terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Arguição: literatura digital?

 Estou agora mesmo numa atividade que há tempos não me pegava: ser membro de uma banca acadêmica. No caso, banca de uma tese apresentada em concurso para Professor Titular numa universidade federal.

As questões que abordei na  minha participação têm a ver com o que vim refletindo aqui sobre poesia e técnica, poesia digital, inteligência artificial.

Por isso mesmo, como a arguição é uma etapa pública e aberta a qualquer interessado, pensei que não haveria problema em a transcrever aqui, já que talvez ela pudesse gerar alguma conversa também neste espaço.

 

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Arguição da tese intitulada Antologia crítica da literatura digital brasileira.

Autora: Rejane Cristina Rocha 

Instituição: Universidade Federal de São Carlos

Data: 10 de dezembro de 2024

 

Prezada Rejane,

 

Lendo sua tese, reparei um ponto que me interessou pessoalmente, pois fui dos primeiros usuários de computador do meu Instituto e em casa. Também pude criar num CCVAX o primeiro fórum de discussão sobre haicai (e talvez o primeiro dedicado à literatura), em 1996. Vim para a Unicamp dez anos antes disso, em 1986, no mesmo ano em que foi lançado o Redator da Itautec. No IEL, em 1987 chegaram dois computadores de 8 bits, sem hard disk, com apenas dois drives para disquetes moles (floppy disks). Foi neles que compus, em 1987– usando o Redator  –, para maravilha de muitos, o primeiro livro do IEL inteiramente digitado. 

Assim que pude, comprei um computador Itautec, com um pequeno disco rígido de 30 megabytes E foi nessa máquina ou em uma um pouco melhor que pude, em 1990/91, instalar o WordPerfect e criar as macros que me permitiram fazer, em tempo recorde, a edição crítica do Camilo Pessanha. 

Por essa época, fui o segundo usuário do IEL a utilizar o bitnet por linha discada de 1200 bps. Como tinha uma namorada nos EUA – minha futura ex-esposa – e o BITNET (because it’s time of network) fosse muito ruim, consegui uma generosa autorização para usar a HEPNET (High Energy Physics Network).  

Com tanto entusiasmo profissional e tanto interesse pessoal envolvido, e como eu era praticamente o único usuário constante e apaixonado, logo fui designado Coordenador de Informática, sendo por um ano e tal o coordenador e praticamente o único coordenado. 

Enfim, o que quero dizer é que vivenciei, em casa ou na Unicamp, no espaço de 15 anos, todas as etapas do choque informático e internético.

Um ponto que me interessou pessoalmente, portanto, foram as reflexões sobre o tempo acelerado das mudanças no mundo da informática, bem como sobre a perda das informações, soterradas sob programas que já não funcionam ou sites dos quais a gente só tem uma imagem congelada e parcial. 

Camões já observava algo novo no seu tempo. Dizia ele que 'todo o mundo é composto de mudança,' mas que “outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.' 

Não creio exagerar ao dizer que essa aceleração do ritmo da mudança se deveu em grande parte à invenção e disseminação da imprensa. Agora, com a invenção do computador pessoal e da internet experimentamos algo semelhante ao que registrou Camões: a velocidade da mudança cresceu espantosamente. 

            Entretanto, no que diz respeito à sua tese, outra mudança se faz de muito mor espanto. É que o livro impresso representou, no seu tempo, duas coisas: acessibilidade do conhecimento e conservação desse conhecimento, pois não se tratava mais de existirem exemplares únicos. Já a informática, junto com um enorme poder de difusão, trouxe um complicador: a perda igualmente rápida da informação, por conta da obsolescência vertiginosa do software e hardware. E não só: a desativação de domínios – por exemplo, no livro impresso Tristessa, que você analisa, deparei com esta informação, na quarta capa: “O livro original você pode ler emwww.quatro.com.br/tristessa . Mas esse domínio, como vi logo em seguida, ao tentar acessar, já não existe.

            Você se debate com algo, portanto, que a gente não imaginaria no começo da aventura computacional: a perda da informação e da memória. 

Daí que o seu trabalho seja equiparado em vários momentos da tese ao de um arqueólogo. Enquanto aquele tira o entulho e varre o pó acumulado sobre os objetos antigos, você pelo contrário lida com o que, de uma perspectiva puramente utilitária, é o entulho. 

Seja como for, é mesmo arqueologia: tem de chegar ao que está enterrado, usar instrumentos de escavação (por exemplo, emulação de programas já desaparecidos) imaginar como se comportavam os seus objetos, os seus “textos”, e imaginar o efeito de poemas dos quais só se têm fragmentos e poucos testemunhos de leitura. 

Assim como o tradutor de Safo enfrenta os fragmentos na busca infinita da totalidade impossível, assim você tenta traçar um quadro compreensivo da evolução da poesia digital, a partir dos poucos registros disponíveis. 

A terminologia também é reveladora: museu, conservação, preservação. Ou seja, em certo sentido, trata-se de um trabalho de recolha arqueológica e preservação museológica.

 

            Do meu ponto de vista, a sua tese tem dois polos de tensão, entre os quais se ramificam as questões que você nos apresenta. De um lado, pensar o sentido da experimentação poética com as inovações técnicas (hardware e software); de outro, constatar repetidamente a ruína da memória dessa experimentação e os limites para a sua preservação. 

            Do primeiro polo derivam as reflexões sobre poesia e técnica: qual o sentido da experimentação? É cedência ao mercado ou uma forma de resistência a ele? 

Do segundo, a reflexão sobre a obsolescência e a função dos estudos desse tipo de arte.

 

            Minhas questões de leitura giram à volta da relação entre a literatura (ou a arte) e a técnica. Na verdade, nem são questões, são mais comentários. E eu conto aprender ao ouvir os seus comentários aos meus comentários.

 

            A primeira é esta: você em certo ponto diz que temos de concordar com a asserção de que a arte é produzida com as tecnologias do seu tempo. Eu não entendo bem o que isso quer dizer. 

Quer dizer que um autor não pode ou não deve escrever à mão hoje? Ou que mesmo a escrita à mão pressupõe hoje a máquina de escrever ou o computador? Ou quer dizer que a forma literária é determinada apenas em parte pela tecnologia? Por exemplo: o texto fica "jornalístico", como dizem os manuais sobre alguma modernidade... Mas isso é fatal? Proust, por exemplo, vai na contramão... No entanto, mesmo se admitirmos que se torna "jornalístico", isso tanto pode ser atribuído ao fato de que a literatura é produzida com as tecnologias do tempo (máquina de escrever, telégrafo para transmitir textos etc.), quanto à vontade de imitar, de incorporar – ou seja, as tecnologias podem não determinar, mas ser emuladas pela forma literária. São, portanto, questões diferentes, porque uma coisa é a arte ser produzida com a tecnologia do tempo e ser por ela determinada; outra é a arte dialogar com a tecnologia, emulá-la por meios artesanais, ou mesmo ser apenas influenciada por ela.

 

Assim também a afirmação de que hoje tudo é digital. Penso que aí temos também duas coisas diferentes. A reprodução da obra literária implica necessariamente o digital, o número. A literatura, porém, não nasce necessariamente vinculada ao dígito no nosso tempo. Ela pode continuar sendo escrita à mão ou em velhas máquinas de escrever, ou mesmo não sendo escrita, só memorizada e transmitida verbalmente.

 

Outro momento que me chamou a atenção foi quando você pareceu ver a especificidade da questão brasileira como diretamente vinculada ao menor desenvolvimento tecnológico. Eu me pergunto se seria só isso, porque eu me recordo sempre daquele texto de Antonio Candido sobre a literatura na primeira metade do século XX, no qual ele diz que entre nós a cultura letrada “clássica”, erudita, não se tinha sedimentado. E que por isso o público recém-formado era logo capturado pelos mass-media, pela arte de massas. Quero dizer, eu entendo que nós temos uma fixação na tecnologia, apesar do nosso claro atraso nesse campo, por conta justamente de entre nós o mesmo público nascente nas cidades ter sido, por assim dizer, “bilíngue” – falando a língua da cultura letrada e a da cultura de massas ao mesmo tempo.

 

Por fim, a questão da autoria. 

 

Nas redes sociais se publica muita poesia. Mas ali também existe uma preocupação forte com a autoria: publicam-se os poemas em forma de imagem, para não se perder a diagramação, mas também para impedir a alteração. E muitas vezes o nome do autor vem escrito junto de cada poema, mesmo quando o poema vem na página pessoal do autor.

 

Ora a técnica, em si mesma, não é autoral. Ninguém sabe quem inventou o Word, ou o applet x ou y, nem mesmo o Flash. 

 

Um dos motivos pelos quais a evolução da tecnologia é rápida é que ela não é autoral, mas colaborativa, fruto de trabalho de equipe. E quando não é, os direitos negociados fazem com que ela pertença à empresa e não seja creditada ao indivíduo, o que permite modificações, atualizações, redesenho geral se for o caso.

 

Entretanto, a arte exige a autoria. Não só a assinatura, mas a vinculação a uma figura biográfica pública.

 

Por isso mesmo, a arte digital acaba por ter sempre um ar cediço: ela, ao reivindicar a autoria, congela a evolução, fixa o momento. Como a evolução é rápida, e o interesse pela arte é pequeno para justificar um investimento empresarial, o que sucede é que ela faça uma passagem muito rápida: num passe de mágica ela sai da vanguarda do namoro tecnológico para o casamento com o museu de curiosidades e antiguidades.

 

Outro ponto que me chama a atenção é que alguma arte digital não se destaca pela realização, pela qualidade ou novidade do resultado final, mas sim pelo processo de criação. Consideremos, por exemplo, o “Tombeau de Mallarmé”, de Erthos Albino de Sousa. Como você bem nota, há algo curioso no descompasso entre processo produtivo e resultado. Eu acho até que aquilo poderia ser feito com uma máquina de escrever. E, sem dúvida, num computador 8 bits, de tela CGA, ligado a uma impressora matricial. Podia mesmo ser feito artesanalmente, com Letra Set. Mas foi feito por um processo complicado de registro da temperatura de um fluido qualquer num cano. E foi esse processo que chamou a atenção da crítica, processo que, mesmo nesta tese, numa nota, é descrito em pormenor. Então eu concluo que há aí um fetichismo da técnica, não do objeto artístico.

Observo ainda que, nesse caso, no limite há um intuito analógico, patenteado pela apresentação do poema junto com a foto do túmulo de Mallarmé. Os fluidos aquecidos reproduzem o perfil do túmulo. Isso também reafirma a ideia de que o interesse desse poema está unicamente no processo, porque o resultado não é vanguarda, já que está próximo seja dos Caligramas, seja dos poemas "em forma de" que vêm desde os gregos, passando pelos barrocos e românticos.

 

 

Na mesma linha, pude também observar que em muitos casos a tecnologia é convocada "do lado de fora" do resultado textual: livros que cheiram; palavras produzidas por hologramas; palavras produzidas por nanotecnologia. etc. O que se admira nesses casos é a tecnologia. Mas o resultado, o produto, muitas vezes parece pífio em termos de linguagem. Há um caráter lúdico, quase infantil que é divertido, nisso tudo. Mas em geral o que está em pauta é a técnica, que se apresenta muitas vezes, como disse, “do lado de fora” da arte, quase como uma vestimenta. Ou uma embalagem, para lembrar a definição que Philadelpho Menezes deu a poemas de Augusto de Campos.

 

Os exemplos mais claros para mim são alguns poemas desse mesmo poeta, nos quais a tipografia ou mesmo a tecnologia servem basicamente para produzir uma dificuldade de leitura. Muitas vezes para disfarçar a banalidade do enunciado, como no poema dos livros que estão em pé na estante – um poema metrificado, convencional, “ilustrado” pela tipografia.

 

Isso é que é curioso: muitas vezes, no caso da poesia digital, como no caso de vários poemas concretos, não é que explicações sobre a tecnologia são necessárias para o entendimento do poema. A pergunta que me surge é: sem essas explicações do processo, sem o andaime do edifício, o poema não pode ser fruído – o edifício não pode ser habitado? Ou a fruição é na verdade do que é explicado de tecnologia ANTES do poema, como preparação, ou DEPOIS dele, como justificação?

 

Por fim, eu pensei: se a tecnologia é a estrela da festa, por que reivindicar para o produto o nome “poesia” ou “literatura”? Creio que essa é uma questão importante: reivindicar o nome é reivindicar uma forma de leitura, uma disposição do receptor. E também uma reivindicação de pertencimento: eu pertenço à família literária, portanto não sou um produto apenas tecnológico; sou par de Dante, Homero, Baudelaire, Pound etc.

 

Isso tudo está muito corretamente visto na sua tese. Mas voltando à poesia digital: o que nela é apresentado e o que nela é dito? Normalmente, como em alguns poemas de Augusto, o que é dito é apenas uma reflexão sobre o dizer e o ler e interpretar. É metalinguagem. Portanto, a questão é: sem o parasitismo da metalinguagem, remetendo aos novos meios e técnicas, o que esse tipo de poesia tem a dizer? E por conta da dependência da tecnologia e da obsolescência rápida das linguagens e equipamentos, é possível imaginar que se possa escrever um equivalente cultural (no sentido da permanência e da influência sobre o futuro) de uma Ilíada ou de uma Mensagem ou ainda de uma Máquina do Mundo com esses recursos? São questões para responder em outra tese, com certeza, mas que não consegui me impedir de pensar.

 

Uma última observação tópica diz respeito ao uso da palavra “paideuma”. Paideuma tinha um sentido de hierarquia em Pound, está claro; mas também um sentido de rendimento, de economia. Um paideuma seria um elenco de autores que permitiria às próximas gerações ir direto ao que importava, sem perder tempo com coisas que não valiam a pena. 

 

Mas aí me pergunto: no caso da arte digital o paideuma funciona? Perguntei-me isso porque não dá para ir direto ao material, que tem de ser objeto de uma reconstrução arqueológica. Assim, não é possível ao destinatário do paideuma ter acesso às obras tidas como essenciais para o desenvolvimento de sua própria obra. Só à sua descrição e a uma antologia involuntária, que são os fragmentos recolhidos em museus. Se não são acessíveis as obras, pode-se falar em paideuma, no sentido poundiano?

 

O comentário acima não era de fato o último, porque me parece que quanto à arte digital talvez já se possa falar de uma quarta geração. Até este momento, a definição geracional passava pela questão da técnica, dos meios técnicos. O caráter de experimentação se referiu quase sempre à exploração das possibilidades técnicas do software e do hardware por um autor. Mas já há cerca de dois anos começou a haver algo novo: o digital incorporado à literatura não no instrumento, no meio ou na linguagem - mas na própria criação, com a inteligência artificial. É possível pensar agora numa literatura do prompt - uma literatura que é toda ela digital, desde a "escrita", e que pode encontrar ou não uma forma física. E, sim, quando a IA escreve um livro e ele é impresso temos algo muito diferente de quando um livro era interpretado digitalmente. É algo como um caminho inverso. E isso também daria uma outra tese!

 

Não sendo o caso de fazer teses e mais teses, resta-me cumprimentá-la pela que nos apresenta, e aguardar os comentários que julgar interessante fazer em resposta aos meus.

 

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