quinta-feira, 31 de maio de 2012

T. S. Eliot


[Jornal 6]

T. S. Eliot


[texto publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular,
em 14 de outubro de 2000]

Dentre os poetas do século XX, T. S. Eliot (1888-1965) é um dos que teve mais ampla e profunda influência sobre os contemporâneos. De fato, é fácil constatar que não só os seus versos, mas também os seus textos de teoria e de crítica da poesia deixaram marcas profundas nas literaturas ocidentais do primeiro e do segundo pós-guerra.
No Brasil não foi diferente, embora a recepção de Eliot tenha sido um bocado particular. Lido principalmente nos anos 40, Eliot vai permanecer associado aqui ao tipo de poesia que se convencionou denominar de 'Geração de 45'. É uma injustiça. E o pior é que é uma injustiça que continua sendo feita, pois mesmo hoje a tradução mais facilmente encontrável (a publicada pela Nova Fronteira) transforma Eliot num escritor empolado, amante da palavra rara e da sintaxe preciosa e que se expressa num tom uniformemente alto. Ou seja, transforma-o num poeta monótono, num chato.
Eliot pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser chato. Ou de ter apenas um tom. Pelo contrário, o que caracteriza a sua poesia é a finura na alternância e no contraste (irônico ou trágico) dos registros e a capacidade de obter efeitos muito intensos com procedimentos minimalistas.
O melhor da sua obra, do meu ponto de vista e da maior parte da crítica, são dois poemas longos: A Terra Devastada, de 1922, e Quatro Quartetos, de 1943. O primeiro, num desses inquéritos da moda, foi aclamado como o melhor poema do século XX. Do segundo pouco se fala no Brasil, embora haja dele uma boa tradução, feita por Oswaldino Marques, na Coleção Prêmio Nobel.
Na impossibilidade de comentar, neste espaço, aqueles poemas, optei apresentar dois textos breves, nos quais se pode perceber o tom mais característico da poesia de T. S. Eliot. O primeiro poema chama-se  La figlia che piange. É do começo da carreira de Eliot: foi escrito em 1911, quando o poeta estudava em Harvard e publicado apenas em 1916, numa revista de poesia de Chicago. O segundo já pertence ao período da sua maturidade. Chama-se Marina e foi escrito em Londres, em 1930.
Não é fácil a poesia de Eliot. Ela é mesmo resistente ao primeiro contato: não tem clara estrutura narrativa, e tampouco é poesia lírica, baseada no discurso confessional ou expressivo. As partes em que se divide o poema evocam ou provocam determinados estados de espírito e não se ligam logicamente umas às outras. O resultado da primeira leitura, por isso, nunca é um desenho claro, mas a percepção de que se trata de fragmentos justapostos, de sentido geral obscuro. Ficam na memória algumas imagens, algumas frases que ecoam e que provavelmente o leitor acabe por repetir mentalmente, em situações várias. Leitura após leitura, os diferentes focos parciais de atenção possivelmente se cristalizarão em um desenho, ou melhor, em vários desenhos possíveis, mais ou menos coerentes e não exclusivos.
Mas não é o caso de teorizar sobre isso, e, sim, de apresentar os poemas.
La figlia che piange significa, em italiano, a moça que chora. A epígrafe latina é um verso da Eneida, de Virgílio: "Ó virgem, como devo chamar-te?". Quem diz essa frase no poema latino é Enéas e a situação é a seguinte: ele acaba de chegar a Cartago, fugindo de Troia, e sua mãe, que é a deusa Vênus, lhe aparece disfarçada de virgem caçadora e lhe dá informações sobre o território a que chegou e instruções para entrar em contato com Dido, rainha do lugar.
Qual a relação entre a moça que chora e a fala de Enéas à sua mãe? Esse é o primeiro desafio do poema. A epígrafe sugere que o poema deva ser lido como uma história de abandono de uma mulher pelo homem a quem se dedicou. Isto é, que o devemos ler como um eco moderno da história de Dido e Enéas. Mas também pode reforçar uma leitura muito diferente. Se a pergunta é dirigida à mãe que se apresenta incógnita, não seria possível ler o poema como a reconstrução de um momento de ruptura de uma relação familiar? Essa pergunta conduz a outra: qual é a relação entre a voz que comanda a representação como se estivesse compondo um quadro ou uma cena de teatro e o conteúdo emocional da própria cena? Trata-se apenas de uma voz que constrói um cenário fantasioso, ou de um monólogo no qual alguém tenta recuperar de alguma forma uma cena para compreendê-la de uma vez e assim se livrar dela? Provavelmente, é tudo isso ao mesmo tempo. Ou melhor, a cada momento da leitura, uma dessas possibilidades vem para primeiro plano, para ser depois suplantada por outra, sem possibilidade de escolhermos uma só e a impormos sobre as demais.
O segundo poema poderá parecer menos ambíguo, mas é talvez mais rarefeito e mais obscuro. O título Marina pode ser lido de três formas diferentes: é um nome de mulher; designa o lugar onde se atracam barcos; é uma denominação genérica de um tipo de composição poética ou pictural: marinha. Já a voz que fala é a de um velho que anseia pela paz espiritual e ao mesmo tempo faz um balanço da vida, ou a de um homem assediado pelas lembranças, que anseia pela morte, uma vez que o passado é irrecuperável?
Este poema também tem uma epígrafe em latim, que foi retirada de uma peça de Sêneca, chamada Hércules furioso: "que lugar é este, que região, que parte do mundo?" O sentido do poema é independente da peça, mas o seu enredo é um pano de fundo que importa conhecer. A deusa Juno, perseguidora de Hércules, fez com que ele perdesse a razão. A frase transcrita é dita pelo herói no momento em que, após um período de idiotia, começa a recuperar a razão. Na seqüência, Hércules perceberá horrorizado que, durante o tempo em que esteve fora de si, matou, num acesso de fúria, toda a sua família.
Não é preciso saber nada disso para poder gostar do poema, que não seria um bom poema moderno se não produzisse, com as suas imagens, os seus ritmos e o seu manejo dos tons um impacto imediato sobre a sensibilidade do leitor atento. Mas penso que os leitores com mais informação ou experiência de leitura poderão lê-lo com maior prazer.
Daí estas considerações, que, resumindo alguns dos resultados da minha própria experiência de leitura desses poemas, querem ser apenas um convite (talvez um pouco longo, vejo agora) à leitura dos versos aqui apresentados e traduzidos.


La figlia che piange

O quam te memorem virgo...

Stand on the highest pavement of the stair –
Lean on a garden urn –
Weave, weave the sunlight in your hair –
Clasp your flowers to you with a pained surprise –
Fling them to the ground and turn
With a fugitive resentment in your eyes:
But weave, weave the sunlight in your hair.

So I would have had him leave,
So I would have had her stand and grieve,
So he would have left
As the soul leaves the body torn and bruised,
As the mind deserts the body it has used.
I should find
Some way incomparably light and deft.
Some way we both should understand,
Simple and faithless as a smile and shake of the hand.

She turned away, but with the autumn weather
Compelled my imagination many days,
Many days and many hours:
Her hair over her arms and her arms full of flowers.
And I wonder how they should have been together!
I should have lost a gesture and a pose.
Sometimes these cogitations still amaze
The troubled midnight and the noon's repose.


Tradução de P.F. e Eric Sabinson:

La figlia che piange

O quam te memorem virgo...

Parada no último patamar da escadaria –
Encostada num vaso de jardim –
Tece, tece a lua do sol nos teus cabelos –
Abraça as tuas flores numa surpresa dolorida –
Joga-as no chão e volta-te
Com um lampejo de mágoa nos olhos:
Mas tece, tece a luz do sol nos teus cabelos.

Assim eu o faria partir,
Assim eu a faria ficar, parada e aflita,
Assim ele teria partido


Como a alma deixa o corpo lacerado e ferido,
Como a mente abandona o corpo que usou.
Eu teria encontrado
Algum jeito incomparavelmente leve e fácil.
Algum jeito que ambos pudéssemos entender,
Simples e descrente como um sorriso e um aperto de mão.

Ela virou o rosto, mas chegando o outono
Forçou minha imaginação muitos dias,
Muitos dias e muitas horas:
Seu cabelo sobre os braços e os braços cheios de flores.
E fico imaginando como eles teriam ficado juntos!
Eu teria perdido um gesto, uma pose.
Às vezes tais pensamentos ainda assombram
A agitada meia-noite e o repouso do meio-dia.


=x=x=x=x=x


Marina

Quis hic locus,
quae regio, quae mundi plaga?

What seas what shores what grey rocks and what islands
What water lapping the bow
And scent of pine and the woodthrush singing through the fog
What images return
O my daughter.

Those who sharpen the tooth of the dog, meaning
Death
Those who glitter with the glory of the hummingbird, meaning
Death
Those who sit in the sty of contentment, meaning
Death
Those who suffer the ecstasy of the animal, meaning
Death

Are become unsubstantial, reduced by a wind,
A breath of pine, and the woodsong fog
By this grace dissolved in place

What is this face, less clear and clearer
The pulse in the arm, less strong and stronger C
Given or lent? more distant than stars and nearer than the eye
Whispers and small laughter between leaves and hurrying feet
Under sleep, where all the water meet.

Bowsprit cracked with ice and paint cracked with heat.
I made this, I have forgotten
And remember.
The rigging weak and the canvas rotten
Between one June and another September.
Made this unknowing, half conscious, unknown, my own.
The garboard strake leaks, the seams need caulking.
This form, this face, this life
Living to live in a world of time beyond me; let me
Resign my life for this life, my speech for that unspoken,
The awakened, lips parted, the hope, the new ships.

What seas what shores what granite islands towards my timbers
And woodthrush calling through the fog
My daughter.

=x=x=x=x

Tradução de P.F. e Eric Sabinson:

Marina

Quis hic locus,
quae regio, quae mundi plaga?

Que mares que praias que rochas cinzentas e que ilhas
Que água lambendo a proa
E o cheio de pinho e o tordo cantando através da bruma
Que imagens retornam
Ó minha filha.

Aquele que afiam os dentes do cão, significando
Morte
Aqueles que brilham com a glória do beija-flor, significando
Morte
Aqueles que se instalam na pocilga da satisfação, significando
Morte
Aqueles que estão sujeitos ao êxtase dos animais, significando
Morte
Tornaram-se insubstanciais, reduzidos por uma brisa,
Um sopro de pinho, e a névoa da canção do bosque
Por esta graça dissolvida no espaço

Que rosto é este, menos e mais claro
O pulso no braço, menos e mais forte –
Dado ou emprestado? Mais longe que as estrelas e mais perto que os olhos
Sussurros e risinhos entre folhas e pés apressados
Sob o sono, onde todas as águas se encontram.

O mastro da proa rachado pelo gelo e a pintura rachada pelo calor.
Eu fiz isso, esqueci
E me lembrei.
O cordame fraco e as velas apodrecidas
Entre um junho e outro setembro.
Eu fiz isso sem saber, semiconsciente, ignorado, meu próprio.

As tábuas de resbordo fazem água, as juntas precisam ser calafetadas.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo para viver num mundo de tempo além de mim; que eu possa
Renunciar à minha vida por esta vida, às minhas palavras pelo não dito,
O desperto, lábios separados, a esperança, os novos barcos.

Que mares que praias que ilhas de granito perto do costado do navio
E o tordo chamando através da névoa
Minha filha.

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