É um livro bonito, de folhas destacáveis, impressas de um só lado. A ideia, eu creio, é oferecê-las avulsamente aos amigos. Coisa pouco provável. De qualquer forma, destaquei a que traz o título do livro e abre a seção "Poética" do livro. Foi divertido, mas logo me arrependi de ter assim profanado o livro profanável.
Fiquei sabendo que o tipo de arte aqui praticado por Diego tem um nome: blecaute. Ou blackout poetry.
No posfácio do livro, Paulo Ferraz diz que a poética de Diego é uma poética da subtração. Concordo. Mas não concordo tanto quando diz que ela pode ser compreendida como uma "poética negativa" ou como uma "antipoética". Talvez em certo sentido, mas não no principal, do meu ponto de vista.
Sucede que o procedimento é o que se vê nas fotos: o poeta escolhe uma vítima – digo: um poema – e ataca de caneta ou marcador. Não subtrai propriamente as palavras do outro, mas as cancela, apaga. Às vezes deixa entrever o cancelado; outras vezes, não. Às vezes deixa o título do finado poema à vista, ou uma marca editorial; outras vezes apaga os rastros todos, o que permite suspeitar que haja ali alguma outra transgressão, qual seja a de não haver nada embaixo das faixas de tinta. Quero dizer: é possível que o cancelamento em alguns casos seja falso e nada haja embaixo do risco.
O autor me disse que ali haveria haicais malabaristas. E é verdade que o espírito do haicai pairou sobre estas águas rabiscadas. E malabarista é o poeta, saltando de palavra em palavra de um poema alheio para dele extrair o seu.
Nesse gesto vai também, por certo, alguma crítica. O risco é corrosivo. Por exemplo, na página que destaquei, o poema homenageado/cancelado diz o seguinte:
O RISCO DO BORDADO
Poesia é risco?
Rabisco de Deus
guardado num disco
ou um asterisco
ao pé do obelisco?
Confisco do fisco?
A rês desgarrada
do aprisco? Ou chuvisco
que umedece o hibisco
no jardim mourisco?
O que fez o poeta? Cancelou quase todo o poema, que é de Ledo Ivo, mantendo apenas os substantivos do título, as palavras "Poesia é" no primeiro verso; cancelou ainda o quarto verso até a metade da palavra "asterisco". E o que obteve? Obteve a primeira frase!
Ora, daqui se extrai o título do livro – que é também, como mostra a dedicatória do livro de Diego – uma homenagem a Augusto de Campos, que em 1995 apresentou a performance "Poesia é risco".
Não seria despropositado imaginar que o poema de Ivo seja um diálogo ou uma resposta a Augusto, pois integra um livro composto entre 1991 e 1995.
O poema de Ledo Ivo é um exercício algo precioso sobre as rimas em -isco. As imagens – tirando o rabisco de Deus – oscilam entre o previsível e o kitsch. O leitor do concretista poderia ter suprimido todo o poema, a partir do ponto de interrogação do primeiro verso. Mas não: ele faz o seu leitor não imaginar que o que ele fez o poema dizer já estava dito. Pelo contrário, a impressão que se tem, ante o monte de riscos, é que Diego apagou o o disfuncional para fazer o poema dizer algo novo, que não estava nele.
Diego, porém, no final das contas, não é um concretista objetivista e seco. É um pouco lírico. E por isso, nessa mesma página escreve à mão – é a única em que faz isso – e entre parênteses: "(e o futuro, bordá-lo)". Bordar o futuro, e não seguir o risco do bordado herdado... Olha só... Neste momento depois do fim de tudo, o poeta ainda tem esperança... e caligrafia...
Mas já me perco em divagações. O ponto desta breve anotação era registrar o prazer de encontrar juntas neste livro inteligência e sensibilidade, ironia e positividade, com alguma aposta no lirismo – que aqui não é culpado (nestes tempos em que o lirismo é o sparring da tropa construtivista e pós-moderna), porque, apesar de ser próprio, é desentranhado de outros.
O poema de Ledo Ivo, assaltado e cancelado para dizer a frase de Augusto de Campos, vem numa seção intitulada "O Salteador". Muito apropriado. Diego é mesmo um salteador. Assalta poemas de Lorca e outros e extrai poemas-piada à maneira oswaldiana, num arco que vai do palavrão e da celebração sexual ao mini comentário político, passando pela alusão estética. De modo que acho que o seu lema, como ator, autor e salteador poderia ser: A ironia (com alegria) é a prova dos nove.
Eu poderia extrair algumas frases que resultaram dos rabiscos de Diego. Mas nesse caso poesia é rabisco, e sem a visão do risco muito da graça se perde.
Por exemplo:
• DO AMOR teu ventre. Um colibri persa em minha boca
• UVA trovões antimatéria vidro, planta. O gosto da tua boca.
• Passava a língua sobre o amanhecer, e o amanhecer era seu corpo que ilumina manadas secretas
• Meu melhor poema erótico está na ponta da língua:
• A lua quieta e úmida na boca do peixe
• Silêncio oblíquo o alfabeto da pedra tatuado pelo rio
Estas frases/poemas ainda guardam interesse. Mas perdem o melhor da festa, que é o livro. E o livro, como disse, vale a pena.
Em tempo, o livro saiu pelas Edições Jabuticaba, de Campinas, em 2023.
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