terça-feira, 25 de março de 2025

Haikai e Haimi - um haiku de William J. Higginson

 Nem sempre o conhecimento produz um bom haicai. Creio mesmo que a intenção de fazer um bom haicai pode se tornar um obstáculo.


Em certo ponto do seu livro, Higginson conta a gênese de um de seus haicais. Aparentemente, um de que gosta bastante.

O autor está comentando a recepção de haicais, como eles rebatem nas cordas da memória individual. Em certo ponto, para exemplificar uma questão, ele narra uma sensação/emoção que lhe despertou o desejo da escrita. E prossegue expondo a intenção e as campanhas de redação, até chegar a um resultado, que indica ser “final”.

Este:

“Winter Solstice

wooden wind chimes
in the wind in the
wood smoke dusk”

Contra seus próprios princípios, acrescentou um título, porque a percepção disparadora se tinha dado no dia do solstício de inverno. E ele não queria deixar nada de fora. E por isso tirou o kigo do haicai para incluir outra coisa. Mas deve logo ter percebido que o que retirou, afinal, era o kigo – e então o reintroduziu pela janela, ou melhor, pelo título.

Outra informação, igualmente interessante, é que ele ouviu aqueles sininhos de vento de metal, mas os transformou em sinos ou campainhas eólicas de madeira, porque isso entrariam em consonância com o cheiro de madeira queimada que sentiu enquanto tocavam os sininhos. A associação que deve ter feito é entre a madeira que se queima e desaparece e a madeira que ainda permanece, tendo voz quando exposta ao vento. Uma associação por contraste.

Ele também alterou o período do dia. Tudo tinha acontecido mais cedo, mas ele terminou por mudar o haicai para o momento crepuscular, o final do dia, talvez por lhe parecer mais apropriado ao clima. No caso, talvez alguma melancolia.

Como traduzir esse haicai?

“Solstício de Inverno
sinos (ou campainhas) de madeira no vento no crepúsculo de fumaça de madeira”

Ou:
Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / na fumaça de madeira ao anoitecer

Ou ainda:

Solstício de Inverno // sinos de vento de madeira / no vento / no crepúsculo de fumaça de madeira.

Não consegui achar uma forma que me parecesse razoável.

Mas para a sensação inicial, que ele registra e da forma como a registra, talvez sim.

Higginson escreveu isto, sob o efeito imediato de ouvir os sinos de vento:

“solstício... wind in the / wind chimes”

Deveria, em português, eu acho, ser algo desta ordem:

Solstício de inverno – ah o som do vento nos sininhos de vento...

Ou:

Solstício de inverno – o vento nos sinos de vento

Não me saí provavelmente muito bem, mas creio que melhor do que no haicai em forma final.
O que talvez queira dizer que, para o meu gosto e para a minha concepção de haicai, a notação imediata de Higginson tinha haimi (sabor de haicai), enquanto o poema em forma final, não muito.

Haiku e Senryu

 Um dos livros clássicos sobre haicai no Ocidente é um manual: o “The haiku handbook – how to write, share, and teach haiku”, de William J. Higginson.


Estive relendo o livro, porque retomei um projeto antigo: escrever um manual semelhante, porém mais focado na composição.

Em certo momento deparei com a parte em que o autor diz que boa parte do que fazemos no Ocidente como haiku é, na verdade, senryu. É algo que sempre me pareceu evidente, talvez até mesmo porque depois da obra insubstituível do Blyth, o livro de Higginson tenha sido um dos que mais me interessaram.

O ponto é interessante e delicado, pois, como ele diz, mesmo no Japão a fronteira pode parecer indefinida entre um gênero e outro.

Durante a leitura, achei que valia a pena traduzir esta passagem para os interessados no tópico:

When the Committee on Definitions of the Haiku Society of America completed its work in the early 1970s, they included the following as one definition of senryu: “Loosely, a poem similar to haiku which does not meet the criteria for haiku." Although I was a member of that committee, I do not like suggesting that a senryu is a failed haiku. In the hands of those who set out to write a senryu, such as one-time editor of “American Haiku”, Clement Hoyt, a senryu "relies on a point of wit instead of provocation by contrast, as does the haiku."

“Quando o Comitê de Definições da Sociedade Americana de Haiku concluiu seu trabalho no início dos anos 1970, incluiu o seguinte como definição de senryu: "De modo geral, um poema semelhante ao haiku que não atende aos critérios do haiku." Embora eu fosse membro daquele comitê, não gosto de sugerir que um senryu é um haiku fracassado. Nas mãos daqueles que se propõem a escrever um senryu, como o ex-editor do ‘American Haiku’ Clement Hoyt, um senryu "depende de um toque de agudeza em vez da provocação por contraste, como faz o haiku."

Hesitei na escolha da tradução de “point of wit”. Wit é sagacidade, espírito (no sentido de ser espirituoso), verve, agudeza, humor inteligente. Escolhi “agudeza”, pois é uma palavra que remete principalmente à inteligência e à forma de elocução.

Num texto que eu mesmo escrevesse, usaria a palavra “sacada”, no sentido que usualmente digo que o haicai de Leminski muitas vezes repousa sobre uma sacada.

Agudeza X provocação por contraste. As fronteiras podem mesmo ser pouco precisas...

Do meu ponto de vista, tendo a pensar que, para o gosto ocidental, o haiku surja como algo mais “plano” no nível da expressão, mais sutil, demandando abertura de espírito aos sentidos vários. Um texto que repousa principalmente na justaposição – ou, como dizemos às vezes, de modo talvez um pouco pomposo, na composição ideogramática.

quinta-feira, 20 de março de 2025

O que veio antes

 Uma das evidentes vantagens da IA é fazer rapidamente algumas tarefas básicas, como redigir. Por exemplo, eu queria ver os caracteres da palavra sensei, em japonês, porque queria usar a etimologia para uma palestra. Claude.ai me respondeu: 

A palavra "sensei" (先生) em japonês tem uma etimologia interessante baseada nos caracteres que a compõem:

·        (sen): significa "antes" ou "anterior"

·        (sei): significa "vida" ou "nascer"

Quando combinados, estes caracteres literalmente significam "aquele que nasceu antes" ou "aquele que veio antes", transmitindo a ideia de uma pessoa com mais experiência ou conhecimento acumulado ao longo do tempo.

Na cultura japonesa, "sensei" é um título honorífico usado para se referir a mestres, professores, médicos e outros profissionais que possuem conhecimento especializado ou habilidades superiores em alguma área. O termo reconhece o respeito devido a alguém que "veio antes" no caminho do conhecimento e, portanto, pode guiar outros.

É claro que eu poderia ir ao google e copiar os caracteres e depois escrever algo assim. Mas foi coisa de um segundo apenas.

Agora tenho uma boa definição. Na minha palestra, partirei dessa definição para falar um pouco da degradação da autoridade – da auctoritas – do professor nos dias de hoje.

Para trabalhar com o conceito latino de auctoritas, de novo pude me valer de Claude, conseguindo de modo eficiente a informação relevante:

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O conceito latino de "auctoritas" é fundamental para entender a estrutura política, social e cultural da Roma Antiga.

"Auctoritas" refere-se a uma forma de influência social que não é baseada no poder coercitivo (potestas) ou na força militar (imperium), mas sim em um tipo de autoridade moral, prestigioso e legitimador. É um poder informal que vem do reconhecimento social da sabedoria, experiência e integridade de uma pessoa ou instituição.

Características principais da auctoritas:

1.     Era uma qualidade pessoal baseada no mérito, virtude e realizações, não apenas um título formal ou posição

2.     Permitia que seu possuidor influenciasse decisões e comportamentos através do respeito e da persuasão, não por ordens diretas

3.     Estava fortemente associada aos anciãos (especialmente no Senado Romano - a própria palavra "senado" vem de "senex", significando "homem velho")

4.     Era diferente de poder legal (potestas) ou comando militar (imperium)

5.     Aumentava com a idade, experiência e demonstrações de prudência e sabedoria

Na República Romana, a auctoritas do Senado (auctoritas patrum) era particularmente importante - embora tecnicamente apenas consultiva, suas recomendações carregavam enorme peso pela autoridade moral coletiva dos senadores. Durante o Império, os imperadores romanos procuraram combinar auctoritas com imperium e potestas para fortalecer sua posição.

O conceito influenciou significativamente o pensamento político ocidental posterior e continua relevante para entendermos diferentes tipos de autoridade nas sociedades contemporâneas.

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Meu ponto será que um dos motivos da corrosão seja a crença de que a experiência e o conhecimento acumulado foram ou rapidamente serão ultrapassados, deslegitimados, tornados inúteis pela velocidade da evolução tecnológica e dos meios de acesso e tratamento da informação.

De fato, a imagem do velho que é incapaz de acertar a hora de um forno de micro-ondas ou de manipular um celular de última geração foi se fixando com estridência. Contaminou tudo. No campo científico, por exemplo, a figura prestigiosa do velho médico ou cirurgião, cheio de experiência, foi sendo obscurecida perante a crença na superioridade do conhecimento ou da técnica do recém-formado.

Mas o ponto que eu gostaria de frisar, nessa palestra, depois das considerações gerais, seria manifestado na própria estrutura da palestra, em que a IA desempenha um papel assim preponderante. A mesma IA que será cada dia mais inevitavelmente presente nas salas de aula, nos trabalhos escolares e nas dissertações acadêmicas.

Nesse quadro, qual a autoridade, em qualquer sentido, do mero “nascido antes”?

segunda-feira, 17 de março de 2025

furuike ya

 O haicai mais famoso é furuike ya kawazu tobikomu mizu no oto.

Há incontáveis traduções dele para inúmeras línguas.
Lembro-me sempre da tradução literal feita por Wenceslau de Moraes, o marinheiro português que foi cônsul em Kobe e depois passou o resto da vida em Tokushima:
“Ah, o velho tanque! E o ruído das rãs atirando-se para a água”
Moraes optou pelo plural. Das traduções que conheço, creio que é a única.
Em japonês tanto pode ser singular ou plural. Optando pelo singular, o tradutor aumenta o (por assim dizer) mistério. Há um lago, um poeta e uma rã. O ruído da rã saltando é único e delicado. Um plop apenas. E a ideia de solidão, de abandono do velho tanque vem para primeiro plano. Como é fácil imaginar o tanque num templo (como fez Moraes na sua tradução em forma de quadra), tudo fica muito japonês e um pouco zen.
Entretanto, é perfeitamente possível ler “rãs”, no plural. A cena, então, seria mais prosaica: há um tanque e quando o poeta caminha para ele algumas rãs, assustadas, saltam para dentro. Ou seja, em vez da observação minuciosa em um ambiente restrito, podemos estar agora em campo aberto e em vez de um plop solitário, uma sequência meio barulhenta.
O que mais gosto na tradução de Moraes, porém, é que ela está feita em duas frases apenas.
Eu não consegui isso, no “Haikai – antologia e história”. Fiz “em prateleira”, 3 frases, embora desde aquela época me parecesse claro que os dois últimos segmentos devessem ser uma sentença.
É que na época me vi prensado entre dois princípios.
Um deles é o que acabo de referir: o haicai é dividido por um corte, não por dois. O bom haicai tem, portanto, duas partes e não três.
O outro é que as coisas ou as ações são, nos melhores haicais, grafadas na ordem da percepção.
Ora, aqui o poeta vê o tanque – primeiro segmento do poema, marcado pelo corte da expletiva “ya” – depois vê o mergulho das rãs e ouve o barulho da água.
Na tradução de Moraes, primeiro vem o barulho e depois as rãs. É um poema centrado no som. No original, o verbo tobikomu põe peso no visual, pois – como explorou Haroldo de Campos – é formado por saltar e mergulhar. Portanto, no de Moraes, o poeta deduz que são rãs saltando. Nas traduções corriqueiras, o poeta vê e depois ouve.
Parece nada, mas – glosando Pessoa – em poesia às vezes o que parece nada é tudo.
Tanto é verdade que, se eu fosse conciliar os dois princípios, teria de ter traduzido mais ou menos assim:
Velho tanque –
Da(s) rã(s) saltando,
O barulho de água.
Mesmo assim perderia a ordem dos fatos no último verso, só recuperável com "da rã mergulhando / na água o barulho".
Funcionaria? Com essas inversões violentas, eliminando a naturalidade da expressão? Duvido...

domingo, 16 de março de 2025

De novo, o haicai

 Aos poucos vou voltando ao haicai. Li por esses dias um livro interessante. Esse cuja capa vem nesta postagem.

Segue o caminho inverso dos livros bilíngues. Aqui, haicais de brasileiros são traduzidos para o japonês e caligrafados por um artista daquele país.
Enquanto lia, fui anotando os que mais me chamaram a atenção, por um motivo ou outro.

1.
fim da tarde –
duas formigas
escalam a folhagem. Diego Petrarca

2.
meu coração adia
tudo que não é
poesia Léo Cruz

3.
meu plano - festejar
a virada de cada mês
como se fosse de ano Marcelo Pires

4.
paisagem colorida –
de quando em quando
uma vaca em preto e branco Ricardo Silvestrin

Considerando esses quatro haicais, vejo que a presença de Leminski e/ou Millôr é sensível em metade. A sacada anima, se casa bem com a forma breve. Os meus preferidos, entretanto, são os que me parecem ter mais sabor de haicai. Ou então: os que correspondem mais à minha concepção de haicai.
O de Silvestrin é uma descrição objetiva, mas que se apoia também numa sacada. A gente lê normalmente o poema até o último verso, em que a vaca malhada é descrita como em p&b, contrastando com o – por assim dizer – RGB da paisagem. Isso dá um toque de graça ao verso.
O de Petrarca é também uma descrição objetiva, mas sem apoio em sacada ou trocadilho ou referência cultural.
Qual a relação entre o fim de tarde e as duas formigas que escalam a folhagem? Por que só duas formigas? Onde está o poeta? Onde é essa folhagem? Por que ele resolveu anotar isso?
Não é possível responder a nenhuma dessas perguntas. Por isso mesmo essas duas formigas, num final de tarde qualquer, escalando uma folhagem qualquer se fixam na memória, disponíveis para que nelas projetemos sentidos, percepções, experiências. São um símbolo objetivo, por assim dizer.
Fechado o livro, os poemas 1 e 4 permaneceram na memória da leitura. Mas se consigo explicar por que me lembro do poema de Silvestrin, não consigo explicar por que me lembro ainda mais do poema do Petrarca. Essa é a marca, o sabor, o gosto particular do haicai.

 

 

2.

 

Alguém me escreve, inbox, que o haicai na sua origem tem humor. É verdade. A própria denominação, como se sabe, é uma caracterização de um tipo de poesia, baseada na seriedade do renga. Renga informal, cômico, engraçado etc. Meu ponto tampouco era condenar o humor ou um tipo de haicai. Muito menos o de Leminski, que estudei e acho na verdade um tributo a Millôr, esse gênio do humor. Há lugar para todos debaixo do sol. Meu comentário, como todo comentário crítico, traz um gosto, busca a expressão de um gosto - e muitas vezes promove um gosto ou tenta explicitar um gosto; ou ainda influenciar o gosto do leitor. É da natureza da crítica. No caso, entre os quatro haicais que me chamaram mais a atenção no livro, dois ficaram na memória espontânea da leitura. Eu disse que entendo por que um deles ficou, mas não entendo por que o outro também ficou. Daí explicitei a minha honesta preferência, sem desfavor de um poeta ou favor de outro, por um tipo de haicai - o mais plano, por assim dizer. Isso tem a ver certamente com o que eu entendo do haicai tradicional, e principalmente do que escolhi ali como interessante para a nossa tradição - em outras palavras: o que existe lá que mal existe aqui e eu posso aproveitar. E tem a ver com o tipo de haicai que eu mesmo procuro escrever, que já foi descrito por um companheiro das trilhas do haicai como "descolorido" - e creio que é uma boa definição.

 

3.

 

Quando publiquei "Toques", em 2020, Antonio Fabiano escreveu uma resenha simpática: “As descoloridas pinceladas dos haicais de Paulo Franchetti”. Antonio Fabiano, que em haicai se chama Seishin, do meu ponto de vista acertou a mão logo no título. Não devo comentar a sensível e generosa análise que faz de alguns haicais desse livro. Basta referir, para o que pretendo aqui, o fecho do texto: “Por essas e outras, com seus descoloridos haicais e despretensiosa atuação poética, o haijin do 'Oeste' se configura como um caso singularíssimo no cenário nacional de tantos e tão mais brilhantes haicaístas.” Essa formulação final me foi especialmente gratificante. Se há algo em que me reconheço é nessa ideia de uma despretensiosa atuação poética. É o contrário da minha às vezes incisiva atuação crítica e teórica no que diz respeito ao haicai. Talvez porque, como disse na postagem anterior, eu tenha me esforçado para buscar, na tradição longínqua do haicai japonês, algo que me parece bom e útil fortalecer dentro do nosso próprio horizonte literário. E o que seria isso? O haicai como poesia da modéstia, da magreza, da notação imediata do que o espírito recolhe como imagem ou eco ao seu estado, como utilização do mínimo para produzir apenas o suficiente. Ou seja, de uma forma ou de outra, fico feliz de perceber que, na opinião de um companheiro de jornada, meus descoloridos haicais cumprem seu papel, humildemente, descoloridamente.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

O tio da caminhonete de Pablo Simpson

 Recebi por esses dias um livrinho interessante de uma coleção interessante de uma editora interessante. 


Trata-se de “O tio da caminhonete”, de Pablo Simpson, publicado na Coleção Caravelas, da Editacuja Editora. Para completar a informação: São Paulo, 2021. 


A arte visual é de Fernando Morato, desde a envolvente sobrecapa, até os desenhos ótimos, que batem papo com o texto ao longo das páginas. 


Na ficha técnica encontro mais amigos, ex-alunos da Unicamp. Lá estão Pedro Marques, na curadoria da coleção, e Marcelo Beso, na revisão. E entre os autores já publicados, mais alguns: além do Pedro, o Marco Catalão, de quem já falei aqui, numa dessas crônicas de leitura, e Francine Ricieri, cujo “Eppur si muove” propus a mim mesmo comentar um dia desses e terminei por não o fazer.


O livro de Pablo vale a leitura. E os desenhos de Fernando, idem.


O que me agradou mais foi a mistura. Na caçamba dessa mítica caminhonete cabe de tudo. Cabe Alberto Caeiro, que está na epígrafe e é glosado nas primeiras linhas: “Eu nunca guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse” vira “Eu nunca dirigi uma caminhonete / Mas é como se dirigisse”. Cabem Ray Charles, Santa Teresa de Jesus e Raul Torres e Serrinha nas epígrafes, e cabe, no espírito, também o irmão – porque filho do mesmo pai – de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Esse, na verdade, o inconfessado guiador, porque também aqui o poeta é o tio que guia a caminhonete e é a própria caminhonete. Além disso, ajeita-se nessa caçamba um rolo farpado de alusões e citações, confessas ou disfarçadas.


Pode ser verdade que o tio que nos fala nunca tenha guiado uma caminhonete, mas é quase certo que o poeta, sim. Porque a celebrada D-20 surge muito técnica e sensualmente descrita, do alto dos seus trinta anos, na página final. Sua biografia minuciosa, junto com a de Alberto Caeiro, revela conhecimento íntimo, atesta manipulação amorosa e constante de ambos.


Mas voltando à estrada de Sintra, aqui transmutada, ao que parece, na Washington Luís entre Araraquara e São José do Rio Preto: graças a um código QR, que remete ao Spotify, sabemos que esse hipotético tiozão vai ouvindo uma verdadeira salada musical que junta um pouco de tudo, em justaposições inesperadas:  Roberto Carlos, Jota Quest, Sérgio Reis, Johnny Cash, Mötley Crüe, forrozão...


Assim como a trilha sonora, a salada de gêneros e tonalidades afetivas é a tônica do poema. E nisso reside sua arte e interesse, porque nos meandros desse negaceio brotam trevos e carrapichos de lirismo. 


Enquanto lia me lembrei de um belo poema de William Carlos Williams, “The right of way”. José Paulo Paes o traduziu. Começa assim:


O DIREITO DE PASSAGEM 


Transitando com a ideia posta

em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem

eu desfruto a estrada por

efeito de lei —


Direto de passagem não é boa tradução. É uma via preferencial, na qual o poeta pode dirigir sem se preocupar em parar nos cruzamentos e assim ir contando o que vê à margem da estrada.


No poema de Pablo não há direito de passagem, e o momento de autoestrada é breve: aqui não há narrativa de escopo realista, mas uma série de montagens paródicas e irônicas.


Talvez por isso mesmo me tenha lembrado também de um texto de Freud que me causou muita impressão quando o li na juventude. 


Se me lembro bem, Freud dizia que quando um eu se abre com outro, se aproxima muito, o movimento do outro é de fechamento, de erguer barreiras, de se afastar. Freud então se pergunta por que e como a exposição de algo muito íntimo num poema ou numa obra de arte nos atinge, passa as barreiras, nos causa empatia, pode nos comover profundamente.


Talvez eu não tenha resumido bem, mas a ideia era essa, a pergunta era essa. E a resposta dele foi que a arte nos distrai. A forma nos ocupa, nos atrai a atenção. E o conteúdo psíquico nos atinge. Mais ou menos como um truque, uma espécie de prestidigitação psíquica.


(Este é um resumo bem condizente com esta manhã preguiçosa e calorenta de sábado, que me impede de ir buscar o texto e de o reler.)


Pois bem, esse texto de Freud me ocorreu porque nesse passeio com a velha caminhonete acontece algo semelhante: nessa bricolagem irônica, em que o poeta joga em todas as posições, de goleiro a centroavante, algo passa – ao gosto do freguês, podia talvez dizer, mas seria uma leitura simplista – algo passa de lirismo. Um lirismo que pede passagem, tropeça nos imaginados engradados de cerveja na caçamba, habita o lema machista do para-choque, às vezes surge numa frase, outra numa só palavra encaixada para o efeito, até que fecha o livro num haicai:


 Noite e eu só sempre só

 escovo os dentes ouço

 um grilo na calçada.


É verdade que o fecho do livro – como acontece com os fechos todos, dos romances e das vidas – redimensiona o que veio antes dele, percorre-o como uma fagulha, iluminando retrospectivamente a vida ou o romance, com uma luz nova que destaca cenas e palavras que tinham ficado embaçadas ou nas quais tínhamos atentado pouco.


Seja como for, a releitura fragmentária pareceu-me tão interessante quanto a leitura. O que, para mim, é um tipo de, como se dizia antigamente, prova dos nove.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A máquina escreve um poema - outras o analisam

 Este poema foi escrito pelo Claude.ai, como glosa de um poema de Fernando Pessoa

 

 

O Tecer das Palavras

 

Quando teço as palavras

No silêncio da mente,

Não são meras lavras

Do que a alma sente.

São mais. São presentes.

 

Cada verso que nasce

Entre sonho e vigília,

É um mundo que pasce

Na doce família

Das coisas que cria.

 

A verdade do verso

Não está no vivido,

Mas no universo

Do não percebido,

Do quase esquecido.

 

Por isso quando escrevo

O que parece ser meu,

É um canto que devo

Ao que não sei se é teu

Ou se sou apenas eu.

 

 

 

 

Pedi a outras máquinas que o analisassem.


Aqui está a análise que DeepSeek fez:

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O poema *"O Tecer das Palavras"* explora a natureza da criação poética e a relação entre o poeta, as palavras e o mundo interior e exterior. A análise pode ser feita a partir de vários aspectos, como a estrutura, os temas, as imagens e o significado simbólico.

### 1. **Estrutura e Forma**
O poema é composto por cinco estrofes de cinco versos cada, com um esquema de rimas que segue o padrão **ABAAB**. Essa estrutura regular e musical reforça a ideia de "tecer" as palavras, como se o poema fosse uma tapeçaria cuidadosamente elaborada. A repetição do esquema de rimas cria um ritmo harmonioso, refletindo o processo de criação poética como algo fluido e orgânico.

### 2. **Temas Principais**
- **A criação poética**: O poema aborda o ato de escrever como um processo de tecer palavras, transformando sentimentos e pensamentos em algo tangível. A metáfora do "tecer" sugere um trabalho artesanal, paciente e intencional.
- **A relação entre o vivido e o imaginado**: O poeta reflete sobre a origem das palavras, questionando se elas vêm da experiência vivida ou de um universo interior, quase inconsciente.
- **A dualidade entre o eu e o outro**: O poema explora a ambiguidade da autoria, sugerindo que o que é criado pode pertencer tanto ao poeta quanto a algo maior, talvez ao coletivo ou ao universo.

### 3. **Imagens e Símbolos**
- **"Tecer as palavras"**: A imagem de tecer sugere um processo artesanal, em que as palavras são fios que se entrelaçam para formar um todo coeso. Isso remete à ideia de que a poesia é uma construção cuidadosa, mas também algo que surge naturalmente.
- **"Silêncio da mente"**: O silêncio representa o espaço interior onde a criação acontece, longe do ruído externo. É no silêncio que as palavras ganham vida.
- **"Entre sonho e vigília"**: Essa imagem evoca um estado liminar, onde a realidade e a imaginação se misturam. É nesse espaço que a poesia nasce, em um lugar entre o consciente e o inconsciente.
- **"Universo do não percebido"**: O poema sugere que a verdadeira essência da poesia não está no que é óbvio ou vivido, mas no que está além da percepção imediata, no que é sutil e quase esquecido.

### 4. **Significado Simbólico**
O poema pode ser interpretado como uma reflexão sobre a natureza da arte e da criatividade. O ato de escrever é visto como um diálogo entre o poeta e algo maior, seja o inconsciente, o coletivo ou o universo. A autoria é questionada, sugerindo que o poeta é um canal para algo que transcende o individual.

### 5. **Conclusão**
*"O Tecer das Palavras"* é um poema metalinguístico, que fala sobre o próprio processo de criação poética. Ele celebra a complexidade e a profundidade da arte, mostrando que a poesia não é apenas uma expressão de sentimentos, mas uma ponte para o desconhecido, para o que está além da percepção imediata. A linguagem é delicada e introspectiva, convidando o leitor a refletir sobre o mistério da criação e a relação entre o eu e o mundo.

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E agora a análise do mesmo poema feita pelo ChatGPT:

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Análise do Poema “O Tecer das Palavras”

1. Tema e Significado

O poema reflete sobre o ato da escrita, apresentando-a como um processo de criação que vai além da simples expressão dos sentimentos do poeta. A composição enfatiza a dimensão quase mágica das palavras, que transcendem a experiência individual e pertencem a uma esfera mais ampla e universal. A poesia, nesse sentido, é um dom (“são presentes”) e um espaço de revelação do que é imperceptível ou esquecido.

Há também uma reflexão sobre a autoria e a origem da poesia. No último verso, o eu lírico questiona se o que escreve lhe pertence de fato ou se é algo compartilhado, algo que vem de um espaço coletivo, talvez até inconsciente.

2. Estrutura e Forma

O poema é composto por cinco estrofes de cinco versos cada, com versos curtos e um ritmo fluido, o que confere leveza à leitura. Há um jogo sonoro sutil, sem uma rigidez métrica, mas com rimas ocasionais e encadeamentos melódicos que tornam a leitura mais envolvente.

3. Linguagem e Estilo

A linguagem é simples, mas profundamente reflexiva. O uso de metáforas reforça a ideia de que a poesia é um processo de construção e tecelagem. A imagem de “tecer palavras” sugere um trabalho artesanal e cuidadoso, indicando que cada verso é fruto de uma conexão entre a mente e a intuição.

O poema também explora a oposição entre o vivido e o não percebido, destacando que a verdade poética não se limita à experiência concreta, mas reside no limiar entre o real e o imaginário.

4. Principais Figuras de Linguagem
• Metáfora: “Quando teço as palavras” (a escrita como um ato de tecelagem, construção cuidadosa); “É um mundo que pasce” (a poesia como algo que se alimenta e cresce).
• Antítese: “A verdade do verso / Não está no vivido, / Mas no universo / Do não percebido” (oposição entre o real e o desconhecido).
• Personificação: “Cada verso que nasce” (a ideia de que os versos têm vida própria).

5. Interpretação Final

O poema apresenta a poesia como um ato de revelação e mistério, um espaço onde o conhecido e o desconhecido se encontram. A identidade do poeta se dilui na escrita, levando-o a questionar se a poesia é um reflexo de si mesmo ou algo que pertence a uma dimensão coletiva.

O questionamento final amplia o significado do texto, sugerindo que a poesia não pertence apenas ao autor, mas também ao leitor, que a interpreta e ressignifica. Assim, o poema ressalta a natureza universal da arte poética e o seu poder de conectar indivíduos por meio da palavra.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Mais uma vez IA - e escrita e arte

 A última

Mencionei, em outra postagem, o que julgo ser o meu método de trabalho: ler, anotar tudo que me ocorre, verificar o que daquilo se sustenta, revisar a bibliografia, ver o que já foi explorado e depois me agarrar a alguma intuição que tiver surgido e não tiver vindo na bibliografia, ancorando nela tudo o que eu for dizer.
Faltou acrescentar que essas intuições não são fatais. Nem sempre ocorrem. E quando ocorrem, nem sempre se sustentam ou cristalizam num texto ensaístico. Quando há sucesso, arrisco pensar que escrevi algo novo, ou modifiquei algo que era assente. Senão, vou em frente com o próximo trabalho ou livro.
Por isso mesmo eu creio que máquinas de IA vão produzir um verdadeiro terremoto, um tsunami, nos campos de trabalho em que a escrita tem papel preponderante.
Por exemplo, na escola, na universidade – que é o meu terreno habitual.
Como as máquinas se abastecem ou poderão se abastecer de infinitas leituras em muitas línguas e períodos, sua capacidade de esgotar o campo de referências, combinando-as, hierarquizando-as e buscando prever o próximo desenvolvimento será enorme. Muito acima da capacidade de um ser humano normal.
A formação de estudantes, assim, terá de ser revista. Tudo aquilo que for possível fazer com uma máquina terminará por ser feito por uma máquina, às claras ou de modo sub-reptício. E mesmo que um humano possa ser treinado para fazer o mesmo que a máquina faz, qual o sentido disso? Não que não haja ou possa haver sentido, mas será preciso (eu creio) enfatizar, descobrir ou inventar um sentido novo para uma pessoa fazer em dias ou meses o que uma máquina faz em segundos. E creio que sabemos onde procurar o sentido: naquilo que chamamos de formação, que não é o mesmo que informação, embora a pressuponha.
Da mesma forma, a avaliação do conhecimento terá de ser repensada. Parece-me patético banir computadores e exigir trabalhos escritos à mão, por exemplo, como fizeram algumas universidades. Daqui a pouco se poderá chegar a desconfiar de expedientes abstrusos, como o alegado pelo então campeão mundial de xadrez, ao abandonar a disputa por desconfiança de que o adversário usava um dispositivo computacional alojado na parte terminal do intestino...
A escrita profissionalizada ou especializada sofrerá mais, no começo. O que nem sempre é ruim, pois mesmo agora as máquinas já escrevem bons artigos e relatórios, e não escrevem poesia abaixo da média do que tenho visto – e com a vantagem de não cometerem barbáries gramaticais. E, se cometerem, será com intuito criativo e não por deficiência. Também não tenho dúvidas de que em breve será melhor e muito mais barato ter uma máquina para redigir uma petição ou esclarecer um tópico da legislação do que um advogado.
No que toca à arte (a IA não só escreve, como compõe e desenha), fico divagando sobre a questão da autenticidade, da representatividade, da intenção enfim. Muitos alicerces que fincamos no romantismo e têm perdurado como aquelas estacas sob os edifícios de Veneza parecem começar a apodrecer. Quando cederem, muitos edifícios que ainda construímos sobre esses alicerces já nascerão em ruínas.
Como nos comportaremos frente a obras de arte verbal ou outra, sem saber se o criador foi humano ou computacional? Alguma coisa vai ter de mudar na nossa forma de escolher, de ver e de reagir à arte.
Como já mudou, por exemplo, no xadrez. A inventividade, a criatividade não são mais atributos humanos. E muitas vezes a máquina identifica uma jogada errada e calcula imediatamente as consequências, coisas que demoraríamos minutos ou horas para descobrir e avaliar.
É certo que um quadro ou um texto literário ou uma composição musical não são um jogo com regras definidas. Mas justamente aí é que está o problema: o que neles for um jogo, o que for aplicação de regras claras ou implícitas, muito provavelmente não será melhor do que o resultado da máquina. Tenho às vezes a impressão de que a arte, na era da IA, implicará cada vez mais, talvez, o conceito, a intenção, o testemunho humano – a radicação, portanto, fora do objeto.
Ou seja, penso que quanto mais essas máquinas evoluírem, mais teremos de nos ater (e reconhecer) ao que (se é que há algo) em nosso cérebro (e coração) é exclusivamente humano – ou melhor, exclusivamente humano para o bem. Para o mal, é mais fácil de saber.

IA e crítica literária

 Vi hoje uma entrevista de um famoso neurocirurgião, que dizia que a IA é balela, porque não é verdadeiramente nem inteligente nem artificial. Dizia ainda que ela é diferente do cérebro porque só trabalha com dados do passado. Fiquei me perguntando: ora, e nós?

Eu acho que o poder da IA é dialético, no sentido que ela “ouve” muitos e muitos textos sobre um assunto, processa o conjunto e extrai algo deles, como síntese. Ou seja, ela os faz dialogar entre si.
Pensar que não se pode criar uma hipótese a partir desse diálogo, uma hipótese nova, não parece fazer muito sentido para mim. Acho que é exatamente assim que eu funciono. Então é provável que eu também não seja verdadeiramente inteligente, embora ainda pareça claro que não sou - pelo menos do ponto de vista físico - artificial.
Mas a sério: o que uma máquina de IA nos mostra é que o processamento do conhecimento acumulado já é feito de forma muito mais eficiente pelas máquinas. Portanto, a novidade que há para extrair daí de modo lógico também será extraído por elas muito mais rápida e eficientemente.
Do ponto de vista da minha área, o que isso quererá dizer? Que texto crítico poderá ser produzido de modo mais eficiente por humanos, quando a IA estiver adulta (é atualmente uma criança, nem chegou à adolescência...).
Talvez o diferencial resida no de sempre: naquela fagulha que poderíamos chamar de intuição crítica e que consiste na projeção dos nossos problemas sobre um objeto do passado (ou do presente). Nesse sentido, a IA não parece ameaça, e sim ajuda, instrumento de apoio que permite economizar muito esforço, uma vez obtida a fagulha.
Na verdade, no que me diz respeito, será o de sempre (e pela idade, é quase certo que eu não veja a IA no esplendor da sua maturidade). E o de sempre é: quando me defronto com uma obra literária, anoto tudo que me ocorre, por mais despropositado que possa parecer no momento. Depois daquilo tudo peneirado e selecionadas as partes boas, vem o dolorido processo de revisão da bibliografia, para ver o que já foi dito e explorado e também o que posso modificar da percepção original.
Desse processo, o que sobra, no final das contas, é a pequena razão de originalidade. É sobre ela que tento, então, construir o argumento.
É provável que a máquina não tenha essa sensibilidade do tempo, essas angústias por resolver. Embora me pareça claro que em breve ela as possa emular...
Isso é que desafia e anima.

Pessanha e a história de Portugal, segundo a DeepSeek

 E aqui está o que a sensação do momento, a DeepSeek, escreveu sobre a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal;

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"A poesia de Camilo Pessanha, embora frequentemente associada ao simbolismo e à influência oriental, também mantém uma relação subtil e profunda com a história de Portugal. Essa conexão não se manifesta de forma explícita ou direta, como em poetas épicos ou nacionalistas, mas surge de maneira mais discreta, através de temas, atmosferas e uma sensibilidade que refletem o contexto histórico e cultural português do final do século XIX e início do XX.
Pessanha viveu numa época de grandes transformações para Portugal. O país enfrentava uma crise política, económica e identitária, marcada pelo declínio do império colonial, a instabilidade da monarquia e o advento da República em 1910. Embora ele tenha passado a maior parte de sua vida em Macau, distante geograficamente de Portugal, sua poesia carrega ecos dessa crise e de uma certa melancolia histórica. A sensação de desencanto, decadência e fragilidade que percorre sua obra pode ser lida como um reflexo do sentimento de um país que via seu poder e influência diminuírem no cenário global.
Em *Clepsidra*, sua principal obra, Pessanha explora temas como a passagem do tempo, a efemeridade da vida e a busca por um sentido transcendente. Esses temas, embora universais, adquirem um significado particular quando contextualizados na história de Portugal. A imagem da clepsidra, ou ampulheta, pode ser interpretada como uma metáfora para o próprio país, que vê suas glórias passadas escoarem-se lentamente, enquanto enfrenta um presente incerto. A poesia de Pessanha, com seu tom introspectivo e melancólico, parece capturar o espírito de uma nação que luta para reconciliar-se com seu passado grandioso e um futuro desafiador.
Além disso, a relação de Pessanha com a história de Portugal também se manifesta em sua ligação com o simbolismo, um movimento literário que, em Portugal, estava intimamente conectado à busca por uma identidade cultural moderna. O simbolismo português, representado por figuras como Eugénio de Castro e António Nobre, buscava renovar a literatura nacional, distanciando-se do realismo e do naturalismo e abraçando uma estética mais subjectiva e espiritualizada. Pessanha, embora distante fisicamente, fazia parte desse movimento e contribuiu para essa renovação, trazendo para a poesia portuguesa uma sensibilidade única, influenciada tanto pela tradição europeia quanto pela cultura oriental.
Por fim, a própria vida de Pessanha, marcada pelo exílio voluntário em Macau, pode ser vista como um reflexo da diáspora portuguesa e da complexa relação do país com seu império colonial. Macau, como um território português na China, era um espaço de encontro entre culturas, mas também um símbolo da presença colonial de Portugal no Oriente. A poesia de Pessanha, ao mesmo tempo que celebra a beleza e a espiritualidade da cultura chinesa, também carrega consigo a sombra de um império em declínio.
Em suma, a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal é feita de nuances e subtilezas. Sua obra não fala directamente de eventos históricos ou de figuras nacionais, mas captura o espírito de uma época marcada pela decadência, pela busca de identidade e pela tensão entre o passado e o futuro. Através de sua linguagem simbólica e introspectiva, Pessanha oferece uma visão poética e profundamente humana de um país em transição, revelando como a história e a cultura de Portugal estão entrelaçadas com sua própria sensibilidade artística."

Pessanha a a história de Portugal, segundo Claude.ai

 Pedi a Claude.ai que escrevesse um texto sobre a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal. O resultado foi surpreendente, a não ser que a máquina tenha acesso ao que andei escrevendo, mas que está ainda por publicar...

Eis aqui:
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"Camilo Pessanha (1867-1926) é considerado um dos maiores poetas do simbolismo português, e sua obra reflete profundamente o momento histórico de Portugal no final do século XIX e início do XX. Sua poesia captou, de maneira única, o sentimento de decadência e melancolia que permeava a sociedade portuguesa daquele período.

O contexto histórico em que Pessanha produziu sua obra foi marcado por eventos significativos para Portugal: o Ultimato Inglês de 1890, que abalou profundamente o orgulho nacional português; a crise da monarquia; e as transformações sociais e políticas que culminariam na implantação da República em 1910.

A obra de Pessanha, especialmente sua "Clepsidra", publicada em 1920, reflete esse momento de transição e incerteza. Seus versos são permeados por temas como a fugacidade do tempo, a dissolução, e um profundo sentimento de perda - elementos que podem ser lidos como metáforas da própria situação portuguesa da época.

Sua experiência em Macau, onde viveu grande parte de sua vida adulta, também oferece uma perspectiva única sobre o império colonial português em seu período de declínio. O orientalismo presente em sua obra não é meramente decorativo, mas reflete a complexa relação de Portugal com suas colônias e sua identidade como nação imperial em declínio.

A musicalidade característica de seus versos, com suas repetições e variações, evoca uma sensação de circularidade que dialoga com a própria história portuguesa: os ciclos de grandeza e declínio, as tentativas de regeneração nacional, e a persistente nostalgia de um passado glorioso.

Sua poesia elabora, através de imagens como água corrente, espelhos quebrados e sons que se desvanecem, uma reflexão sobre a identidade portuguesa em um momento de profunda transformação histórica. O pessimismo e a melancolia de seus versos não são apenas expressões de angústias pessoais, mas ecoam o sentimento coletivo de uma nação que se via forçada a repensar seu lugar no mundo.

Em sua obra, a decadência não é apenas um tema literário, mas uma condição histórica que ele consegue transformar em matéria poética de excepcional qualidade. Sua poesia representa, assim, não apenas um momento da literatura portuguesa, mas um documento sensível das transformações históricas de seu tempo."

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Camilo Pessanha, atirador civil

 

Em breve será lançada em russo, pela editora Dilúvio Editora, uma edição que preparei da poesia de Camilo Pessanha. Logo mais, o mesmo livro será publicado apenas em português.

 

O que há nele de novidade, além de eu ter optado por dispor de modo original a sequência dos poemas, são dois textos em que enfatizo um aspecto pouco trabalhado (ou mesmo ignorado) pela crítica. 

 

Em linhas gerais, tanto no esboço biográfico quanto no ensaio interpretativo, desmonto mais uma vez a persistente legenda de que o poeta foi um desinteressado da vida prática e política. 

 

Pelo contrário, como é fácil ver pela sua biografia documentada, o poeta se envolveu ativamente na propaganda republicana em Macau. Foi amigo de Sun Yat-Sen, o revolucionário chinês que liderou a implantação da república no seu país. Por fim, disposto à ação concreta naqueles tempos tumultuosos, o suposto “abúlico” foi, em 1911, um dos fundadores (sua ficha de sócio é a de número 2) da Associação de Atiradores Civis de Macau, destinada a defender a soberania portuguesa no território.

 

Ao longo do seu tempo na China, o poeta dedicou-se a colecionar arte chinesa, construindo uma coleção notável, que doou ao Estado português, e a estudar seriamente a língua e a literatura chinesa. Segundo depoimento de um amigo certo, Carlos Amaro, Pessanha traduziu profusamente do chinês, num caderno que chegou a levar a Portugal, mas que infelizmente se perdeu após seu falecimento.

 

No que toca à poesia, o que fiz foi mostrar como não é possível continuar a ler a poesia de Camilo Pessanha somente na clave da desistência e da atitude nefelibata. Pelo contrário: no pequeno conjunto de poemas que nos restaram dele, mais de 10% são textos em que a nação e o indivíduo, o destino de uma e o destino do outro, são – por assim dizer – intercambiáveis. Como digo lá, basta ler com olhos livres para constatar que “sua poesia entrelaça indivíduo e nação, em relações que ora podem ser compreendidas como causalidade, ora como pura tradução simbólica, na qual os sentimentos individuais encontram um adequado arsenal metafórico de alcance coletivo.”

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

haicai haikai haiku

 Acabo de ler na página Kakinet, do Facebook, um belo estudo de Edson Iura sobre os nomes “haicai”, “haikai” e “haiku”.

Nele, Edson expõe o motivo da singularidade brasileira de adotar haicai como nome geral para o poema de dezessete sons, tal como definido por Shiki no século XIX.

Corretamente, explica que isso provém do fato de que o nome nos chegou por via francesa, numa época em que a forma era lá denominada, como no livro de Couchoud, *Haïkaï”.

No mundo todo, a forma acabou por ser denominada *haiku*, que – como ele também nota – não é eufônica em português. E eu penso que é principalmente por isso que não nos convertemos à palavra moderna.

Entretanto, vale um registro curioso. O de que a primeira definição em língua ocidental desse particular modo de proceder à arte da poesia encadeada (o haikai-renga) foi escrita em português.

Ou seja, a palavra haikai é muito antiga em nossa língua. Ou melhor a transliteração de haikai, cujo h aspirado o padre optou por representar com a letra F:

E foi assim: em 1604, antes portanto, da expulsão dos jesuítas e do fechamento do Japão ao resto do mundo, na Era Tokugawa, o padre João Rodrigues publicou a sua gramática denominada “Arte da língua do Japão”, na qual encontramos esta definição muito precisa:

"Ha hua sorte de versos a modo de Renga que se chama: Faicai, de estillo mais baixo & o verso he de palavras ordinarias, & facetas a modo de verso macarronico, & este modo de Renga, posto que nam tem tantos preceitos como a verdadeira, o numero de versos pode ser o mesmo. E pode começar pello segundo verso de sete sete, que se chama Tçuquecu, & continuar com cinco sete cinco."

Quem tiver interesse no assunto pode encontrar uma edição moderna desse livro pioneiro:

João Rodrigues, Arte da lingoa de Iapam. Nagasaqui, Collegio de Iapam da Companhia de Iesu, 1604 – reprodução fac-símile: Tóquio, Hakubunsha, 1969.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Poesia da natureza – a aclimatação do haiku tradicional no Brasil

          

            O haicai é uma das formas mais populares de poesia no Brasil hoje. A partir de um núcleo formado por imigrantes e descendentes diretos de imigrantes, localizado em São Paulo, muitos outros foram se constituindo. Seguindo a denominação da célula-mater, o Grêmio Haicai Ipê, denominam-se também grêmios. 

           Nasceram esses grêmios principalmente da ação, por assim dizer, evangelizadora, desenvolvida por Teruko Oda, que deu oficinas pelo país afora e estimulou a continuidade do trabalho de seus alunos mediante a formação dessas agremiações.

            Teruko Oda é uma excelente poeta. Quem quiser conhecer a sua produção pode ver uma amostra muito significativa num livro publicado pela editora Escrituras, intitulado Furusato-no-Uta/Canção da terra natal. Trata-se de um texto misto de poesia e prosa, nos moldes dos diários poéticos japoneses, que faz retornar o haicai a uma de suas origens, a obra de Matsuo Bashô.

            Teruko é nissei e tem, com o haicai, uma ligação pessoal importante: é sobrinha e discípula de Goga Masuda (1911-2008-), que foi um dos idealizadores e principais orientadores do Grêmio Haicai Ipê, fundado em 1987.

            Masuda, por sua vez, foi discípulo de Nenpuku Sato (1898-1979).

            E aqui vale uma nota histórica e genealógica.

            No Japão, a partir da restauração Meiji, a influência ocidental se espalhou de forma avassaladora na literatura e nas artes em geral. 

            Para fazer frente ao que consideravam uma ameaça à nacionalidade e uma perda da identidade cultural, alguns escritores e artistas se empenharam na preservação das artes japonesas tradicionais. 

            Um deles foi Masaoka Shiki (1867-1902), poeta que se dedicou a promover a prática de um tipo de poesia até então denominada hokku, ou haikai-hokku. Por esse termo se designava uma composição de dezessete sons, de caráter objetivo, estruturada por justaposição de elementos e centrada numa palavra que faz referência unívoca a um determinado momento no suceder das estações do ano. Esse pequeno poema normalmente era parte de uma composição maior, coletiva, ou vinha acompanhado de um desenho.

O grupo reunido à volta de Shiki, sua escola, terminou por ser referido pelo nome da revista em que divulgava a sua produção, Hototogisu (nome japonês do pássaro cuco). 

Fundada em 1897, a Hototogisu existe até hoje e foi responsável pelo renascimento do haicai japonês em novas bases. 

Por iniciativa do mestre, a forma poética passou a ser denominada “haiku” – nome que ele criou pela contração de haikai-hokku – reforçando assim uma das bases da sua ação: afirmar o terceto como obra independente da prosa ou do desenho com que tradicionalmente fazia conjunto, ou seja, afirmá-lo como forma poética esteticamente autônoma, capaz de concorrer com as recentes formas importadas do Ocidente.

Um dos expoentes da Hototogisu foi Takahama Kyoshi (1874-1959), que sucedeu Shiki na liderança do grupo, aumentando o número de seguidores.

E aqui reatamos o fio da nossa história, pois foi através de um dos discípulos de Kyoshi, Mizuho Nakata (1893-1975), que Nenpuku Sato se iniciou no haicai da Hototogisu.

Em 1927, Nenpuku tomou um navio para o Brasil. Tinha 29 anos de idade e já era bem conceituado na arte do haiku. Vinha tentar a sorte na agricultura, no interior de São Paulo e ao partir ouviu de seu mestre: "Vá e semeie o haiku na nova terra".

Nenpuku empenhou-se a vida toda nessa missão. Divulgou o haicai por quatro estados brasileiros e ao longo dos anos granjeou cerca de 6000 discípulos que, como ele, escreveram no idioma japonês. 

Essa produção, que foi ampla, pujante e de grande relevância para a colônia, infelizmente é até hoje desconhecida dos brasileiros que não dominam o idioma japonês. Também é quase desconhecida dos japoneses e seus descendentes no Brasil, pois não foi  estudada sistematicamente na universidade, nem recolhida em volume, restando dispersa em jornais e arquivos particulares. 

Ainda na década de 1970, muitos seguidores de Nenpuku Sato eram vivos e no aniversário de 20 anos da sua morte e 40 do falecimento de Takahama Kyoshi, 100 dos remanescentes se reuniram no bairro da Liberdade para uma sessão de composição de haicais. 

O principal problema enfrentado por Nenpuku Sato e seu grupo, na aclimatação do haiku ao Brasil, foi como vincular a observação pontual objetiva, que caracteriza o haiku, a um determinado momento na sucessão das estações do ano. 

Diferentemente do Japão, onde as atividades humanas e os fenômenos meteorológicos estavam codificados e sedimentados pela prática poética secular e eram, portanto, de alcance geral para todas as regiões do pequeno arquipélago, aqui a extensão do país gerava experiências muito diversas. 

O haiku brasileiro (designemos assim o poema composto em japonês, nos moldes da Hototogisu) teve como primeira tarefa de aclimatação a necessidade de escolher e fixar termos relacionados à sazonalidade brasileira e à cultura do país: os kigos (palavras de estação). 

Sendo uma arte que tinha no registro objetivo uma das pedras de toque, não fazia sentido utilizar os kigos japoneses. Era preciso não só descobrir os kigos brasileiros, mas ainda fixá-los nas bases métricas tradicionais, o que trazia uma dificuldade a mais, pois era preciso encontrar uma forma convincente e conveniente de grafar, em japonês, as palavras brasileiras ou latinas que designavam elementos botânicos e meteorológicos, bem como os feriados religiosos e as datas nacionais. Mesmo objetos de uso comum precisavam de transliteração, como, por exemplo, o lampião, que vi referido num haiku como “aradin” – ou seja, Aladdin, que era a marca mais conhecida.

Nenpuku enfrentou com muito sucesso essas dificuldades, mas lhe faltou um último passo para semear o haiku no Brasil: escrever em português. Com o envelhecimento da população imigrante e o desinteresse dos jovens nas práticas tradicionais, essa seria a única maneira efetiva de radicar o poema japonês na sua nova terra.

Essa missão vai ser assumida por Masuda Goga, que juntamente com Teruko Oda trabalhou em duas frentes: na criação de um agrupamento poético dedicado à prática do haiku em português e na elaboração de um catálogo de “kigos” brasileiros. 

Aqui cabe uma nota terminológica: se é conveniente e correto utilizar o nome haiku para designar o poema composto em japonês no Brasil, segundo os ditames de Shiki, é também conveniente e correto utilizar o nome haicai para nomear as várias formas de apropriação do haiku no Brasil, a começar por Guilherme de Almeida e incluindo todas as demais formas, inclusive a tradicional, representada pelo grupo de Masuda Goga.

Retomando agora a nossa história, vejamos em que consistiu o trabalho de Goga.

O primeiro ponto a considerar é que a criação de um agrupamento – no caso do Grêmio Haicai Ipê – é essencial para restaurar um aspecto do haicai tradicional: a sua composição sob a supervisão de um mestre, um orientador. Os grêmios funcionaram e funcionam aqui nos moldes japoneses: estabelece-se um tema (no caso, um kigo); os integrantes escrevem; os haicais são lidos sem indicação de autoria e os membros vão escolhendo os que mais lhes agradam; escolhidos os mais interessantes, o mestre ou orientador os comenta, valorizando os aspectos que julgar adequados, e apontando soluções outras para eventuais problemas.

Para que a prática seja uniforme e conforme à tradição, estabelecem-se critérios formais. No caso, à duração das sílabas japonesas substituiu-se a sílaba poética contada à nossa maneira, e aos cortes da forma justapositiva original se fez equivaler o verso, espacialmente definido – do que resulta um terceto imparissilábico de 5-7-5 sílabas poéticas contadas até a última tônica de cada verso. E torna-se obrigatório que o tema (o kigo) indicado para a composição compareça explicitamente no terceto.

Daí a importância de haver uma listagem de kigos e – como não é nossa tradição associar sistematicamente estados de espírito a fenômenos sazonais – a necessidade de definir não só a sua ocorrência e enquadramento sazonal, mas ainda o “clima”, o “mood” associado a cada um.

Nesse ponto, creio que vale a pena esclarecer a importância do kigo para o haicai tradicional. 

O kigo – a palavra de estação  - tem duas funções principais: uma função “temática” e uma função “técnica”. 

Tematicamente, o kigo vincula o poema a um momento preciso na sucessão das estações, por meio do registro objetivo. Nesse sentido, o haicai é poesia da natureza. 

Tecnicamente, o kigo responde pela eficácia do breve poema, pois permite conotar um estado de espírito de modo muito econômico. Por exemplo, “flores” é um kigo em japonês, porque em poesia designa uma flor específica, a de cerejeira, que representa o esplendor da primavera. Sua simples menção evoca a contemplação da florada em atividades diurnas e noturnas e conota a ideia de transitoriedade, porque a observação da florada de cerejeira é também a observação do seu despetalar. Da mesma forma, a palavra “lua”, sem qualificativos, refere a lua cheia de outono. O campo seco, as primeiras chuvas de primavera, o capim alto, as primeiras neves – cada uma dessas locuções conota um preciso momento sazonal e um determinado estado de espírito, materializado em práticas culturais específicas.

            Assim, o poeta de haicai, com uma pincelada, estabelece o mood de base tradicional, que nas duas pinceladas restantes tratará de acentuar, modalizar ou mesmo contradizer.

            A importação dessa técnica, já se vê, não tem sido tarefa simples nem fácil. Não só porque a nossa tradição poética não enfatiza tanto a notação dos fenômenos naturais, mas também porque não temos associações imediatas com eventos sazonais, a não ser alguns poucos, derivados principalmente das festas e feriados religiosos.

            No Brasil, o kigo é ainda dificultado pela enorme variação longitudinal e latitudinal. O inverno, por exemplo, é uma coisa para o habitante das serras de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e outra para o habitante da Amazônia ou dos cerrados do Centro Oeste. O regime dos ventos varia igualmente, assim como o das águas da chuva e o das tempestades.

            Um problema enfrentado por um praticante do haicai tradicional é, portanto, a falta de conhecimento dos fenômenos sazonais de uma região por habitantes de outras. A dificuldade mais relevante, porém, é o fato de não estarmos acostumados a conhecer e usar muitos nomes de plantas e animais. Diferentemente da cultura japonesa, que se esforça para nomear e descrever cada flor, árvore ou arbusto – por menos importantes que sejam –, para o brasileiro médio o que não é flor é mato. E soam tão estranhas num poema as designações regionais de plantas e animais, quanto seus nomes científicos. Por exemplo, neoglazióvia, espatódea, muirapitanga ou mesmo sibipiruna. 

Além disso, não associamos nenhum estado de espírito a nomes comuns de plantas ornamentais, como ciclâmen, antúrio, samambaia, avenca ou crisântemo. O mesmo sucede no reino animal. Além dos domésticos, poucos são conhecidos e observados em base cotidiana. Por isso, os bichos, quando não são apenas bichos, parecem conformar-se em poucas categorias e entre os citadinos a desorientação é geral. Por exemplo, Paulo Leminski e Carlos Verçosa confundem (talvez por amor ao som e à paronomásia) a rã com o sapo. Para um japonês é claro que quem pula na água ao menor ruído é a rã, e que o sapo é um animal terrestre, em poucas ocasiões retornando à água de onde veio. E mesmo os fenômenos migratórios, tão importantes para a poesia do hemisfério norte ocidental e oriental, têm para nós – salvo algumas exceções – pouca ressonância literária.

Conscientes disso tudo, Teruko e Goga se dedicaram por anos a coletar e exercitar em haicais os kigos brasileiros de todas as regiões do país. Desse trabalho nasceu a primeira (e única) kigologia brasileira, publicada em volume quase dez anos após a formação do Grêmio Haicai Ipê, em 1996: Natureza - Berço do Haicai (Kigologia e Antologia).

Composto de três partes, o livro traz primeiramente um estudo e uma catalogação dos kigos brasileiros, ou seja, inúmeras palavras relativas às especificidades de cada estação em todas as regiões do país: animais, festas populares e religiosas, flores e vegetais vários, comidas sazonais, fenômenos climáticos. 

A especificidade desse livro brasileiro em relação aos catálogos japoneses, é que lá os catálogos são sistematizações de algo que se definiu na prática, ao longo de séculos. Aqui, esse catálogo alinha, talvez em primeira mão, kigos que jamais foram utilizados por qualquer poeta. 

Daí que a segunda parte da kigologia brasileira seja uma antologia, na qual vários desses kigos talvez compareçam utilizados pela primeira vez, em haicais escritos pela organizadora, com o fim expresso e exclusivo de exemplificar o texto descritivo. 

Aqui, portanto, evidencia-se a grande dificuldade dessa empresa e desse livro: uma enorme porcentagem das expressões alinhadas como kigo não se sedimentou a partir da prática poética – como no Japão –, mas nasceu de um esforço racional de identificação ou mesmo de criação dos kigos regionais e nacionais. Por conta disso, muitas dessas expressões correm o risco de soarem artificiais, ou, pelo menos, não usuais, distantes da língua quotidiana que é, afinal, o domínio e o lugar escolhido pelo haikai desde o tempo de Bashô.

É possível que a prática dos grêmios espalhados pelo Brasil, orientada pelo catálogo dos kigos brasílicos, termine por incorporar à linguagem poética comum os muitos termos sazonais que por ora parecem exóticos ou pouco coloquiais. Mas também é possível que, pelo contrário, se crie uma espécie de dialeto, que faça sentido apenas para o grupo dos praticantes.

A trajetória do haicai brasileiro tradicional ainda é muito breve e está, por assim dizer, em sua terceira geração. É difícil fazer uma previsão de qual será o seu futuro. Entretanto, uma coisa já é certa e constitui conquista singular: os muitos grupos de haicai espalhados pelo país e a divulgação do haicai tradicional por meio das mídias sociais já produziram e produzem um amplo, verdadeiro e literal (por conta das reuniões, concursos e eventos presenciais de âmbito estadual e nacional)  movimento poético. 

Se desse grande conjunto de agremiações e poetas não resultar uma produção poética significativa no quadro geral da literatura contemporânea brasileira, em termos qualitativos, ao menos já se construiu aqui uma animada forma de produção e sociabilidade poética, à volta do que podemos denominar “poesia do kigo”. 

Essa foi a principal conquista até agora na aclimatação do haicai à língua portuguesa no Brasil: mantê-lo, tal como no Japão, como prática social coletiva de observação e registro dos ciclos sazonais. Resta agora aguardar para ver que frutos produzirá esse notável e consistente esforço de construção de uma nova “poesia da natureza” brasileira.




[Texto lido no congresso Nature and narrative. Approaches to a Brazilian landscape -  Universidade da Califórnia em Santa Barbara, 13 de janeiro de 2025.]