica. Ao menos, não como eu gostaria que fizesse. Em vez disso, comunicava pelo olhar, pelo meio sorriso, pelo gesto. Tinha uma forma estranha de se expressar corporalmente. Uma vez, perante uma fala enrolada e perigosa, ele mesmo se enrolou defensivamente de um modo que não compreendi à primeira vista, pois parecia que suas longas pernas, enroscadas uma na outra, eram de material plástico e não de carne e osso. Ainda o vejo assim, e com a mão tampando metade da boca, como a impedir-se de falar. Pois aquela advertência foi assim enigmática e a frase acima é o apenas a minha tradução. Hoje me lembrei dela. Estou terminando um breve texto para um congresso. Intitulei-o “Poesia da natureza – a aclimatação do haiku no Brasil”. Faz tempo que não participo de congressos, mas uma razão afetiva me moveu a responder positivamente à organizadora, que foi tão solidária com os últimos eventos da minha vida. Talvez por isso, por esse texto ser uma resposta afetiva, lembrei-me do Haquira. Mas não só: ao longo dele ressalto como florescência nova desse transplante justamente a sociabilidade dos grêmios e dos agrupamentos virtuais dedicados ao haicai. E porque o nosso haicai tradicional é uma aclimatação em linha reta do haiku de Shiki, usei o termo japonês no título. De fato, Shiki > Kyoshi > (Mizuho Nakata) > Nenpuku > Goga > Teruko Oda > “grêmios” = haiku > haicai tradicional brasileiro. E dinamizando isso tudo, a sociabilidade, o caráter coletivo, a valorização da poesia como atividade, mais do que como produto – como queria me dizer Haquira, no começo dos já longínquos anos de 1980.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Arguição: literatura digital?

 Estou agora mesmo numa atividade que há tempos não me pegava: ser membro de uma banca acadêmica. No caso, banca de uma tese apresentada em concurso para Professor Titular numa universidade federal.

As questões que abordei na  minha participação têm a ver com o que vim refletindo aqui sobre poesia e técnica, poesia digital, inteligência artificial.

Por isso mesmo, como a arguição é uma etapa pública e aberta a qualquer interessado, pensei que não haveria problema em a transcrever aqui, já que talvez ela pudesse gerar alguma conversa também neste espaço.

 

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Arguição da tese intitulada Antologia crítica da literatura digital brasileira.

Autora: Rejane Cristina Rocha 

Instituição: Universidade Federal de São Carlos

Data: 10 de dezembro de 2024

 

Prezada Rejane,

 

Lendo sua tese, reparei um ponto que me interessou pessoalmente, pois fui dos primeiros usuários de computador do meu Instituto e em casa. Também pude criar num CCVAX o primeiro fórum de discussão sobre haicai (e talvez o primeiro dedicado à literatura), em 1996. Vim para a Unicamp dez anos antes disso, em 1986, no mesmo ano em que foi lançado o Redator da Itautec. No IEL, em 1987 chegaram dois computadores de 8 bits, sem hard disk, com apenas dois drives para disquetes moles (floppy disks). Foi neles que compus, em 1987– usando o Redator  –, para maravilha de muitos, o primeiro livro do IEL inteiramente digitado. 

Assim que pude, comprei um computador Itautec, com um pequeno disco rígido de 30 megabytes E foi nessa máquina ou em uma um pouco melhor que pude, em 1990/91, instalar o WordPerfect e criar as macros que me permitiram fazer, em tempo recorde, a edição crítica do Camilo Pessanha. 

Por essa época, fui o segundo usuário do IEL a utilizar o bitnet por linha discada de 1200 bps. Como tinha uma namorada nos EUA – minha futura ex-esposa – e o BITNET (because it’s time of network) fosse muito ruim, consegui uma generosa autorização para usar a HEPNET (High Energy Physics Network).  

Com tanto entusiasmo profissional e tanto interesse pessoal envolvido, e como eu era praticamente o único usuário constante e apaixonado, logo fui designado Coordenador de Informática, sendo por um ano e tal o coordenador e praticamente o único coordenado. 

Enfim, o que quero dizer é que vivenciei, em casa ou na Unicamp, no espaço de 15 anos, todas as etapas do choque informático e internético.

Um ponto que me interessou pessoalmente, portanto, foram as reflexões sobre o tempo acelerado das mudanças no mundo da informática, bem como sobre a perda das informações, soterradas sob programas que já não funcionam ou sites dos quais a gente só tem uma imagem congelada e parcial. 

Camões já observava algo novo no seu tempo. Dizia ele que 'todo o mundo é composto de mudança,' mas que “outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.' 

Não creio exagerar ao dizer que essa aceleração do ritmo da mudança se deveu em grande parte à invenção e disseminação da imprensa. Agora, com a invenção do computador pessoal e da internet experimentamos algo semelhante ao que registrou Camões: a velocidade da mudança cresceu espantosamente. 

            Entretanto, no que diz respeito à sua tese, outra mudança se faz de muito mor espanto. É que o livro impresso representou, no seu tempo, duas coisas: acessibilidade do conhecimento e conservação desse conhecimento, pois não se tratava mais de existirem exemplares únicos. Já a informática, junto com um enorme poder de difusão, trouxe um complicador: a perda igualmente rápida da informação, por conta da obsolescência vertiginosa do software e hardware. E não só: a desativação de domínios – por exemplo, no livro impresso Tristessa, que você analisa, deparei com esta informação, na quarta capa: “O livro original você pode ler emwww.quatro.com.br/tristessa . Mas esse domínio, como vi logo em seguida, ao tentar acessar, já não existe.

            Você se debate com algo, portanto, que a gente não imaginaria no começo da aventura computacional: a perda da informação e da memória. 

Daí que o seu trabalho seja equiparado em vários momentos da tese ao de um arqueólogo. Enquanto aquele tira o entulho e varre o pó acumulado sobre os objetos antigos, você pelo contrário lida com o que, de uma perspectiva puramente utilitária, é o entulho. 

Seja como for, é mesmo arqueologia: tem de chegar ao que está enterrado, usar instrumentos de escavação (por exemplo, emulação de programas já desaparecidos) imaginar como se comportavam os seus objetos, os seus “textos”, e imaginar o efeito de poemas dos quais só se têm fragmentos e poucos testemunhos de leitura. 

Assim como o tradutor de Safo enfrenta os fragmentos na busca infinita da totalidade impossível, assim você tenta traçar um quadro compreensivo da evolução da poesia digital, a partir dos poucos registros disponíveis. 

A terminologia também é reveladora: museu, conservação, preservação. Ou seja, em certo sentido, trata-se de um trabalho de recolha arqueológica e preservação museológica.

 

            Do meu ponto de vista, a sua tese tem dois polos de tensão, entre os quais se ramificam as questões que você nos apresenta. De um lado, pensar o sentido da experimentação poética com as inovações técnicas (hardware e software); de outro, constatar repetidamente a ruína da memória dessa experimentação e os limites para a sua preservação. 

            Do primeiro polo derivam as reflexões sobre poesia e técnica: qual o sentido da experimentação? É cedência ao mercado ou uma forma de resistência a ele? 

Do segundo, a reflexão sobre a obsolescência e a função dos estudos desse tipo de arte.

 

            Minhas questões de leitura giram à volta da relação entre a literatura (ou a arte) e a técnica. Na verdade, nem são questões, são mais comentários. E eu conto aprender ao ouvir os seus comentários aos meus comentários.

 

            A primeira é esta: você em certo ponto diz que temos de concordar com a asserção de que a arte é produzida com as tecnologias do seu tempo. Eu não entendo bem o que isso quer dizer. 

Quer dizer que um autor não pode ou não deve escrever à mão hoje? Ou que mesmo a escrita à mão pressupõe hoje a máquina de escrever ou o computador? Ou quer dizer que a forma literária é determinada apenas em parte pela tecnologia? Por exemplo: o texto fica "jornalístico", como dizem os manuais sobre alguma modernidade... Mas isso é fatal? Proust, por exemplo, vai na contramão... No entanto, mesmo se admitirmos que se torna "jornalístico", isso tanto pode ser atribuído ao fato de que a literatura é produzida com as tecnologias do tempo (máquina de escrever, telégrafo para transmitir textos etc.), quanto à vontade de imitar, de incorporar – ou seja, as tecnologias podem não determinar, mas ser emuladas pela forma literária. São, portanto, questões diferentes, porque uma coisa é a arte ser produzida com a tecnologia do tempo e ser por ela determinada; outra é a arte dialogar com a tecnologia, emulá-la por meios artesanais, ou mesmo ser apenas influenciada por ela.

 

Assim também a afirmação de que hoje tudo é digital. Penso que aí temos também duas coisas diferentes. A reprodução da obra literária implica necessariamente o digital, o número. A literatura, porém, não nasce necessariamente vinculada ao dígito no nosso tempo. Ela pode continuar sendo escrita à mão ou em velhas máquinas de escrever, ou mesmo não sendo escrita, só memorizada e transmitida verbalmente.

 

Outro momento que me chamou a atenção foi quando você pareceu ver a especificidade da questão brasileira como diretamente vinculada ao menor desenvolvimento tecnológico. Eu me pergunto se seria só isso, porque eu me recordo sempre daquele texto de Antonio Candido sobre a literatura na primeira metade do século XX, no qual ele diz que entre nós a cultura letrada “clássica”, erudita, não se tinha sedimentado. E que por isso o público recém-formado era logo capturado pelos mass-media, pela arte de massas. Quero dizer, eu entendo que nós temos uma fixação na tecnologia, apesar do nosso claro atraso nesse campo, por conta justamente de entre nós o mesmo público nascente nas cidades ter sido, por assim dizer, “bilíngue” – falando a língua da cultura letrada e a da cultura de massas ao mesmo tempo.

 

Por fim, a questão da autoria. 

 

Nas redes sociais se publica muita poesia. Mas ali também existe uma preocupação forte com a autoria: publicam-se os poemas em forma de imagem, para não se perder a diagramação, mas também para impedir a alteração. E muitas vezes o nome do autor vem escrito junto de cada poema, mesmo quando o poema vem na página pessoal do autor.

 

Ora a técnica, em si mesma, não é autoral. Ninguém sabe quem inventou o Word, ou o applet x ou y, nem mesmo o Flash. 

 

Um dos motivos pelos quais a evolução da tecnologia é rápida é que ela não é autoral, mas colaborativa, fruto de trabalho de equipe. E quando não é, os direitos negociados fazem com que ela pertença à empresa e não seja creditada ao indivíduo, o que permite modificações, atualizações, redesenho geral se for o caso.

 

Entretanto, a arte exige a autoria. Não só a assinatura, mas a vinculação a uma figura biográfica pública.

 

Por isso mesmo, a arte digital acaba por ter sempre um ar cediço: ela, ao reivindicar a autoria, congela a evolução, fixa o momento. Como a evolução é rápida, e o interesse pela arte é pequeno para justificar um investimento empresarial, o que sucede é que ela faça uma passagem muito rápida: num passe de mágica ela sai da vanguarda do namoro tecnológico para o casamento com o museu de curiosidades e antiguidades.

 

Outro ponto que me chama a atenção é que alguma arte digital não se destaca pela realização, pela qualidade ou novidade do resultado final, mas sim pelo processo de criação. Consideremos, por exemplo, o “Tombeau de Mallarmé”, de Erthos Albino de Sousa. Como você bem nota, há algo curioso no descompasso entre processo produtivo e resultado. Eu acho até que aquilo poderia ser feito com uma máquina de escrever. E, sem dúvida, num computador 8 bits, de tela CGA, ligado a uma impressora matricial. Podia mesmo ser feito artesanalmente, com Letra Set. Mas foi feito por um processo complicado de registro da temperatura de um fluido qualquer num cano. E foi esse processo que chamou a atenção da crítica, processo que, mesmo nesta tese, numa nota, é descrito em pormenor. Então eu concluo que há aí um fetichismo da técnica, não do objeto artístico.

Observo ainda que, nesse caso, no limite há um intuito analógico, patenteado pela apresentação do poema junto com a foto do túmulo de Mallarmé. Os fluidos aquecidos reproduzem o perfil do túmulo. Isso também reafirma a ideia de que o interesse desse poema está unicamente no processo, porque o resultado não é vanguarda, já que está próximo seja dos Caligramas, seja dos poemas "em forma de" que vêm desde os gregos, passando pelos barrocos e românticos.

 

 

Na mesma linha, pude também observar que em muitos casos a tecnologia é convocada "do lado de fora" do resultado textual: livros que cheiram; palavras produzidas por hologramas; palavras produzidas por nanotecnologia. etc. O que se admira nesses casos é a tecnologia. Mas o resultado, o produto, muitas vezes parece pífio em termos de linguagem. Há um caráter lúdico, quase infantil que é divertido, nisso tudo. Mas em geral o que está em pauta é a técnica, que se apresenta muitas vezes, como disse, “do lado de fora” da arte, quase como uma vestimenta. Ou uma embalagem, para lembrar a definição que Philadelpho Menezes deu a poemas de Augusto de Campos.

 

Os exemplos mais claros para mim são alguns poemas desse mesmo poeta, nos quais a tipografia ou mesmo a tecnologia servem basicamente para produzir uma dificuldade de leitura. Muitas vezes para disfarçar a banalidade do enunciado, como no poema dos livros que estão em pé na estante – um poema metrificado, convencional, “ilustrado” pela tipografia.

 

Isso é que é curioso: muitas vezes, no caso da poesia digital, como no caso de vários poemas concretos, não é que explicações sobre a tecnologia são necessárias para o entendimento do poema. A pergunta que me surge é: sem essas explicações do processo, sem o andaime do edifício, o poema não pode ser fruído – o edifício não pode ser habitado? Ou a fruição é na verdade do que é explicado de tecnologia ANTES do poema, como preparação, ou DEPOIS dele, como justificação?

 

Por fim, eu pensei: se a tecnologia é a estrela da festa, por que reivindicar para o produto o nome “poesia” ou “literatura”? Creio que essa é uma questão importante: reivindicar o nome é reivindicar uma forma de leitura, uma disposição do receptor. E também uma reivindicação de pertencimento: eu pertenço à família literária, portanto não sou um produto apenas tecnológico; sou par de Dante, Homero, Baudelaire, Pound etc.

 

Isso tudo está muito corretamente visto na sua tese. Mas voltando à poesia digital: o que nela é apresentado e o que nela é dito? Normalmente, como em alguns poemas de Augusto, o que é dito é apenas uma reflexão sobre o dizer e o ler e interpretar. É metalinguagem. Portanto, a questão é: sem o parasitismo da metalinguagem, remetendo aos novos meios e técnicas, o que esse tipo de poesia tem a dizer? E por conta da dependência da tecnologia e da obsolescência rápida das linguagens e equipamentos, é possível imaginar que se possa escrever um equivalente cultural (no sentido da permanência e da influência sobre o futuro) de uma Ilíada ou de uma Mensagem ou ainda de uma Máquina do Mundo com esses recursos? São questões para responder em outra tese, com certeza, mas que não consegui me impedir de pensar.

 

Uma última observação tópica diz respeito ao uso da palavra “paideuma”. Paideuma tinha um sentido de hierarquia em Pound, está claro; mas também um sentido de rendimento, de economia. Um paideuma seria um elenco de autores que permitiria às próximas gerações ir direto ao que importava, sem perder tempo com coisas que não valiam a pena. 

 

Mas aí me pergunto: no caso da arte digital o paideuma funciona? Perguntei-me isso porque não dá para ir direto ao material, que tem de ser objeto de uma reconstrução arqueológica. Assim, não é possível ao destinatário do paideuma ter acesso às obras tidas como essenciais para o desenvolvimento de sua própria obra. Só à sua descrição e a uma antologia involuntária, que são os fragmentos recolhidos em museus. Se não são acessíveis as obras, pode-se falar em paideuma, no sentido poundiano?

 

O comentário acima não era de fato o último, porque me parece que quanto à arte digital talvez já se possa falar de uma quarta geração. Até este momento, a definição geracional passava pela questão da técnica, dos meios técnicos. O caráter de experimentação se referiu quase sempre à exploração das possibilidades técnicas do software e do hardware por um autor. Mas já há cerca de dois anos começou a haver algo novo: o digital incorporado à literatura não no instrumento, no meio ou na linguagem - mas na própria criação, com a inteligência artificial. É possível pensar agora numa literatura do prompt - uma literatura que é toda ela digital, desde a "escrita", e que pode encontrar ou não uma forma física. E, sim, quando a IA escreve um livro e ele é impresso temos algo muito diferente de quando um livro era interpretado digitalmente. É algo como um caminho inverso. E isso também daria uma outra tese!

 

Não sendo o caso de fazer teses e mais teses, resta-me cumprimentá-la pela que nos apresenta, e aguardar os comentários que julgar interessante fazer em resposta aos meus.

 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Memórias da FFCL Araraquara

         Depois de muitos anos, conversei ontem por WhatsApp com Zina Bellodi. Zina foi minha professora em Araraquara. 

Durante a conversa, lembrei-me daqueles anos em que me deparei com o maior tesouro: uma enorme biblioteca com acesso livre. Nada de pedir o livro no balcão, aguardar, folhear, decidir que não era aquilo e galopar até o fichário para conseguir os dados para outro pedido. 

Entrar naquela biblioteca acolhedora, principalmente no novo campus, era uma coisa; sair, era outra. A serendipity fazia o seu trabalho com perfeição. 

Aquelas manhãs e tardes na biblioteca e o canto altíssimo das cigarras são as memórias mais persistentes daqueles anos de formação.

No que toca à formação propriamente dita, ou melhor, das aulas, persistem as memórias das longas horas sob o comando do Jorge Cury – com sua rabugice tão famosa, quanto a sua paixão pela literatura lusa –, da lenta decifração francesa dos contos e poemas de Gérard de Nerval e outros poetas a quem me afeiçoei, e das aulas de Teoria Literária – que, naqueles tempos, significava basicamente o livro de Wellek e Warren. Veio daí a  minha formação eclética, em que eu combinava sem contradição aparente (e contra os preceitos da professora de Teoria Literária) a explicação de textos francesa (muito externa, às vezes, e biográfica) e a nova crítica americana.

Quando me pus a refletir sobre isso, deparei com um texto em que Antonio Candido em que ele também afirma que a junção desses dois polos também animava o seu trabalho. Foi numa entrevista de 2011: “talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.” Se pusermos esse paradigma eclético a serviço de uma perspectiva marxista, para a qual o objetivo último da análise literária é a compreensão do movimento social, temos o segundo momento do Candido – momento esse em que não o segui. Não por ter alguma prevenção contra o marxismo, mas porque eu preferi, sempre que foi o caso, fazer o caminho inverso: ter a compreensão da obra literária como objetivo último (e único, talvez) do meu trabalho, colocando a seu serviço o que for preciso, inclusive a compreensão possível do movimento social.

Isso, penso agora, deve ter sido ainda produto da impregnação wellekiana, daqueles verdes anos.

            Por isso mesmo, num texto de um livrinho sobre o ensino da literatura escrevi isto: “Ao mesmo tempo numa disciplina denominada Teoria da Literatura, líamos o livro de René Wellek e Austin Warren, que marcou época no Brasil, promovendo a crítica dos métodos que atenderiam à “demanda extrínseca do estudo da literatura” e valorizando aqueles que promoviam o seu “estudo intrínseco”. [...] Olhando agora o meu velho exemplar dos tempos da faculdade, vejo nas profusas anotações a lápis nas margens do capítulo sobre mito e metáfora (e em outros) o quanto a clareza do vocabulário e o rigor analítico da exposição foram um deslumbramento para mim. Como foi também muito importante outro manual, igualmente marcado pela perspectiva formalista, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser, que desempenhava um papel complementar ao de Wellek.”

            A disciplina de Teoria Literária, poderia ir sem dizer, era a da Profa. Zina, com quem conversei ontem à noite, conversa essa que despertou em mim novamente, naqueles momentos em que não se está plenamente desperto, nem totalmente adormecido, estas velhas recordações do campus calorento e sua biblioteca infinita.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Textos sobre inteligência artificial neste blog

  

1-    Análise de haicai 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/7635535975447774395

 

2 – Composição de soneto

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4897252241031158659

 

3 – Um dístico latino

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/6389982462619581276

 

4 – Escrita de poesia 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4247847397337859988

 

5 – Eliot e a IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5125068848031893630

 

6 – Tradução e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5756432131876187924

 

7 – New Criticism e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4858346554281861182

 

8 – IA e autoria

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5947458456677344362

 

Inteligência Artificial - 8 - O que a IA nos mostra

 Nessas provocações que tenho feito quanto à capacidade da IA de fazer poesia, há um ponto que tenho achado interessante considerar. É que a maior parte de nós boa parte do tempo faz pastiche, assim como a máquina. Vamos lendo, acumulando ideias, procedimentos, imagens, imitando e tentado nos livrar da “influência”, dando um uso criativo a essa dinâmica etc. E nesse arranjo, quando conseguimos, inserimos a nossa nota pessoal, original ou o que seja. Mas penso que duas coisas entram em ação para confundir o debate quando falamos de IA. Primeiro, a ideia romântica do gênio, da individualidade capaz de radical originalidade. Depois, a ideia, que ora é antagônica, ora é complementar a essa, da autonomia do objeto estético. Com o New Criticism e com o Estruturalismo aprendemos na escola que o texto deve falar por si, que vale pela sua estrutura, pela sua concretude, independente de intenção ou propósito do autor. A história da poesia (e da literatura, claro) poderia ser contada como uma história de evolução das formas, quase ou totalmente apagando os autores. Mas essa sim parece uma falácia, em muitos sentidos. Porque talvez haja mais entre um texto e seu autor do que supõe a vã visada autonomista. Esse mais é algo que eu tenderia a chamar de personalidade ou mesmo de biografia literária. Que é diferente da biografia no sentido estrito. Principalmente da personalidade, num sentido psicológico. É uma imagem autoral que permite dinamizar o texto, interpretá-lo e reconhecer nele qualidades estéticas que, sem ela, não teriam a mesma força ou o mesmo sentido. Um bom exemplo é Manuel Bandeira. Sem a sua imagem autoral, sem a sua – por assim dizer – biografia pública, literária, gostaríamos do seu porquinho da Índia? Da sua Irene no céu? Da sua andorinha, andorinha? Dos seus cachorrinhos bebendo água? Escrito por um autor do qual nada soubéssemos, o porquinho não seria terrivelmente piegas? Se assinado por um estudante e entregue a um professor, que seria do poema da Irene ou da conversa com a andorinha? Além disso, há o estilo. Seria imaginável qualquer um desses três poemas saindo das famosas dores de cabeça do João Cabral? Portanto, a questão que me parece interessante no caso da IA é: um texto poético muito bem escrito e estruturado, incluindo ainda originalidade no tratamento do tema (porque pode-se programar a aparição do inesperado e aleatório – é só questão de tempo) poderá ser recebido e lido como boa poesia? Penso que essa questão é importante principalmente porque nos mostra a expectativa que temos com relação à poesia. Talvez com relação à música esse problema não se apresente com a mesma complexidade. Com o design industrial certamente não. E com a arquitetura, o que seria? Ou seja, as provocações visam a escarafunchar um pouco a nossa expectativa frente a um texto que identificamos como poesia. Apenas isso.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Prêmios literários

 Participar do júri de um grande prêmio literário é interessante por permitir uma visão ampla do que se produziu em determinado gênero no ano anterior. É um dos poucos momentos em que a gente escapa do marketing direto e indireto, e das recomendações e inclinações pessoais. No dia a dia, a escolha do que comprar para ler está condicionada à disponibilidade de recursos. O investimento é determinado pelas resenhas dos jornais (quase sempre subordinadas ao poder de marketing das editoras), pelo nome dos autores, pelo selo editorial. Num concurso, não: há de tudo e mais um pouco. A custo zero. Uma pena é que agora a gente não julga livros, no sentido próprio da palavra. Não julga os objetos na sua materialidade, mas apenas o seu “conteúdo” – por assim dizer –, a sua imagem numa tela de notebook ou computador de mesa, ou mesmo celular.

Neste ano tive a sorte de poder participar de dois júris em certo sentido complementares. No Jabuti, na categoria poesia de autor estreante. Na Biblioteca Nacional, na categoria poesia tout court. Se no Jabuti eu tivesse sido designado para “poesia”, por certo a sobreposição de obras seria bastante significativa. Da forma como foi, o exemplário terminou por ser o mais amplo possível.
Lendo postagens nas redes sociais, percebi que há sempre desconfiança. Normalmente, de autores que tinham mais expectativa ou de seus amigos próximos. Mas as desconfianças me parecem infundadas nesses dois casos.
Percebi também que as pessoas desconhecem o modo de funcionamento dos júris. Há muitos prêmios atualmente, e eu só posso falar desses dois que nomeei e têm funcionamento diverso. Então aproveito o post para contar.
No Jabuti, cada jurado atribui as notas nos quesitos sem fazer ideia de quem são os outros dois. As notas são tabuladas e os vencedores são proclamados. Só então os jurados ficam sabendo com quem trabalharam. Uma particularidade desse prêmio é que um jurado pode se surpreender com o resultado, vendo ganhar em primeiro lugar uma obra que não foi escolhida por ele para tal colocação, já que é a média aritmética que decide. No caso do prêmio da Biblioteca, os jurados têm de ser informados sobre seus parceiros de empreitada, porque ao final dos trabalhos será redigido um parecer conjunto, justificando a atribuição do prêmio à obra vencedora. Cada jurado também atribui três notas a cada obra, em três quesitos; a comissão do prêmio tabula os resultados; com isso se obtêm os três primeiros colocados; cabe então ao júri justificar a escolha que fez ao atribuir as notas.
A trabalheira este ano, com dois júris, foi imensa. Mas compensou, pois foi uma oportunidade única de tomar pé na poesia publicada no Brasil, uma oportunidade de ler livros que eu jamais compraria por iniciativa própria, ou por falta de recursos, ou por desconhecimento, já que muitos livros apresentados são edições regionais ou do próprio autor. Poder conhecer a produção do ano anterior sem gastar um tostão e ainda recebendo uma modesta retribuição financeira... que mais poderia pedir? A pergunta é retórica, claro, pois seria bem-vinda uma retribuição melhor do que a que existe hoje, simbólica, já que o trabalho é enorme! Mas a verdade (que não devia ser conhecida dos organizadores dos prêmios) é que eu faria o trabalho até de graça, só para poder tomar o pulso, de modo amplo, da poesia publicada no Brasil.