terça-feira, 14 de setembro de 2021

Nos Andes, de motocicleta

 Na cordilheira (um relato)

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Texto publicado na revista Conhece-te, edição de setembro, como apresentação do livro "A mão do deserto" (Ateliê Editorial, 2021).

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Na primavera de 2019, resolvi fazer uma viagem de moto. Uma viagem solitária. Há quatro anos tinha perdido minha mãe. Ela sofria de fibrilação atrial, uma arritmia cardíaca que pode induzir a formação de coágulos. E teve um AVC. Faleceu depois de dois anos acamada, sem falar, sem poder se mexer. Eu sofria do mesmo mal. Dois anos após a sua morte, resolvi submeter-me a uma cirurgia para que se cauterizasse uma parte do meu coração e ele voltasse ao ritmo desejado. Mas a cura não foi completa: suprimiram o gatilho, mas a bala continuou na agulha e o cão continuou armado. De modo que o médico me receitou um normalizador do ritmo e um anticoagulante, que deveria proteger-me dos coágulos. Dois anos depois da cirurgia, os exames mostraram que eu estava estável, mas condenado a tomar os medicamentos para sempre.

Na primeira consulta após a cirurgia, com o uso de anticoagulantes, a motocicleta era algo proibido. Assim como qualquer esporte ou atividade que pudesse causar acidentes e sangramento. Mas desde os doze anos, a motocicleta foi parte da minha vida, e abdicar dela seria abdicar de algo que era mais do que um prazer, era uma elemento de identidade. Então não parei.

Quando, finalmente, soube que tomaria o remédio para o resto da vida, resolvi fazer a viagem da minha vida. Uma viagem sem companhia, durante a qual, compensando os riscos, eu poderia dialogar comigo e com os meus mortos, bem como com os vivos com os quais deixei de conversar ao longo dos anos, por um motivo ou por outro, ou sem nenhum motivo.

A viagem começou pela Argentina, na fronteira de Foz do Iguaçu. Prosseguiu primeiro para Oeste, na direção de Posadas e Corrientes e por fim Termas de Rio Hondo. Ali sofreu uma inflexão para norte, na direção de Salta e depois Humahuaca. Em seguida, de novo para o oeste, andei pelas Salinas Grandes, um deserto de sal, cujas placas grossas sustentam carros sobre um mar de água transparente, e então cruzei os Andes.

Pilotando a 4850 metros acima do nível do mar, entre vulcões gelados, segui para San Pedro de Atacama, que divisei ao longe, entre um vasto círculo de picos cobertos de neve, ao lado de grandes salares, no altiplano que se conhece como Puna.

Desde San Pedro, rodei em várias direções pelo deserto, com rumo ou sem rumo, ora buscando o silêncio interior, concentrado na respiração e no ruído do motor, ora dialogando com os rostos que pareciam brotar das dunas, entre a rara vegetação, sob o sol quente ou sob a luz fria da lua brilhante. A todos prestei as homenagens, a todos perdoei do que nem sabia que precisava perdoar, e a todos também pedi, sem buscar a clareza dos motivos, perdão.

As viagens solitárias têm esse poder de conhecimento sem revelação: da mesma forma que a paisagem é desconhecida, o sentido das coisas não precisa se transformar em dado explícito para impor a sua força de sentido obscuro e de emoção incontida.

Da minha cabana de adobe, no meio do deserto, segui depois para a costa do Pacífico. Passei pela Mano del Desierto, aquele monumento estranho: uma mão humana semienterrada, ou sendo erguida desde o fundo, à margem de uma rodovia, entre colinas.

E na sequência da viagem, percorri a dura costa do Chile, com a sua miséria e riqueza mineral, até Santiago, de onde cruzei novamente os Andes, em direção à adorável Mendoza. Dali para Córdoba e a seguir de volta ao Brasil.

Foram onze mil quilômetros e 25 dias de quase solidão. Digo quase, porque o viajante solitário está aberto às experiências da estrada. Não está se movendo numa pequena bolha de relações de familiaridade. Nem mesmo se pode isolar e proteger no invólucro seguro da sua própria língua. 

Quando voltei, um amigo com o qual tinha perdido o contato há anos quis saber da viagem. E lhe mandei o seguinte relato breve, do qual excluo a parte que repete o que contei acima:

“Houve momentos em que a sensação era de total solidão e vulnerabilidade, como quando cruzei uma parte da Argentina chamada El Chaco. Ali, o que há são retas infinitas, desabitadas. Grandes caminhões cruzam por nós com uma velocidade espantosa e o ar que deslocam é como uma pancada no peito. Na época em que passei por lá, chovia. E fazia frio. Normalmente é quente demais. Mas chovia.

Ao longo da estrada havia animais. Carneiros, burricos, porcos. Em manadas ordeiras, pastando nas margens. E passavam os caminhões em carreira e eu mesmo a 180 km/h, só diminuindo ao avistar um grupo mais próximo da pista. O principal problema eram os pássaros. Centenas deles ficavam na pista, em intervalos curtos, comendo as sementes que o vento trazia. Eu ia buzinando e encolhido atrás do para-brisa, para me proteger. E mesmo assim, com todo o barulho, atropelava sempre vários, que iam caindo pelas beiradas da moto. Um deslocou a lanterna, outro bateu no meu capacete. Mesmo assim, por buzinar, matei poucos. Um amigo que passou por lá depois, embora eu tivesse dito que precisava buzinar muito, matou duas dúzias, alguns dos quais ficaram grudados, esmagados contra os ferros da moto.

Depois, em certa parte, não havia nada, exceto imensos ninhos abandonados nas árvores altas, numa paisagem de fim de mundo. Uma linha de postes de energia no horizonte era o único testemunho humano, além da estrada. Retas que se perdiam, burricos bravos e ovelhas cobertas de lã, porcos pastando em grupo. 

Quando parava a moto, o silêncio era atordoante. Principalmente porque parava o vento. Deixava a moto e caminhava até uma distância da qual a pudesse ver contra aquela paisagem rústica. 

Antes de partir comprei um aparelho rastreador. Ele tem um botão para pedir ajuda e outro para pedir resgate. Não depende de celular, porque nesses lugares não há sinal. É tudo por satélite. Em caso de pane da moto, pressionando um botão para pedir ajuda, uma mensagem em SMS vai para um número pré-configurado, com um texto pré-definido e a localização no mapa. Em caso de real perigo de vida, um botão denominado SOS envia um pedido para a central nos EUA, com a localização. Nesse caso, o compromisso da empresa é providenciar um resgate o mais rápido possível, pelo meio disponível: helicóptero, caminhonete, lombo de burro. E conheço casos, ocorridos nessa mesma região, de gente que se acidentou, quebrou perna e braço e foi resgatada na montanha, quando estava a ponto de morrer de hipotermia.

Quando descia nesses lugares, apertava na mão o aparelho, como garantia de segurança. Mas curiosamente eu adorava essa sensação: a vulnerabilidade, a solidão, o vazio. 

Por exemplo, antes de cruzar os Andes, resolvi ver aquele morro de várias cores, de cuja fotografia você gostou. Para chegar até lá, tive de andar 70 km pelo deserto real. Cerca de 50 em estrada asfaltada e o resto sobre pedras soltas. No final do asfalto havia uma cabana, gerida por uma indígena. Lá havia um poço e energia por placa solar. Parei, comi uma empanada, tomei um café e conversei um pouco com ela, ouvindo como era a vida ali, naquele descampado no planalto, ao pé da montanha.

Depois resolvi subir. Foram 25 km para chegar a 4300 metros de altitude, por uma estrada vazia, com um precipício ao lado e pontas de pedras do outro. Em pé sobre as pedaleiras da moto, para maior firmeza, sentia as pedras sendo jogadas para o lado pelos pneus. E fui. Quando cheguei ao topo e comecei a andar, não tinha fôlego. Andar 20 metros nessa altitude é uma coisa muito difícil: falta o ar, a cabeça gira e dói. A gente tem de andar em câmera lenta e se concentrar.

Chegando, sentei-me a ouvir aquela solidão enorme, e só levantei quando percebi que o dia começava perigosamente a baixar. E então tive de fazer o caminho contrário, na ribanceira até a cabana da índia, que já estava fechada, e dali seguir, enquanto o sol descia muito rapidamente, até o vilarejo onde iria me hospedar, antes de seguir no rumo da parte chilena do deserto.”

Meu amigo gostou do relato intempestivo. Disse-me que eu deveria escrever mais longamente sobre essa experiência, contar tudo, complementar a viagem. Com isso ele quis dizer, eu acho, que era preciso viver outra vez, agora com palavras, aquilo que tinha sido vivência bruta e pura, pois uma coisa que eu lhe dissera na mensagem é que eu tinha feito grande esforço para não fazer mentalmente literatura ao longo do trajeto. Isto é: evitei dar forma verbal elaborada às emoções e sentimentos. Tinha mesmo feito um esforço constante de não ceder à tentação de querer fazer poesia nos vários lugares pelos quais passei. Nem à tentação de recolher as impressões com o objetivo de as transformar posteriormente em literatura.

Por isso mesmo, disse ele, agora você o poderá fazer melhor. Nesse sentido é que será um complemento – e eu quase entendi “uma superação” - da viagem.

Nos meses seguintes, foi o que fiz. Mas curiosamente não apresentei a primeira versão do livro a ele, e sim ao meu editor, que é também meu amigo. Queria uma leitura mais isenta, sem o contexto da conversa.

Decidida a publicação, aí sim a enviei ao amigo que me incentivara a escrevê-la. Na sequência, conversamos longamente durante as várias versões, nas quais eu tentava tornar mais claras ou mais próximas as coisas intuídas e vividas.

Desse trabalho, nasceu o livro há pouco lançado. Intitula-se – em homenagem ao momento intenso da contemplação do deserto e do improvável gesto de aceno, que interpretei conforme a minha própria vida, perdas e lembranças – “A Mão do Deserto”. E traz os dois primeiros destinatários ali inscritos, as duas pessoas sem as quais ele não existiria: o editor, Plínio Martins filho, com a sua chancela, que é mais do que meramente editorial; e o meu amigo Alcir Pécora, com o diálogo constante e ainda com o brilhante texto de apresentação nas orelhas da capa. 









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