Minha postagem de ontem sobre o artigo provocativo do Alcir falava do vício da leitura. Tomei o cuidado de me declarar não tão viciado quanto ele, de modo a ter uma prudente distância analítica do fenômeno. Depois, porém, me pus a pensar em algo inesperado. Ainda no domínio do vício. É que essa compulsão pela próxima dose, essa imagem do leitor insaciável, voraz (sempre me impressionou, desde que a ouvi pela primeira vez, na juventude, utilizada como elogio de um professor a outro), do leitor que fica em síndrome de abstinência se confinado num espaço sem livros – essa compulsão viciosa, dizia, parece acometer um tipo específico de leitor literário: o leitor de prosa, e, mais especificamente, o leitor de romances. O leitor literário que se dedica a outro gênero parece ter comportamento diferente. Refiro-me ao leitor de poesia. Não conheço nenhum que se lance infinita e imediatamente de um livro de poesia a outro, que leia sofregamente (outra imagem comum) um poeta após o outro. Os leitores contumazes de poesia que eu conheço são poucos e alguns deles exibem uma característica inesperada: se aborrecem facilmente com o objeto do desejo. Talvez isso tenha a ver com o fato de que os leitores fanáticos por poesia são também, na maior parte, praticantes da arte. Alcir disse que até uma droga de livro de ficção pode satisfazer a sede da droga literária. E eu sei que é verdade por experiência própria adolescente. E sei também, por experiência e leituras, que é possível ter enorme satisfação fora do ringue da assim chamada alta literatura. Se não erra a memória, Fernando Pessoa dizia que poucos prazeres se equivalem a um livro com as aventuras de Sherlock Holmes, acompanhado de um bom café e fumo forte. Mesmo histórias de detetive de segunda classe já me deram bastante prazer, assim como aqueles livrinhos de espionagem que eram vendidos em bancas de jornal. Já com a poesia isso seguramente não acontece. Um livro de má poesia é, para o leitor fissurado no gênero, algo da ordem do repulsivo, exceto se for de lavra própria. Então me pus a pensar. Ou a poesia não é literatura, como propunham – cada qual à sua maneira – Verlaine e Pound; ou a poesia é uma droga muito mais poderosa, cujo efeito dura demais e cujo ponto de não retorno por overdose é mais facilmente atingido. Talvez seja por isso que às vezes duas ou três linhas de palavras me fazem fechar um livro e me afastar dele momentaneamente ou para sempre, conforme sejam muito ruins ou muito boas. Alguns versos, quando li pela primeira vez, ficaram como uma pedra de maravilha no estômago. Uma pedra que precisou se dissolver aos poucos, até que eu pudesse voltar à página e ir adiante, sentindo-me capaz de assimilar o golpe. Outros versos, mesmo se lidos uma vez só, me surgiram no meio do dia ou no meio da noite, de repente, recortando ou iluminando uma situação ou cena, dando-lhe forma e às vezes sentido. É certo que na prosa há também essas pedrinhas, que a gente pode destacar ou não consegue esquecer. O que só reforça a hipótese de que a poesia é uma droga concentrada, de alto grau de pureza: uma bomba que abala de golpe o cerebelo ou qualquer outra parte mais poética da caixa do crânio. Por isso mesmo a má poesia tende a ser insuportável. É como droga diluída ou falsificada, farinha em vez de pó de dar barato, ou, para encerrar com uma imagem rude, cocô de vaca seco em vez de erva da boa.
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