sábado, 31 de agosto de 2013

A edição da poesia de Camilo Pessanha



SOBRE UMA PROPOSTA DE PUBLICAÇÃO DOS POEMAS DE CAMILO PESSANHA


[Este texto foi escrito para ser apresentado no I Colóquio Colóquio Internacional do LIA: 500 anos Portugal-China: contrastes, mudanças e desafios, realizado na USP nos dias 26 a 30 de agosto de 2013 – motivos de ordem pessoal me impediram de estar presente]


            Em primeiro lugar, quero apresentar as minhas desculpas e a minha tristeza por não poder integrar esta mesa e rever amigos queridos e colegas que ainda não conheço pessoalmente, mas cujo trabalho admiro de longa data.
            Se eu aqui estivesse, teria muito gosto em ouvir as comunicações e, principalmente, aprender com os debates que certamente ocorrerão.
            Entretanto, do ponto de vista da minha própria participação na primeira parte dos trabalhos, não creio que farei falta, pois apenas repetiria aqui o que tenho dito em tantos outros momentos, seja sobre os critérios da edição que fiz em tempos, seja sobre as críticas que recebi. Nesse particular – e mais exatamente no que diz respeito à falta de honestidade intelectual de uma professora italiana, Barbara Spaggiari, e um seu acólito português, António Barahona – publiquei também há tempos um longo texto, disponível no meu blog, ao qual remeto algum eventual interessado no bas-fond da vida intelectual.[1]
            Mas talvez deva dizer ainda uma vez algumas palavras, principalmente porque talvez haja estudantes presentes, para os quais o estado da matéria possa ainda ser desconhecido.
            E então, começando pelo começo, gostaria de dizer que nunca pretendi, nem fiz, uma “edição crítica” no sentido comum dessa expressão.
            Isso porque nunca pretendi “fixar” um texto, no sentido de afirmar que aquela era a versão a ser lida, e não outras.
            Pelo contrário, percebendo logo que seria impossível dar uma forma fixa ao conjunto dos poemas de Pessanha e me recusando, desde o princípio, a arvorar-me em reorganizador da sua obra segundo algum desenho temático ou formal que me parecesse mais sedutor, decidi pela forma mais radical de trabalho, que passo a expor.
            A palavra radical, aqui, está sendo usada quase no sentido botânico: interessou-me sobretudo observar a história de cada um dos poemas de Pessanha, tanto do ponto de vista da sua elaboração (isto é: datação, identificação – quando possível – da primeira versão e descrição das sucessivas alterações até a última forma comprovadamente autoral), quanto do ponto de vista da sua história pública (isto é: cópias por terceiros, publicações esparsas a partir de fontes várias, publicações em volume).
            Sendo assim, meu trabalho tinha uma direção oposta à dos trabalhos de edição crítica, que traçam uma árvore que permita chegar à raiz mais segura ou indubitável. Minha preocupação, pelo contrário, foi descrever o processo de transformação, a partir dos muitos autógrafos e publicações desse poeta que absurdamente alguns julgaram avesso ao registro escrito.
            Muito longe de querer estabelecer “o texto”, o que eu quis foi apresentar ao leitor eventual a maior quantidade possível de informações para que ele pudesse se decidir pelo texto – ou o momento textual, por assim dizer – que lhe parecesse melhor.
            Para poder anotar as várias campanhas, os vários gestos de escrita de Pessanha, eu precisava de um ponto de referência, de um momento congelado no tempo, a partir do qual os leitores pudessem percorrer o caminho de elaboração e as várias versões sucessivas (quando identificáveis temporalmente) de cada verso.
            Fiz isso, como disse há pouco e repeti exaustivamente no aparato, considerando apenas como referência a última versão comprovadamente autoral. É certo que há casos muito difíceis, pois a autoridade do autor que escreve “limpa” numa versão num dado momento, é contrariada pela autoridade do mesmo autor que publica uma versão diferente em um momento posterior. E há vários textos nos quais não se consegue discernir com segurança se as correções terminaram por configurar uma nova versão (quando não há indicação “limpa” no autógrafo ou ao lado do texto impresso emendado) ou apenas anotações inacabadas para ajustes futuros.
            Expor claramente os pontos de dúvida e de risco foi, assim, um objetivo importante na redação das muitas notas que compõem o aparato da edição que organizei.
            Tomando taticamente a última versão comprovadamente autoral como ponto de referência para anotar as variações, restava fazer um cuidadoso e difícil trabalho de reconstituição da história de cada poema, para que as anotações se fizessem em ordem o mais possível cronológica. Aqui também houve momentos de dúvida angustiosa, mas sempre me pareceu melhor enfrentá-la e expô-la claramente, do que eludi-la, escudando-me em argumento sobre “o método adotado”. Afinal, o método foi construído para abordar o objeto na sua dimensão mais ampla e não para amputá-lo de sua complexidade.
            Ao mesmo tempo, os autógrafos disponíveis nem sempre eram de fácil leitura ou estavam bem reproduzidos. Por isso, desenvolvi um sistema de anotação dos gestos de escrita, marcando ordem, natureza e lugar de alteração ou inserção, de modo que os leitores, com a minha edição em mãos, pudessem decifrar com menos dificuldade os autógrafos disponíveis, cuja localização em arquivos ou bibliotecas mapeei minuciosamente.
            Para deixar completamente claro o meu objetivo, na hora de distribuir espacialmente os textos em volume – o que implica ordenação sequencial – renunciei a qualquer desenho temático ou formal (como disse) e, registrando isso na introdução, escolhi o critério mais abstrato possível: a ordem cronológica. Mas não a ordem cronológica da composição do poema – que seria um objetivo impossível, dada a natureza do material e da informação disponível – mas a ordem cronológica do primeiro registro autógrafo ou primeira publicação. O que é muito diferente, pois num caso teríamos uma aposta na ordenação, digamos, “evolutiva” e no outro um simples registro de ocorrência.
            Renunciei também à escolha do que incluir no livro. Poemas ou mesmo fragmentos: tudo aí teria lugar, pois minha única ambição era constituir o mais amplo e completo (naquele momento) repositório de informações e versos de Camilo Pessanha.
             É certo que fiz três concessões. Duas delas de livre vontade e outra de menos livre vontade.
            A primeira que fiz de livre vontade foi abrir o conjunto com a quadra “eu vi a luz...”, porque, num autógrafo que consultei na casa de Carlos Amaro, Pessanha escreveu que aquele era para ser o primeiro poema de seu livro, “em tempos delineado”. A segunda foi fechar o volume com o poema que começa “ó cores virtuais”, como nas edições dos Osórios, aceitando o argumento deles de que o poema fora escrito para encerrar o volume. Ou seja, como sempre fiz desde que não tivesse indícios ou elementos de contradição, aceitei nesse ponto o testemunho dos Osórios.
            A concessão que fiz de menos livre vontade foram na verdade duas: intitular o conjunto “Clepsidra” e deixar escrever “edição crítica” na ficha do volume. Ambas foram exigências do editor, a que me dobrei – talvez feliz por poder assim justificar o belo título e certamente infeliz por meu trabalho ser apresentado como o que não era, ou seja, uma edição crítica.
            Esse foi, em linhas gerais, o meu trabalho. E talvez agora deva encerrar dizendo alguma coisa sobre o que não se percebeu dele e também sobre uma discordância que tenho com relação a algumas das edições dos poemas de Pessanha que foram feitas posteriormente a ele.
            O que não se percebeu foi que, do ponto de vista da aproximação à obra de Pessanha, a minha edição propunha um trabalho com o universo textual do autor, no qual não necessariamente a última versão de um poema era a mais importante ou a mais significativa do ponto de vista da leitura ou da interpretação.
            Ou seja: o que não se percebeu é que, ao contrário do que também se busca fazer atualmente no campo da edição de autores contemporâneos, meu interesse não era afirmar uma versão mais próxima ou fiel à suposta ou real intenção do autor. O que pretendi foi, isso sim, afirmar o caráter inacabado e inacabável do que teria sido o livro de Pessanha, tornando as várias versões disponíveis equivalentes, do ponto de vista do interesse da leitura.
            E foi justamente o rendimento dessa hipótese o que tentei mostrar no estudo que fiz a seguir sobre os versos de Pessanha – o ensaio Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha –, no qual trabalho em vários momentos a história dos textos e as suas versões, confrontando versos com cartas, declarações, texto em prosa, na tentativa de refletir o caráter movente da poesia do autor e identificar o que me parecem dois modos, duas poéticas que organizam as imagens, símbolos e temas dispersos ao longo do universo textual que chamamos de Camilo Pessanha.
            No que diz respeito à discordância, a questão é a seguinte. Clepsidra é o título que Pessanha, comprovadamente, em algum momento, imaginou para a publicação em volume de um conjunto de seus poemas. Mas não temos nenhum registro seguro de quais poemas integrariam esse livro, nem como nele seriam dispostos.
            Assim, só me parece haver dois usos razoáveis para esse título. O primeiro é quando se trata de reproduzir a edição de 1920. Não porque essa edição seja uma edição autoral. Como julgo ter demonstrado, a edição de 1920 foi a recolha possível dos versos disponíveis de Pessanha naquele momento e para aquela editora, arranjados em partes e sequência segundo um critério que nada indica (pelo contrário) terem sido de autoria de Pessanha – e ainda utilizando versões problemáticas, recolhidas de publicações precárias e não autorizadas. Ou seja: o uso apenas documental, diplomático. O segundo, menos razoável – mas mais defensável –, é o que fiz dele: já que não se sabe o que iria no livro, abrigam-se sob esse título todos os poemas hoje encontráveis.
            O terceiro uso já me parece problemático. É o que fazem os editores que tomam por base a última edição de João de Castro Osório e o que fez o meu querido amigo Gustavo Rubim, ao denominar Clepsidra a uma antologia de poemas. Sei que ele vai falar sobre isso, pois no título da sua fala comparece a palavra “sobranceria” e foi como essa palavra que qualifiquei – invejável sobranceria, eu disse – a forma como organizou, sem justificativas e escudado apenas no seu (quanto a mim, indubitável) gosto, uma antologia, que apresentou sob o nome do livro perdido ou nunca conseguido por Pessanha.
            Mas a discordância com Rubim não diz respeito ao ato sobranceiro da escolha. Quanto a isso, desde o começo estou de acordo e o trabalho que fiz de edição teve por objetivo permitir que leitores de Pessanha pudessem escolher sobranceiramente, no banco de dados textual, o que melhor lhes parecesse representar a poesia do autor.
            Minha discordância diz respeito apenas à redução – por conta da aplicação restritiva do título, sem a informação modalizadora de que se trata de uma antologia, no sentido próprio da palavra – do livro inexistente a esse livro particular. Denominasse ele a sua seleção “antologia”, ou registrasse que se tratava de seleta, nenhuma discordância haveria entre nós quanto ao direito de fazer – apenas divergências quanto à escolha, pois creio que ele deixou de fora poemas muito notáveis sob qualquer ponto de vista.
            E aqui devo registrar que sinto imensamente não poder participar do colóquio também porque gostaria muito de ouvir o que esse crítico notável tem a dizer sobre as nossas diferenças.
            Enfim, era isso o que eu diria se aqui estivesse.
            E mais uma vez me desculpando pela ausência, deixo aqui os meus cumprimentos à organização do congresso e aos colegas que não pude, desta vez, rever.

Campinas, agosto de 2013

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Entrevista a Osvaldo Silvestre

publicação original:

http://tantaspaginas.wordpress.com/2012/02/07/paulo-franchetti-director-da-editora-da-unicamp-o-acordo-ortografico-e-um-aleijao/

 

Paulo Franchetti, director da editora da Unicamp: «O acordo ortográfico é um aleijão»


Paulo Franchetti é crítico literário, escritor e professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Publicou, no Brasil, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha (2001), Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007), e organizou o volume Haikai – antologia e história (1990). Preparou edições comentadas de Coração, Cabeça e Estômago (2003) e, para a Ateliê Editorial, O Primo Basílio (1998), Iracema (2007), A cidade e as serras (2007), Dom Casmurro (2008), Clepsidra (2009) e O cortiço (2012, no prelo). Publicou ainda, em Portugal, a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam – a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (2008). É também autor da novela O sangue dos dias transparentes (2003), da coletânea de haicais Oeste/Nishi (2008), do livro de sátiras Escarnho (2009) e do livro de poemas Memória futura (2010).
Desde 2002, dirige a Editora da Unicamp, tendo neste período conseguido 6 prémios Jabuti e colocado, no ranking de 2010, a Unicamp no 5º lugar das melhores editoras do Brasil, apenas com a Editora da UFMG melhor colocada, em 4º, de entre as editoras universitárias. De notar que, de acordo com esse ranking, entre as 19 melhores editoras do Brasil, 4 são universitárias, ou seja, um pouco mais de 20%. Situação rara, em muitos países, a começar por Portugal, e uma razão mais para ouvirmos Paulo Franchetti, que junta às suas facetas de professor, orientalista, crítico, poeta, ficcionista e editor (e motoqueiro…) a de conhecedor profundo da literatura portuguesa, sobretudo das obras de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Camilo Pessanha (cuja edição fixou, laminando uma série de lendas de longo curso sobre o poeta e a obra) e Fernando Pessoa.
Agradecemos a Paulo Franchetti a disponibilidade revelada e o empenho colocado na resposta, desassombrada como sempre, às nossas perguntas.
TP: Pode dar-nos algumas informações prévias sobre a Editora da Unicamp? Qual é o seu orçamento anual? Quantos funcionários trabalham na editora e nas livrarias do campus? Quantos livros publica a editora em média por ano?
PF. A Editora recebe um apoio de cerca de R$ 300.000,00 por ano. Isso constitui o seu fundo editorial e se destina a cobrir principalmente a tradução e a impressão de obras que, apesar de importantes para o público universitário, não produzem retorno de vendas, por se dirigirem a um público muito restrito. Anualmente, com base em projetos específicos e planilhas de custos, a reitoria pode suplementar esse valor. O faturamento bruto da Editora da Unicamp gira em torno de R$ 1.500.000,00.
Na Editora trabalham 25 funcionários, e nas duas livrarias, 4. Desses, apenas 8 são funcionários públicos; os demais são contratados pela Fundação e têm seus salários e direitos pagos com o resultado da venda de livros. De modo que a Editora da Unicamp funciona mais ou menos como uma pequena empresa.
O número relativamente elevado de funcionários se deve a uma estratégia definida pela direção: fazemos internamente a revisão e a diagramação da maior parte dos livros, tendo para isso quatro revisoras contratadas em período integral e duas diagramadoras. Quando há excesso de trabalho, alguns serviços de revisão e diagramação são terceirizados. Os funcionários, então, promovem leitura aleatória do trabalho realizado, para controle de qualidade. Isso tem garantido à Editora um excelente nível de correção nas suas publicações, muito acima do padrão nacional.
A Editora publica em média 40 títulos novos por ano e 6 em segunda edição. Desse total, todos os anos são feitas cerca de 24 reimpressões. De modo que a Editora põe na praça, anualmente, cerca de 70 tiragens.
TP. Quais são as áreas mais fortes do catálogo da editora? Quais aquelas que gostaria de reforçar?
PF. As áreas mais fortes são as humanidades de modo geral: história, antropologia, filosofia, linguística e teoria e crítica literárias. Creio que serão sempre as mais fortes e mais importantes, por conta inclusive da forma de circulação do saber na Universidade: enquanto as áreas de exatas e tecnológicas têm a revista científica como veículo do conhecimento novo, nas humanidades é ainda o livro o veículo privilegiado. Temos feito, nos últimos anos, um esforço no sentido de ampliar o número de livros de divulgação científica, para atingir um público mais amplo.
TP. No campo da literatura, a Editora da Unicamp publica sobretudo clássicos, dos gregos e latinos a Machado de Assis, mas ao mesmo tempo publica as traduções de Augusto de Campos, a poesia de Décio Pignatari ou os ensaios de Paulo Leminski. Esta conciliação é pacífica ou controversa dentro da editora e na Unicamp?
PF. Creio que é pacífica. A missão da Editora da Unicamp é publicar textos que sejam importantes para o trabalho acadêmico, textos que sejam utilizados em cursos de graduação e pós-graduação, bem como textos que sejam referência de pesquisa nas várias áreas do saber. Nesse sentido, uma edição bem cuidada da poesia de Décio Pignatari e dos ensaios de Leminski tem tanta pertinência acadêmica quanto a publicação de uma nova tradução da Divina Comédia, uma edição bilíngue dos hinos homéricos a Apolo ou a primeira tradução para o português de um livro do Paul Ricoeur.
 
TP. Como funciona o processo de selecção de títulos na editora?
PF. Há três formas de seleção. A primeira é a que provém da oferta espontânea feita por autores ou editores, que preenchem um formulário on-line e remetem para que o conselho examine e decida pelo interesse em avaliar os originais. Os projetos selecionados pelo conselho são submetidos à análise de dois assessores, escolhidos entre os especialistas mais reputados no área de conhecimento do trabalho. Uma vez aprovado pelo conselho, com base nos pareceres da assessoria, o livro é encaminhado para publicação. A segunda forma é a indicação de qualquer dos integrantes do conselho. Um livro indicado por um conselheiro segue o mesmo trâmite de um livro oferecido espontaneamente, isto é, segue também para parecer de mérito de dois assessores. A terceira forma de seleção é a que é feita por uma comissão de especialistas designada pelo conselho. Trata-se de uma nova maneira de trabalhar na Editora da Unicamp e que tem dado ótimos resultados. Funciona assim: o conselho recebe, formuladas por docentes da Unicamp, propostas de criação de coleções específicas, de caráter temático, que visem suprir deficiências na bibliografia brasileira. Normalmente, são coleções de textos relevantes escritos em outras línguas. Uma vez aprovada a proposta, o conselho designa a comissão científica da coleção, que passa a ser delegada do conselho, selecionando títulos a serem produzidos pela Editora.
TP. Qual é o seu grau de autonomia na definição da política editorial, enquanto director?
PF. Não creio que eu tenha autonomia, nem gostaria de tê-la. Como presidente do conselho, posso, além de propor linhas de atuação, argumentar com base nos fundos editoriais e nos compromissos já assumidos para o ano. Mas é só. A política é sempre decidida em plenário no conselho. O que tenho de decidir sozinho, junto com as gerências comercial, editorial e administrativa, uma vez aprovado um título pelo conselho, é a escala e a ordem de publicação dos livros.
TP. Qual a proporção de traduções e de produção própria no catálogo da editora?
PF. Nos últimos anos, cerca de 40% dos nossos títulos são traduções.
TP. O facto de os critérios de avaliação da carreira de um professor universitário no Brasil estipularem que uma tradução de um livro de referência é um item de grande relevância curricular ajuda a encontrar universitários disponíveis para a tarefa sempre árdua da tradução?
PF. Não creio. Normalmente preferimos utilizar tradutores profissionais, deixando a cargo de professores o acompanhamento da tradução e sua revisão técnica – itens que não contam muito na avaliação da carreira. É certo que temos alguns livros traduzidos por professores, mas isso se deve principalmente ao interesse do docente no assunto e naquele título específico, para utilizar nas suas aulas. Por outro lado, temos publicado muitas traduções que foram apresentadas originalmente como trabalhos de mestrado ou doutorado, especialmente no caso de textos clássicos gregos e latinos.
TP. A Editora da Unicamp tem uma significativa política de coedições (com a Edusp ou a Ateliê, para dar dois exemplos de referência). A que se deve essa política?
PF. Também temos livros em coedição com a UFMG, a Unifesp, a Uerj e outras, embora a Edusp seja nossa maior parceira, de fato, dentre as universitárias. No caso da Edusp, a associação é natural, pois reflete a ampla cooperação acadêmica que as duas universidades têm em todas as áreas. Com a Ateliê temos publicado de modo sistemático uma coleção, intitulada Clássicos Comentados, cuja proposta agradou ao conselho por corresponder plenamente aos objetivos da Editora da Unicamp.
Na definição de uma política de coedição com editoras comerciais há dois fatores muito importantes a levar em conta. O primeiro é, claro, o catálogo: a Editora da Unicamp só publica em coedição com editoras comerciais de catálogo universitário de alto nível. O segundo, não menos relevante, é o tamanho e a capacidade de distribuição da editora de mercado que nos propõe parceria. Desde que assumi, fomos gradativamente deixando de fazer coedições com editoras de grande porte, como Moderna e Cortez, por exemplo (e recusando propostas de outras, como a Globo), porque a distribuição universitária é mais lenta e o que tendia a acontecer, na prática, é que acabávamos por financiar a produção, estocar por breve tempo os exemplares que nos cabiam e logo vendê-los, com os descontos de praxe, ao coeditor. Assim a definição de um coeditor se pauta, no caso das universitárias, pela qualidade do catálogo – e, no caso das de mercado, pela qualidade do catálogo mais a dimensão relativa da empresa e sua presença no mercado. As vantagens da coedição são evidentes: maior visibilidade do livro e melhor retorno comercial, pois a coedição permite aumentar a tiragem, diminuindo assim o preço de custo unitário.
 
TP. Pode dizer-nos quais são os principais problemas que uma editora universitária enfrenta no mercado brasileiro do livro?
PF. O maior problema de mercado é o poder de barganha dos distribuidores e das grandes redes de livrarias. Como se trata de um país gigantesco, os custos das distribuidoras são altos – ou, pelo menos, isso é o que elas alegam. Já as livrarias grandes não têm o argumento do custo alto de operação, mas têm um mercado cativo e grande poder de vendas pela internet. Assim, o desconto exigido por elas é normalmente de 50% sobre o preço de capa – quando não de 55%! Isso faz aumentar muito o preço de venda ao público, o que torna ainda menores as vendas de livros universitários, que são, em princípio, adquiridos por estudantes. Outro problema grave é que as bibliotecas brasileiras, em geral, não adquirem livros. Se cada biblioteca universitária do país, em vez de nos enviar ofícios solicitando doações (não só dos livros, mas também do frete para enviá-los), comprasse os livros em que tem interesse, as editoras universitárias teriam condições de aumentar as tiragens, dispensar os intermediários e abastecer o mercado com livros mais baratos e de melhor qualidade.
TP. Existe um circuito de vendas específico da rede de editoras universitárias brasileiras, ou as livrarias existentes nos campi regem-se pelos princípios universais do mercado?
PF. Existe um circuito específico, que são as feiras universitárias. A pioneira, a maior e mais interessante comercialmente é a promovida anualmente pela Edusp. Nela vendemos mais em três dias do que para distribuidores em 30. A feira da USP foi idealizada pelo atual presidente da Editora, Plínio Martins Filho, que se propôs a demonstrar que o livro universitário tem público, mas um público que não pode adquirir os livros pelo preço que as formas de circulação de mercado exigem que o livro tenha (a questão do custo de distribuição, que expus na resposta anterior). Assim, a Edusp convida todas as editoras de catálogo universitário do país a vender livros no campus de Pinheiros, no final do ano. Não há custo para os vendedores, mas há uma condição, que é decisiva: os livros têm de ser vendidos com um desconto mínimo de 50%, ou seja, têm de ser vendidos pelo preço que são entregues aos distribuidores ou redes livreiras. O resultado é eloquente. Basta visitar a feira uma vez para compreender onde está um dos principais gargalos do mercado do livro universitário.
TP. Com que apoios contribui o Estado brasileiro para a edição? A política brasileira do livro parece-lhe consistente?
PF. A Editora da Unicamp tem recebido algum auxílio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Mas não se trata de apoio à editora, e sim aos autores: eles apresentam pedido individual à Fundação, que lhes concede um certo montante, que poderão entregar a qualquer editora. Como a Editora da Unicamp goza de prestígio, por conta de seu catálogo e sua seletiva política editorial, muitos desses autores preferem publicar conosco, de modo que conseguimos apoio para a edição de vários livros. Quanto à política federal, não tenho muito a dizer, porque nos afeta pouco, já que o governo não tem uma política específica para o livro universitário. Em geral não dependemos de vendas governamentais.
TP. O Paulo é um crítico com uma intervenção pública frequente. Como vê a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil? Que análise faz da evolução da situação desde os seus tempos de estudante até os dias de hoje?
PF. Penso que não vivemos um momento muito bom, no que diz respeito à mídia impressa. Mas não conto entre os saudosistas. Creio que o que vem no jornal é, em geral, de pouco interesse. Mesmo quando críticos notáveis, inteligentes e cultos são convidados para escrever – o que não é tão raro quanto se diz – o espaço físico destinado à literatura não permite mais do que a informação ou a avaliação sumária.
No geral, porém, a crítica de livros é uma modalidade do marketing ou da coluna social. É, na melhor hipótese, atividade jornalística. Mas há outros espaços interessantes, nos quais a crítica se pode fazer de modo menos apressado ou menos condicionado pela pauta imediata, pelo “gancho”. O mais rico é ainda a revista. Impressa ou eletrônica, é na revista que bons críticos têm espaço e liberdade para refletir sobre a literatura de agora e de antes. Mas há também espaços alternativos e interessantes, pelo nível muito variado das colaborações, como o jornal Rascunho e o portal Cronópios.
TP. Do que conhece, a situação da crítica de livros na imprensa no Brasil parece-lhe diferente da portuguesa? Em que aspectos?
PF. Creio que em Portugal o exercício da crítica é mais efetivo. A discordância, a frontalidade, o exame rigoroso têm mais espaço na crítica de livros em Portugal do que no Brasil. Mas pode ser que seja apenas a idealização de quem está do lado de fora.
TP. Que ideia tem do estado actual da edição em Portugal e da evolução verificada na última década?
PF. Uma coisa que sempre me impressiona em Portugal, a cada viagem, é a quantidade de livros produzida todos os anos. É um país pequeno, com uma população menor do que a da cidade de São Paulo, que conta com poucas universidades e, ao que me dizem, poucas livrarias – aí, como aqui, a capilarização da distribuição dos livros parece ter regredido bastante. No entanto, Portugal tem uma produção enorme de livros, em geral bem editados. Não tenho ideia de quais são as tiragens, nem qual é o real público comprador e/ou leitor de literatura. Mas me parece um prodígio que a quantidade de títulos novos cresça na proporção direta da queixa quanto à diminuição dos espaços de venda e à diminuição do público leitor.
TP. Em termos comparativos, como vê a situação da edição brasileira em relação à portuguesa, da universitária à generalista?
PF. Creio que em Portugal não há nada que se compare à edição universitária brasileira. Não só pela quantidade de editoras, mas também pelo papel central que as editoras universitárias representam na vida intelectual do país. Isso pode ser aferido de várias formas: da presença maciça nas bibliografias especializadas à referência constante na grande imprensa, passando pelos prêmios literários em que se galardoam textos de investigação. No que diz respeito às publicações de mercado, também é difícil comparar, dada a diferente dimensão dos países. Proporcionalmente, a indústria editorial portuguesa é muito mais poderosa. Quero dizer: se considerarmos a dimensão dos países e a produção livreira. O que me parece curioso é que haja em Portugal potentados editoriais, que inclusive atravessam o Atlântico e vêm estabelecer-se no Brasil.
TP. O mundo da edição no Brasil tem formas institucionalizadas de recompensa do mérito, inter pares: prémios, classificação das melhores editoras, etc. Pode falar-nos disso e dizer-nos como se processam essas avaliações, que em Portugal primam pela inexistência?
PF. No Brasil há grande empenho na avaliação e na classificação da produção intelectual na universidade. O regime do publish or perish se impôs decisivamente no país. Assim, a publicação de revistas e livros universitários cresceu muito e muitos programas de pós-graduação e grupos de pesquisa dispõem de verbas que podem ser investidas no financiamento de eventos e publicações. Por conta disso, o sistema federal de avaliação dos cursos de pós-graduação tem vindo a implementar critérios de avaliação de revistas universitárias e de livros. As revistas acadêmicas brasileiras são todas distribuídas em categorias hierárquicas que lembram a nota das agências de investimento… E também se fala em ranking de Editoras, uma vez que a avaliação de livros que hoje se faz é evidentemente impossível, dado o volume dos títulos produzidos a cada ano. Além disso, hoje não há nenhum professor de curso de pós-graduação brasileiro (nem mesmo de graduação) que não tenha on-line o seu curriculum. Trata-se de um sistema federal, aberto à consulta pública (lattes.cnpq.br), no qual os docentes são compelidos a registrar suas atividades acadêmicas e, principalmente, a sua produção científica. Os currículos dos docentes e dos estudantes são elementos importantes para a avaliação federal dos vários cursos de pós-graduação – cujo resultado é muito relevante, pois a situação de cada curso na escala de excelência lhes determina o tipo e o volume de verbas federais para custeio dos cursos de pós-graduação, bem como o número de bolsas de estudos para alunos de pós-graduação. A mesma base pública fornece os dados sobre os quais os comitês de avaliação se baseiam para aferir os currículos dos pretendentes a apoios federais (dos quais o mais notável é a Bolsa de Pesquisa do CNPq, que garante aos pesquisadores de destaque um apoio mensal, por três ou cinco anos, dependendo da categoria). Assim, não é de espantar que os dados sobre publicações, editoras, revistas, coletâneas etc. sejam muito valorizados. Prêmios literários que contemplam modalidades de investigação – como o da APCA e o Jabuti – entram no sistema de avaliação geral, e por isso terminam por ser valorizados dentro da academia. Além disso, há universidades que têm o seu próprio sistema interno de avaliação da produção científica dos docentes. Na Unicamp, por exemplo, os docentes (mesmo os catedráticos) somos obrigados (de três em três ou de cinco em cinco anos, conforme o nível) a apresentar relatórios de atividades, de cuja aprovação depende a manutenção do seu regime de trabalho em tempo integral (ou seja, se a produção não for a esperada, o salário do professor pode ser cortado pela metade). Ainda na Unicamp, com base nesses relatórios se atribui anualmente a cada instituto um prêmio em dinheiro (equivalente a um mês de salário de um professor catedrático) para que seja, com base em avaliação objetiva e externa, atribuído a quem mais produziu. Não é difícil compreender, nesse quadro, a importância, para nós, dos rankings e da produção de papers e livros. Nem como a preocupação com índices que parecem indicar a qualidade relativa não só das editoras universitárias, mas ainda das próprias universidades, tem crescido.
TP. A crise dramática que Portugal atravessa tem levado as editoras portuguesas de maior dimensão a apostar no mercado brasileiro. Há uma presença visível das editoras portuguesas no Brasil ou trata-se de uma ilusão de óptica?
PF. Sim. Há uma presença visível das editoras portuguesas entre nós. Ainda esta semana saíram publicados os primeiros títulos da recém-instalada Babel. O mercado brasileiro tem crescido em todos os campos. Oxalá que a aposta esteja certa e que o mercado brasileiro de livros cresça tanto quanto o de automóveis!
TP. Em poucos anos, o Prémio Portugal Telecom ganhou no Brasil mais impacto do que o Prémio Camões. Pode tentar ajudar-nos a perceber as razões do fenómeno?
PF. O Prêmio Camões é invisível no Brasil. Pouca gente sabe de sua existência e dos seus resultados. Eu mesmo quase nada sei. Nem quando se realiza, nem quem já o recebeu (sinal eloquente: tive de ir agora mesmo à internet para saber quem foi contemplado em 2011…). E pouca gente sabe ou se interessa por saber quem é o júri ou como ele é composto e por quem é designado. Não há envolvimento da comunidade intelectual brasileira no Prêmio Camões, que termina por ter um caráter de coisa fechada, oficialesca, com sabor a comenda ou homenagem pré-póstuma. Aliás, nesta pesquisa que acabo de fazer para saber quem recebeu o prêmio no ano passado deparei com um resumo da reunião que é bem instrutivo, pois nele se lê que a decisão do júri foi premiar alguém de um dado país (dentro do sistema de rodízio aparentemente), e que, decidido esse ponto, a escolha foi natural, pois o nome fora já aventado antes. Isso embora membros do júri declarassem candidamente conhecer apenas parcialmente a obra do galardoado. Ou seja, foi tudo feito ali mesmo… Já o Portugal Telecom é dinâmico e tem estrutura abrangente: todos os anos um enorme grupo de pessoas ligadas à vida intelectual e universitária recebe convite para compor o júri inicial – aquele que indicará os livros dos quais sairão os finalistas. Isso dá ao Prêmio Portugal Telecom uma natureza pública, inclusiva – democrática, pode-se dizer. A segunda fase é também muito transparente, pois o júri que elaborará a lista dos dez finalistas é constituído por votação do amplo júri inicial. Quando se divulgam os resultados, divulgam-se primeiro os 50 finalistas, depois os 10 e, finalmente, no dia da entrega, os escolhidos. Isso tudo gera não só envolvimento, mas também grande divulgação. E há um outro elemento que torna o Portugal Telecom mais “nosso”, isto é, brasileiro: ele premia majoritariamente obras brasileiras. Assim, não há sequer como comparar os dois prêmios em termos de percepção pública de importância no Brasil.
TP. Pode falar-nos dos autores portugueses que integram o catálogo da Editora da Unicamp? O seu interesse pela literatura e cultura portuguesas tem alguma responsabilidade nessa presença?
PF. Não temos tantos autores portugueses no catálogo. Recentemente, publicamos apenas três livros do Abel Barros Baptista, dois do Arnaldo Saraiva, um do Diogo Ramada Curto e um da Clara Rowland. Temos, sim, muitos livros sobre autores portugueses. É possível que meu interesse pela cultura portuguesa tenha algo a ver com essa presença. Mas não apenas o meu. Meu parceiro de trabalho há 30 anos, que integra inclusive o conselho editorial da Editora da Unicamp, Alcir Pécora, é um estudioso da cultura e da literatura portuguesa. Juntos temos tido, talvez, por conta de conhecermos mais a fundo o que se publica em nossas áreas de trabalho, contato com autores que não tinham espaço no Brasil. E ambos produzimos livros, publicados antes de eu estar na direção da Editora, sobre autores portugueses: ele sobre Vieira e eu sobre Oliveira Martins e Camilo Pessanha.
TP. O que acha do acordo ortográfico? Acha mesmo que, como dizem os editores portugueses (e muitos intelectuais), o acordo foi uma gigantesca maquinação brasileira para permitir que os livros brasileiros entrem livremente no mercado português e no africano, acabando com a indústria portuguesa do livro?
PF. O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano: a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o governo apressadamente o impôs como lei, fazendo com que um acordo para unificar a ortografia vigorasse apenas aqui, antes de vigorar em Portugal. O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos, de eficácia duvidosa. Não sei a quem o acordo interessa de fato. A ortografia brasileira não será igual à portuguesa. Nem mesmo, agora, a ortografia em cada um dos países será unificada, pois a possibilidade de grafias duplas permite inclusive a construção de híbridos. E se os livros brasileiros não entram em Portugal (e vice-versa) não é por conta da ortografia, mas de barreiras burocráticas e problemas de câmbio que tornam os livros ainda mais caros do que já são no país de origem. E duvido que a ortografia seja uma barreira comercial maior do que a sintaxe e o ai-meu-deus da colocação pronominal. Mas o acordo interessa, é claro, a gente poderosa. Ou não teria sido implementado contra tudo e todos. No Brasil, creio que sobretudo interessa às grandes editoras que publicam dicionários e livros de referência, bem como didáticos. Se cada casa brasileira que tem um exemplar do Houaiss, por exemplo, adquirir um novo, dada a obsolescência do que possui, não há dúvida que haverá benefícios comerciais para a editora e para a Fundação Houaiss – Antonio Houaiss, como se sabe, foi um dos idealizadores e o maior negociador do acordo. O mesmo vale para os autores de gramáticas e livros didáticos – entre os quais se encontram também outros entusiastas da nova ortografia. E não é de espantar que tenham sido justamente esses – e não os linguistas e filólogos vinculados à universidade – os que elaboraram o texto e os termos do acordo. Nem vale a pena referir mais uma vez o custo social de tal negócio: treinamento de docentes, obsolescência súbita de material didático adquirido pelas famílias, adequação de programas de computador, cursos necessários para aprender as abstrusas regras do hífen e outras miuçalhas. De meu ponto de vista, o acordo só interessa a uns poucos e nada à nação brasileira, como um todo. Já Portugal deu uma prova inequívoca de fraqueza ao se submeter ao interesse localista brasileiro, apesar da oposição muito forte de notáveis intelectuais, que, muito mais do que aqui, argumentaram com brilho contra o texto e os objetivos (ou falta de objetivos legítimos) do acordo.
TP. Tem um iPad? E um Kindle? Como vê o futuro do livro em papel num mundo tomado de assalto pela revolução digital e pelo download pirata?
PF. Tenho um iPad. Não tenho um Kindle. Sou um entusiasta da informática, mas acho que o livro em papel terá ainda um longo futuro, por uma razão simples: é uma tecnologia perfeita para a preservação da informação, que não fica antiquada, não depende de atualizações periódicas do sistema operacional, não custa muito caro, não é sujeita a roubo, nem a irremediáveis avarias por queda, vírus ou descuido de armazenamento. É evidente, porém, que a forma digital ganhará cada vez mais espaço, pelo custo baixo dos livros eletrônicos, pela sua portabilidade (leva-se uma biblioteca pessoal num iPad hoje – um dia talvez levemos o equivalente a todas as bibliotecas do mundo) e pela rapidez de acesso à informação. A médio prazo, é provável que o livro impresso, tal como já começa a acontecer, venha a ser preferencialmente ou um objeto de arte, ou o lugar de materialização do valor intelectual, no sentido que é fácil e barato publicar na internet, mas caro e complicado publicar em papel – o que pode ser lido como: “o que vale a pena incontestavelmente resulta num livro de papel”.
Quanto ao download pirata, creio que é inevitável, por enquanto. Mas hoje, com os scanners e câmeras digitais (além da velha máquina de fotocópia), o livro de papel tampouco está protegido do download pirata. Creio que, desse ponto de vista, o livro eletrônico seguirá o rumo aberto pelo interesse da indústria fonográfica, desenvolvendo mecanismos de controle de cópias e preservação do direito autoral. Mas como os valores envolvidos são menores, não acredito que o controle será eficaz. E devo confessar que, como professor, me valho muito das bibliotecas digitais, inclusive da do Google – e gosto muito quando encontro disponível um livro de que preciso.
Não é, porém, no download do livro novo que se processará a mudança mais interessante no mercado livreiro. É no que toca ao download de livros clássicos ou em domínio público. Aquela parte do catálogo das editoras que consistia na republicação, sem aparatos e notas novas, de textos clássicos sofrerá grandes golpes. E isso – veja como sou otimista – é bom, pois só fará sentido, em breve, publicar em papel um livro clássico se essa publicação apresentar um diferencial, uma novidade, seja no apuro gráfico, na preparação do texto ou no aparato crítico.
TP. Pode indicar alguns dos livros que mais gosto lhe deu editar até hoje?
PF. Um dos livros que mais gostei de editar foi A formação do nome – duas interrogações sobre Machado de Assis, de Abel Barros Baptista. O livro, que em Portugal se chamava Em nome do apelo do nome, nunca foi distribuído. A editora que o produziu morreu antes de o dar à luz. Fiquei muito feliz, assim, por poder, assim que assumi a Editora, publicar esse livro notável, que existia apenas na casa do seu autor, e que estava destinado a alterar a leitura brasileira de um dos textos mais referidos aqui, que é ensaio sobre o instinto de nacionalidade, de Machado.
 
Também me deu grande alegria publicar a segunda edição de O teatro do sacramento, de Alcir Pécora. Esse livro, que estabeleceu novos parâmetros de leitura do barroco brasileiro, estava esgotado havia tempos. No aniversário de 10 anos da primeira publicação, tive oportunidade de fazer nova edição, tendo eu mesmo cuidado de lhe desenhar a capa e de dirigir a diagramação.
Muito me alegrou também poder publicar, pelos mesmos motivos, o livro A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen.
 
Por fim, eis alguns outros motivos de satisfação pessoal: Poesia pois é poesia, de Décio Pignatari; O livro agreste, de Abel Barros Baptista; A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em tradução de João Trentino Ziller e com as ilustrações originais de Botticelli; O modernismo brasileiro e o modernismo português, de Arnaldo Saraiva; O conceito de universidade no projeto da Unicamp, de Fausto Castilho; e Poesia e crise, de Marcos Siscar. Também gostei muito de poder publicar as traduções de Augusto de Campos e o livro de ensaios de Paulo Leminski – especialmente este último, que reuniu textos até há pouco de muito difícil acesso.
 
TP. Em que situação gostaria de deixar a Editora da Unicamp quando chegar a hora de abraçar outros desafios?
PF. Gostaria de a deixar muito profissionalizada. O que estou conseguindo fazer por meio não só da constituição de um corpo de funcionários de rara competência, mas principalmente com o trabalho em equipe de três gerentes notáveis, que se encarregam da produção, das vendas e da administração, bem como de um assistente técnico administrativo que faz todos os contratos, contatos e acordos internacionais. Como a Unicamp prima pela qualidade acadêmica, penso que o próximo conselho editorial será tão rigoroso e participante como o atual. Assim, tendo publicado boa parte do catálogo hoje disponível e tendo constituído essa equipe, creio que já posso dar por encerrada esta etapa da minha vida profissional, com a sensação do dever cumprido.
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Febre de Eça

Febre de Eça


[Publicado na Folha de São Paulo, em 13/8/2000. Em formato original em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1308200008.htm]


Há um século, no dia 16 de agosto de 1900, Eça de Queirós morria em Paris, com 55 anos. A notícia repercutiu fortemente no Brasil. É que Eça não era aqui apenas um romancista de sucesso. Era já havia tempos a figura idealizada que o jovem Alberto de Oliveira, quando o viu certa vez no Porto, ficou contemplando como se fosse "um pequeno deus". De fato, desde pelo menos a publicação de "Os Maias", em 1888, a intelectualidade brasileira parece ter sido acometida, para usar o termo criado por Monteiro Lobato, por uma "ecite": uma febre ou paixão intensa por Eça de Queirós, que vai atravessar, sem perder a força, pelo menos as duas primeiras décadas deste século.
A especial afeição brasileira por Eça de Queirós, porém, parece ser ainda anterior aos anos 80 e deve-se a um conjunto amplo de motivos. Por um lado, o romancista não aparecia ao público apenas como o autor de umas tantas obras-primas. Era uma presença muito mais próxima: um jornalista que escrevia regularmente nos periódicos brasileiros, opinando sobre os mais diversos assuntos.
De fato, só na "Gazeta de Notícias", Eça escreveu durante 16 anos seguidos, a partir de 1880. Além disso, tinha sido um dos jovens rebeldes que, ao lado de Antero de Quental e Teófilo Braga, se empenharam na denúncia do atraso político, moral e científico das nações ibéricas: era um dos representantes da já mítica Geração de 70, iconoclasta e modernizadora. Era também o autor das "Farpas" (1871-72), em que não só satirizara a sociedade portuguesa do seu tempo, mas também ironizara cruelmente o imperador do Brasil, d. Pedro 2º, no momento mesmo em que começava a fortalecer-se o republicanismo no país.
Por tudo isso, no ambiente encharcado de propaganda republicana dos últimos anos do Império e de propaganda antilusitana nos primeiros anos da República, Eça podia ser visto como um aliado progressista: um equivalente, para a vida portuguesa sua contemporânea, do que era o seu amigo Oliveira Martins para o passado dessa mesma sociedade. Quanto a esse ponto, vale ainda observar não apenas que o naturalismo foi geralmente assimilado ao positivismo e à ideologia republicana, mas também que o pensamento de Oliveira Martins ainda em 1902 forneceria a base de um livro tão importante quanto o "América Latina -Males de Origem", de Manuel Bonfim. Por outro lado, é certo que Eça de Queirós era, sob muitos aspectos, o oposto do outro grande romancista português havia pouco desaparecido, Camilo Castelo Branco. Camilo representava, para a maioria dos escritores brasileiros do tempo, o censor caturra, o ciumento corretor da linguagem utilizada deste lado do Atlântico. Era, além disso, o romancista da predileção da grande colônia portuguesa, que nele via o seu escritor por excelência: o que dispunha suas histórias em linguagem e paisagens legitimamente lusitanas. Eça, por sua vez, exibia uma linguagem muito diferente, de sintaxe mais direta e de vocabulário menos exuberante, cheia de neologismos e estrangeirismos, principalmente galicismos. Tão incorreta talvez, pelos parâmetros de Camilo ou de Castilho, quanto a de Alencar ou de Varela, essa linguagem simples e ágil não recuava tampouco ante o bom-senso ou as conveniências e descrevia de modo muito "realista" os vícios que os primeiros romances do autor visavam a denunciar. "Sórdido como uma página de Eça de Queirós!" -era assim que um moralista do tempo insultava um poema que julgava pernicioso. E foi graças a "O Primo Basílio" que "realista" e "naturalista" durante um bom tempo foram sinônimos, para o leitor comum, de repulsivo, indecente ou obsceno. Por tudo isso, Eça de Queirós era, de modo convincente, muito moderno e muito cosmopolita. Mas a substância mais ativa na promoção da "ecite" não foi nenhuma dessas, e sim a célebre ironia queirosiana, que, depois de "O Primo Basílio", vai marcar cada vez mais inconfundivelmente os seus romances, tanto na construção da frase, quanto na composição das personagens. Diferente da ironia romântica que, tal como aparece em Camilo e mesmo em Garrett, tem sempre um travo de amargura, a de Eça supõe uma atitude de espírito de luminosidade constante, um jeito de olhar que ao mesmo tempo promove a crítica dos costumes e reafirma o afastamento do analista em relação ao objeto da sua análise. Reconhecemos logo o estilo de Eça em frases simples como, por exemplo, "encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, esmagando o meu embaraço" ou "a figura de Napoleão sobre rochedos enfáticos". É a essa ironia, a esse sistemático olhar analítico, tingido de humor e de ceticismo, que se deve o fato de não haver heróis positivos no elenco dos protagonistas queirosianos. São sempre ou francamente negativos, como a Luísa, de "O Primo Basílio", ou o Raposão, de "A Relíquia", ou ambíguos e esbatidos, como o Gonçalo, de "A Ilustre Casa de Ramires", ou o Carlos, de "Os Maias". As personagens secundárias, por sua vez, são usualmente desenhadas com traço mais forte, ou para rebaixar, por contraste, as principais, ou para proporcionar uma síntese caricatural, reveladora do ambiente da época retratada no romance.
Esse procedimento produziu tipos inesquecíveis: o Conselheiro Acácio, o poeta romântico Alencar, a empregada Juliana, o revolucionário e inconsequente João da Ega, entre outros. Desses, a criação mais popular é, sem dúvida, o Conselheiro de "O Primo Basílio", que passou a integrar o patrimônio da mitologia e do vocabulário comum, pois desde os anos 80 do século passado pode-se dizer de qualquer figura pomposa e vazia que é um "acácio" ou que é uma figura "acaciana".
Estruturada a partir desse olhar distanciado e descrente, a narrativa queirosiana não vai firmar o desenvolvimento do enredo romanesco nas paixões, nem na coerência psicológica das personagens ou nas determinações fatais à sua liberdade. Pelo contrário, uma tendência forte do romance de Eça é a de se estruturar em painel mais ou menos alegórico, composto a partir da construção muito realista de situações particulares. Disso resulta uma narrativa cuja unidade não provém da verossimilhança realista do conjunto, mas é construída pelo recurso sistemático à intertextualidade e às simetrias e espelhamentos na construção dos episódios, das cenas e das personagens. Resulta também uma voz narrativa que nunca deixa de enfatizar os aspectos sensórios de cada um deles, destacando o que é mais ridículo, mais sedutor ou apenas mais plástico em cada momento da romance.
Esse conjunto de características da ficção queirosiana faz com que sua obra descreva uma curva que, se tem a sua origem num livro naturalista como "O Crime do Padre Amaro", rapidamente se afasta desse tipo de discurso e método compositivo, em direção ao que A.J. Saraiva denominou "impressionismo".
Esse afastamento já é bastante notável no segundo romance de Eça, "O Primo Basílio". O primeiro a dar conta da novidade desse texto foi o próprio escritor, que, assim que o livro saiu, escreveu a Teófilo Braga e fez um longo ato de contrição por não ter feito um romance ortodoxamente naturalista. Por outro lado, quando o livro foi publicado no Brasil, Machado de Assis logo notou que as suas personagens careciam de determinações fortes de qualquer tipo, fossem internas ou externas, e que o próprio enredo se montava a partir de uma série de acidentes, de casualidades. A autocrítica de Eça era claramente defensiva e por isso apresentava como defeito tudo o que fosse fuga ao receituário naturalista. Já a avaliação de Machado era moralista e se fazia de uma perspectiva marcadamente romântica. Mas ambas acusavam a existência nesse livro de uma nova forma de composição, que só ganhará força desse momento em diante na obra do autor.
Dois anos depois, em 1880, vem a público "O Mandarim", em que se completa o abandono da maneira naturalista. E após mais oito anos, em 1888, Eça publica "Os Maias". É o ponto alto da maturidade do romancista, no pleno domínio de uma maneira própria, e é, também, o ápice da "ecite" no Brasil.
Os dois grandes livros seguintes já serão póstumos: "A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Em ambos, acentua-se o traço alegórico e o distanciamento irônico da voz narrativa. Por isso, o primeiro vai ser objeto de graves reparos por parte dos críticos mais fiéis ao paradigma romântico/realista, calcado na verossimilhança psicológica e na construção orgânica da narrativa. A.J. Saraiva, por exemplo, vai escrever que dois defeitos principais de "A Ilustre Casa" são que a personagem central é um títere (é a mesma acusação de Machado a Luísa) e que o livro todo "é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício".
De fato, desde "O Primo Basílio", que José Régio considerava o mais bem construído romance de Eça, o escritor já pratica um tipo de literatura que, sem ser naturalista, continua a ser anti-romântica e se apresenta afinada com a evolução do romance europeu, principalmente com o esteticismo de um Huysmans, para não mencionar ainda outros escritores de grande voga na virada do século e pouco depois, como Oscar Wilde e Anatole France.
Assim, não é de estranhar que, para os brasileiros do final do século 19 e começo do 20, Eça tivesse encarnado adequadamente o ideal de modernidade; que tivesse representado para os leitores e escritores brasileiros um modelo, em língua portuguesa, do esforço para superar o velho mundo romântico (que no Brasil se confundia com o país monárquico, rural e escravocrata) e construir uma nova cultura: citadina, burguesa e republicana, fundada na instrução e no discernimento do cidadão médio. Um modelo, enfim, daquilo que era o título de um conto belíssimo, temperado de ironia e autocrítica, que Eça publicou originalmente em 1892 na "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro: "Civilização".



domingo, 30 de junho de 2013

O jogo dos sentidos em Eça de Queirós



O jogo dos sentidos em Eça de Queirós [1]




            A mais famosa crítica já feita ao romance queirosiano foi a resenha que Machado de Assis publicou de O Primo Basílio logo que o romance foi lançado.
            Não vou tratar aqui em pormenores desse texto tão importante quanto, me parece, mal lido nos últimos tempos. Principalmente porque já o fiz muito recentemente.[2] Mas devo comentá-lo de passagem e topicamente, porque o ponto que me interessa discutir aqui é um aspecto da obra de Eça que, desde o texto de Machado, está devidamente identificado na sua importância e singularidade, mas nem sempre tem sido corretamente avaliado e interpretado do ponto de vista da estrutura do universo queirosiano.
Trata-se do que se poderia chamar de sensualidade ou, para usar uma palavra que elimine  impertinentes conotações sexuais, sensoriedade.
            Machado de Assis percebeu bem que a notação de gestos, odores, matizes, volumes, texturas, sons e sabores tinha enorme importância na narrativa do romancista português. Mas, sendo a sua perspectiva informada por uma exigência de funcionalidade dramática e psicológica, entendeu essa notação minuciosa como gosto pela superficialidade e atendimento a preceito de escola. Foi o que denominou, no primeiro registro, "preocupação constante com o acessório" e, no segundo, estética de "inventário".
            Para Machado, naquele momento, o que contava para a qualidade de uma narrativa era a sua estrutura dramática, centrada na tensão criada entre personagens ou dentro de personagens. Era só em função desse núcleo de interesse, que é em última análise o quadro psicológico, que poderiam ganhar sentido os gestos narrados, bem como as percepções sensórias e a construção minuciosa de ambientes. Ou seja, à descrição e à apresentação sensual Machado só reconhecia pertinência na medida que estivessem diretamente subordinadas ao núcleo dramático, a serviço dele. Daí que não pudesse receber bem o texto de Eça, no qual predomina um outro tipo de linguagem, de orientação mais épica (no sentido de mais descritiva), em que o mundo narrado é iluminado sob vários ângulos e apresentado ao leitor como sendo composto de objetos interessantes em si mesmos.

            No caso de O Primo Basílio, Machado condena três cenas do romance, afirmando que elas só existem devido ao gosto pelo acessório. São elas o jantar na casa do Conselheiro Acácio, a conversa de Julião e Sebastião na confeitaria e a encenação do Fausto no Teatro S. Carlos.
            Embora valesse muito a pena investigar porque justamente essas três cenas parecem hoje, cento e vinte anos depois, primorosas, não posso fazê-lo aqui. Assim, limito-me a comentar rapidamente a última delas, a cena da ópera, que está no final do livro.
            Ora, para compreender o lugar e a função da cena, é preciso lembrar que a música do Fausto de Gounod é uma das referências mais recorrentes ao longo da narrativa. Uma das suas árias é mesmo uma espécie de leit-motiv do romance: a que Fausto canta no momento imediatamente anterior à sedução de Margarida. Essa ária é cantada primeiro por Jorge, o marido, e depois por Basílio, no momento mesmo em que Luísa a ele se entrega pela primeira vez. No dia em que assiste ao Fausto no teatro, o pensamento de Luísa está em Juliana, a empregada chantagista, e no que estaria acontecendo em sua casa. É nesse momento de ansiedade, ao lado do marido, que Luísa ouve a ária sobre os astros de ouro e rememora a própria sedução. A cena, portanto, tem uma função precisa: a função de conjugar, numa recollectio irônica, os motivos fáusticos espalhados ao longo da narrativa e a decepcionante história pessoal e amorosa de Luísa. E a forma como o faz é pela descrição da reação emocional de Luísa a um mesmo estímulo que fora tão importante no momento anterior, o da sua sedução. Do momento em que se ouve a ária em diante, tudo descamba: Luísa desinteressa-se, enjoada e ansiosa, da cena do palco, e é pelos seus olhos que o leitor vai contemplar uma cena ridícula de briga, bebedeira e vômito na platéia.

            O Fausto, embora seja a principal, é apenas uma das muitas referências ao universo da ópera e da música profana em O Primo Basílio. Desde a primeira página do romance, até o momento em que Luísa adoece, o intertexto musical domina absoluto. Depois que seu estado de saúde piora, já não há menção a qualquer melodia. E de tal forma se organiza o intertexto musical, que mereceria uma análise demorada a forma como esse "motivo" se junta a outros "motivos" (literários e pictóricos, principalmente) para formar um sistema bastante cerrado de alusões e antecipações premonitórias, de recorrências de situações e de elementos simbólicos que vão responder pela impressão de grande unidade ao texto do livro. Ou seja, o que proponho é que temos aqui algo muito importante: um tipo de construção textual, que ainda precisa ser descrito com mais rigor e no qual a "solda" entre as várias partes e situações se faz por meio de um recurso que não procede da lógica das ações representadas, nem da coerência ou determinação psicológica das personagens. Na verdade, essa "solda" se dá num nível exterior à necessidade actancial e superior ao da consciência das personagens.
            Para exemplo, basta observar que, no caso específico de O Primo Basílio, não é necessário que nenhuma personagem em particular escute um piano da vizinhança tocando ao longe a Oração de uma virgem,  ou o realejo que repete a Casta Diva e outros temas do momento. É o leitor que deve perceber, em contraponto ao desejo de envolvimento adúltero de Luísa, a ironia presente nesses títulos. É como conversa entre o autor e o leitor que se erige todo o extenso comentário intertextual à história de Luísa, pois as obras lidas ou ouvidas por ela funcionam, ao longo da narrativa, não como causa, mas como contraste às suas experiências efetivas ou como prefiguração do seu destino. Ou seja, Luísa é uma leitora ingênua, mas o romancista e o leitor previsto no texto não são como ela, e podem ir saboreando, ao mesmo tempo em que contemplam a progressiva queda e humilhação da protagonista, a rede de alusões e de comentários metalinguísticos que vão anunciando e pontuando os desdobramentos da intriga.
            Da mesma forma, se observarmos os sonhos sonhados por Luísa ao longo do romance, veremos que também eles se organizam a partir da consciência do narrador e/ou do leitor, e não da personagem. O melhor exemplo é o último deles, em que se monta uma cena teatral na qual o Conselheiro Acácio desparafusa a própria cabeça e a atira ao palco para imitar o gesto do rei, que para lá atirara a esfera armilar. O ato sintetiza tudo o que o leitor já sabe da personalidade de Acácio, pois o viu em muitas situações independentes, em boa parte das quais não estava presente Luísa. Mas nada sugere, no romance, que a percepção que Luísa tem de Acácio seja similar à que o leitor e o narrador têm dele. No limite, pode-se dizer que os sonhos de Luísa são, do ponto de vista de uma estética realista, defeituosos, porque não são verossímeis, nem explicáveis dentro do horizonte de percepção e consciência da personagem.
            Por esse conjunto de motivos, a ficção de Eça pode ser considerada  frontalmente anti-romântica e, nesse sentido, anti-sentimental. Mas dificilmente poderá ser denominada "naturalista", se por essa palavra entendermos o romance em que todos os elementos reivindicam a possibilidade de serem inteiramente explicados ou deduzidos a partir de um conjunto de outros elementos que são entendidos como "causas" ou fatores determinantes passíveis de identificação objetiva.

            Para o Machado de Assis de 1878, essa forma de estruturar o romance e as suas cenas, que não se baseava na tensão psicológica, na originalidade da trama ou no choque de caracteres pareceu superficial e defeituosa. Artificial porque a intenção, ou melhor, a consciência do autor se sobrepõe às motivações internas das personagens, enquanto fator de determinação dos sucessos narrativos. As personagens, para usar sua expressão, lhe parecem "títeres". Defeituosa porque, seja com que objetivo tenha sido usada, a notação excessivamente colorida e objetiva dos ambientes e das sensações experimentadas pelas personagens lhe parece francamente imoral, quando não abjeta.
            É verdade que O Primo Basílio inteiro (e não só O Primo, mas praticamente todos os textos queirosianos) é objeto de um tratamento narrativo que ilumina  as personagens e objetos com uma luz igual e bem distribuída. Machado leu como defeito esse olhar do narrador, que vai recortando, sem destacá-las do fundo geral, algumas figuras medíocres, que nunca se individualizam completamente e que tendem, nas melhores soluções, para a franca caricatura, como é o caso do Conselheiro Acácio.
             Isto é o mesmo que dizer que Machado não descobriu (ou pelo menos não valorizou) aquilo que constitui o princípio de coesão da melhor narrativa queirosiana: a construção arquitetônica da obra como sucessão e modalização de alguns poucos motivos sistematicamente explorados, amalgamados pelo ritmo de uma frase ágil e por um ponto de vista narrativo que, ao mesmo tempo, marca seu distanciamento afetivo ou ideológico em relação ao ambiente e às personagens e se compraz no tratamento sensual desses ambientes, objetos e personagens, nivelando-os como focos independentes e dignos do mesmo tipo de atenção. Mais do que isso, abstraindo deles características puramente sensórias que funcionam, ao longo do texto, como "temas" (no sentido que essa palavra tem em música), que permitem traçar correspondência entre cenas, identificar personagens, garantir um sentido de conjunto.

            Por isso mesmo, o leitor queirosiano típico não tem o mesmo perfil do leitor de textos românticos, nem do leitor de textos naturalistas. É antes um leitor que se identifica com a voz narrativa, com a força construtiva do texto, e pouquíssimas vezes, ou quase nunca, com as suas personagens. Nesse universo, que se constrói sobre uma singular conjunção de forma discursiva épica, atenta à materialidade do mundo e à história das coisas, com conteúdo burlesco ou rebaixado, a coesão do conjunto não pode estar no nível do narrado, nem na forma interna da trama. Está, sim, no estilo, no sentido de construção textual.
            No que toca à forma geral de organização da narrativa, o resultado, nos melhores momentos, é o inconfundível olhar distanciado e profundamente irônico, mas ao mesmo tempo muito amoroso dos objetos, das paisagens e das sensações por elas desencadeadas. No que toca à expressão linguística, a conjugação do distanciamento psicológico e de amor pelos objetos produz um estilo colorido, no qual o adjetivo (esse grande desafeto dos escritores da linhagem realista) é uma estrela de primeira grandeza, que apenas cede o lugar, amiúde, ao advérbio, com o qual, aliás, frequentemente se confunde.

            Várias outras considerações poderiam ser feitas sobre o que constitui "o universo queirosiano". Com esta breve apresentação, pretendi apenas dar um tratamento possível à generalidade do tema desta mesa. Isto é, tentei apontar em que consiste o que julgo o traço mais queirosiano dentro do universo da prosa moderna de língua portuguesa.


[1] Texto escrito para ser lido na mesa-redonda O universo queirosiano, organizada pelo Instituto Camões na IV Feira Pan-Amazônica do Livro (10 a 19 de novembro de 2000, Belém, PA). Os tópicos estão desenvolvidos na introdução ao romance, pela Ateliê Editorial, também neste blog.
[2] Eça e Machado: críticas de Ultramar. In Cult - Revista brasileira de literatura, n.º 38. São Paulo: setembro de 2000.